segunda-feira, 28 de maio de 2018

Discursos, Números, Imagens, Músicas.
 Livro, “cérebro” , computador


1. Entre os numerosos usos sociais[1] que as sociedades como a nossa transmitem de geração em geração, renovando-os sem dúvida e acrescentando-lhes invenções novas que se tornarão usos a transmitir também, poderemos distinguir os que têm finalidades técnicas de habitação, construidos segundo essa finalidade, de outros usos, como os enunciados no título, também se reproduzindo de geração em geração e muito mais se alterando ainda porventura, cuja especificidade poderia ser dita talvez como Alain do mimêma pictural: “uma inscrição numa matéria de empréstimo”[2]. Esta matéria de empréstimo, acrescentaria eu, pode ser quer sonora, quer visual ou táctil. Com efeito, a linguagem oral – enquanto sistema de diferenças linguísticas, os significantes – inscreve-se na matéria sonora que ela reelabora, tal como a escrita e as imagens (pintura, desenho, fotografia, filme) em superfícies visíveis, a música sendo ainda um outro exemplo de inscrição sobre matéria sonora.
2. Estranhamente, estas diversas “inscrições numa matéria de empréstimo”, estes usos que não são como os outros, não parecem ter um nome comum, como se a cultura ocidental não tivesse dado pelo que as liga enquanto usos semelhantes[3]. De certo modo, também são técnicas que implicam saber e habilidade, inscrições de habitação que sobrevivem à morte das gerações, à maneira dos utensílios, dos diversos edifícios, do urbanismo, etc. Mas estes são “inscrições numa matéria”, como dizer? específica para funções de habitação determinadas, muitíssimo variadas segundo as sociedades: matérias ‘funcionais’, digamos, não se poderia falar de empréstimo a seu propósito. Todavia estas palavras, ‘técnica’, ‘habitação’, ‘uso’ podem fazer pensar em ‘instrumentos’ ou em ‘coisas’, ou até em ‘meios’, e é isso que elas não são de forma nenhuma: sendo aquilo de que se ocupam a escola e o que se pode chamar instituições de circulação cultural, elas são na verdade os únicos ‘produtos’ – e isto serve para precisar um pouco mais esta noção vaga de ‘matéria de empréstimo’ – que podem deixar a sua “matéria de empréstimo”, serem transformados em electricidade e enviados (‘tele-‘) a longa distância e voltarem de seguida à sua “matéria de empréstimo”, os únicos assim susceptíveis de serem manipulados por computadores, de circularem na Internet[4].
Linguagem duplamente articulada: poema e definição
3. Para delimitar a diferença entre a linguagem duplamente articulada e as outras formas de inscrição socialmente duráveis, ocupar-me-ei aqui um pouco do texto poético, aonde encontramos a linguagem (oral e escrita) na sua maior força e complexidade. Diria de modo aproximado que se chama poema a um texto em que, por razões intrínsecas, não se pode separar o jogo significante – sonoridades rítmicas e aliterantes – do jogo do sentido ou do pensamento, nem tão pouco separar oralidade e escrita[5]. Poder-se-á objectar que qualquer texto é uma tal impossibilidade; é certo, mas o poema é o texto em que esta resistência é, de certo modo, mais visível, mais palpável, no sentido em que ele resiste à tradução exacta, à paráfrase, ao resumo em que se perde enquanto esse texto, esse texto-pensamento. Dito de forma mais técnica, o poema é o texto que joga a fundo com a unidade da dupla articulação da linguagem humana, a dupla economia da repetição de diferentes significantes, entre os fonemas/letras e as palavras, por um lado, entre as palavras e as frases/textos, por outro, com a unidade indissociável do significante e do ‘signifié’.
4. Assim, por exemplo, um poeta terá a possibilidade de jogar com as diferenças significantes de basta, bastante, bastar, bastão, bastardo, besteiro, besta, bosta, busto, bispo, bicho, palavras próximas nos seus significantes e cujos sentidos podem aproximar-se ou não entre eles; este tipo de jogo é bastante diferente no entanto do que há entre os opostos como bastante / pouco, por exemplo. É um jogo que pertence àquilo a que Derrida chamou disseminação, de que faz parte também a polissemia, segundo a qual o mesmo significante muda de ‘signifié’ (Saussure) segundo o contexto em que se insere, quer se trate de uma palavra ou de uma citação mais longa. O poema seria pois um jogo pensante de disseminação, seja qual for a consciência que o poeta tenha disso.
5. Uma outra consequência da disseminação numa linguagem duplamente articulada, é a impossibilidade de dar uma fronteira ao poema: a sua escrita ou leitura implica relações essenciais a outros textos, poéticos ou não, quer ao nível fonético e das palavras, quer ao nível da sintaxe-semântica e dos códigos textuais[6]. Sem esta relação – sus­ceptível de uma certa transgressão –, que se constrói  a partir das leituras e falas anteriores do poeta e que é rigorosamente incontrolável por ele, nenhum poema seria legível. Como qualquer texto que seja, sem cisões possíveis. Mas é sem dúvida também o caso dos outros jogos de inscrição, a escrita matemática sendo aquela que melhor se defende da chamada intertextualidade.
6. As ciências e a filosofia não teriam sido possíveis sem uma arma de defesa contra a polissemia, tão importante para o narrativo e o discursivo, os textos que dizem o singular, os acontecimentos: foi a definição, as fronteiras à volta da polissemia da palavra definida para não reter senão um só sentido. O mesmo é dizer que os textos gnosiológicos jogam em sentido inverso ao da poesia: eles privilegiam o ‘significado’ assim definido, o conceito (a ideia, a representação mental europeia tem aí a sua origem) e desconfiam do significante, do seu jogo de disseminação, das palavras que mudam segundo as línguas. Esta forma de fazer tende para a universalidade, uma das suas incidências é a exclusão para fora das suas fronteiras de qualquer marca singularizante: ‘eu’ e ‘tu’, ‘aqui’ e ‘agora’, o ‘presente’ e o ‘aoristo’, os tempos e os modos dos verbos. A invenção do texto gnosiológico – o dos saberes filosófico, lógico e científico – foi assim uma ruptura com as narrativas e os discursos situados temporalmente e espacialmente; é a escrita do que valerá unicamente pelas suas definições e argumentos, tanto faz quando, tanto faz onde,  tanto faz para quem. Trata-se pois de ficção, porque ao compor-se como intemporal e válido em qualquer lugar, ela denega a sua própria situação de escrita. Sem dúvida que nós nos tornámos mais modestos nas nossas pretensões ao conhecimento científico, que sabemos ser histórico e relativo, no entanto, esta estrutura gnosiológica dos textos científicos continua a ser necessária, definidora da ciência como projecto de saber, aberto há vinte e cinco séculos pelos Gregos. Desde o “que ninguém entre aqui que não seja geómetra” inscrito no frontispício da Academia de Platão até à fenomenologia do matemático Husserl, passando por Renatus Cartesius, aquele que geometrizou a álgebra com o seu sistema de coordenadas, por Kant o newtoniano e por alguns outros, o privilégio filosófico do conceito teceu a aliança, cheia de “finesse”, com as matemáticas, com “o espírito de geometria” pascaliano. 
A escrita matemática
7. A escrita matemática não é duplamente articulada: contra o que parece à primeira vista, ela ignora o nível fonema / letra. Sem dúvida que o seu nível mais elementar só conhece, por regra, um único carácter, mas ele corresponde às palavras da linguagem duplamente articulada, já que ele tem um sentido[7] atribuído convencionalmente por uma definição prévia, feita aliás em discurso duplamente articulado (por exemplo, “R é o raio de uma circunferência”). A matemática só conhece pois um nível, o que articula palavras e frases em equações. Por exemplo, a equação da circunferência cujo centro está no ponto de cruzamento dos eixos das coordenadas:
x2 + y2 = R2
As equações podem ser transformadas, segundo regras sintácticas codificadas,                                                  ______
                          
x2 = R2 - y2       e     x=±  V R2 - y2
por exemplo, de modo a que estas equações sejam equivalentes. Isto implica que uma equação (ou um sistema de duas ou mais equações, isso não altera nada aqui) seja fechada em relação às outras, que possuam outras definições convencionais (R pode ser a resistência eléctrica em equações da Electro-estática, por exemplo). A matemática não forma pois texto a outro nível que não seja o das suas frases (as suas equações), pelo menos se definirmos texto como uma sucessão de frases relacionadas entre elas mas que não se repetem quanto ao sentido. Tudo isto implica que a matemática tenha só uma articulação, e esta é uma primeira boa razão para que o termo ‘linguagem’ não lhe convenha em rigor. Ao contrário da linguagem duplamente articulada e radicalmente imotivada, o significado matemático é, de jure, prévio (na língua do matemático) ao significante, este sendo justamente uma convenção: portanto nem polissemia nem disseminação (excepto em caso de erro) por defini­ção da convenção matemática, concebida para evitar todo o efeito polissémico. Quer isto dizer que ela foi concebida para ser monossémica, unívoca, em suma exacta. Estou a descrever a sua finitude, a sua positividade, e não defeitos! Ela é também exaustiva, o que o discurso duplamente articulado, estruturalmente elíptico, não pode ser: não se pode nunca dizer ‘tudo’ sobre o que quer que seja.
8. Ela foi também concebida para ser exclusivamente operatória, o que lhe vem de uma característica sua, a de ser composta por caracteres, quer dizer, de ser essencialmente uma escrita, implicando os olhos, as mãos, um lápis, o papel ou similar, em suma os instrumentos da matéria de inscrição; se somos capazes de resolver mentalmente certas operações simples, isso não é no entanto verdadeiro para a maioria dos casos – multiplicar 3197 por 7913, raiz quadrada de 7 ou de 23, resolução de equações, etc. –, que se tem que fazer estruturalmente por escrito. É certo que ela tem necessidade, na colocação dos problemas, na condução das suas operações e na interpretação dos resultados, ela tem necessidade da oralidade da linguagem humana, que lê ‘dois mais dois é igual a quatro’ em 2+2=4. Mas esta oralidade não joga na operação matemática, que é exactamente a mesma para um português ou para um alemão. Puramente convencional – quer dizer que ela exige línguas duplamente articuladas a montante e a jusante –, a escrita matemática é universal em relação a essas línguas, ela não precisa de ser traduzida:              3 197x7 913 = 25 297 861, é igual para os portugueses e franceses e não é a mesma coisa que ‘três mil cento e noventa e sete vezes sete mil novecentos e treze é igual a vinte e cinco milhões duzentos e noventa e sete mil oitocentos e sessenta e um’ em português, porque em francês diz-se ‘trois mille cent quatre-vingt diz sept multiplié par sept mille neuf-cents treize est égal à vingt-cinq millions, deux cents quatre-vingt dix-sept milhe, huit-cents soixante-un’. Sendo operatória, ela não é pois ‘pensamento’ no sentido corrente do termo, o qual só funciona nas línguas duplamente articuladas; estas no entanto são necessárias para estabelecer as convenções das características matemáticas, talvez não para ‘seguir’ as operações (os computadores calculam ‘sem língua’). E é uma outra boa razão para que o termo ‘linguagem’ não lhe convenha em rigor. 
9. O que são então as ‘palavras’ matemáticas, com as quais se escrevem as frases-equações? Há caracteres sintáxicos, os que indicam as operações (+, =, o traço das fracções, os expoentes, f(x), etc.), segundo regras exactamente convencionadas[8]. Depois, há duas espécies de caracteres semânticos: primeiro, os algarismos. Nós usamos nove, segundo o sistema decimal árabe, ao qual por razões de economia, se acrescentou o algarismo vazio 0, para fazer o décimo como 10 (e mais adiante o 20), depois faz-se seguir duas vezes o primeiro como 11, etc., de modo tal que os números de vários algarismos parecem uma palavra com vários caracteres, mas não sendo de facto mais do que uma convenção para as operações de adição (741=700+40+1)[9]. Os números inteiros definem-se a partir dos números elementares (os dedos das duas mãos) por adição de 1 ao anterior (n+1), os outros por divisão ou outra (1/3, raiz quadrada de 2, etc.). Em seguida, as letras. Estas podem ser constantes (a substituir por um número que, num problema concreto, tal como R para uma circunferência dada, é sempre o mesmo) ou variáveis (que são também para substituir por números, como x e y no exemplo: para cada valor de y encontra-se, pela resolução da equação, dois valores simétricos para x, o conjunto dos números que assim achamos permitindo o desenho da circunferência em questão). Quer dizer, as letras em matemática valem por números, conhecidos ou “incógnitas”, e a resolução de uma equação consistirá, como tendência pelo menos[10], em chegar a resultados numéricos pela substituição progressiva e regrada das suas letras.
10. O que é então uma equação (ou um sistema de  equações)? É uma frase–texto, cuja constelação das variáveis define um tipo de problemas a resolver. E nisso se basta, nisso ela é exacta, é bem a sua finitude, a sua fecundidade. Por exemplo, na ciência física, a cada variável corresponde uma dimensão mensurável segundo padrões convencionados (metro, segundo, grama, ampère, etc.), as medidas de  experimentação dando os números que permitirão a resolução dos problemas[11] da região da física à qual a equação pertence. Em matemática, como nas ciências que a utilizam, os problemas são isolados uns dos outros, como as suas equações: trata-se de fragmentos operatórios. É por isso que as matemáticas não permitem elaborar textos. A resolução de um problema matemático consiste em transformar uma frase, uma equação (ou um sistema de várias equações), noutras frases ou equações rigorosamente equivalentes. Nomeadamente as letras, constantes ou variáveis, devem ser adequadas a cada caso (pelo menos numa região restrita da física, da geometria ou outra). Sem o quê depressa se esgotariam as letras dos alfabetos latino e grego. Em resumo, as matemáticas são essencialmente fragmentárias : cada equação (ou sistema de equações) é autónoma em relação às outras[12].
As imagens
11. É o quê, uma imagem, precisamente? Já Platão punha a questão no Sofista, as imagens (eikona) como discursos (logoi), para saber como podiam ser falsos. Como podiam os Sofistas enganar os jovens? (234c). Para responder, ele introduz, mais do que a oposição exclusiva (de Parménides) entre ser e não-ser (ou é um ou é outro), a diferença não exclusiva entre o mesmo e o outro (diferenças susceptíveis de mistura recíproca, de terem algo em comum). O que nos permitirá dizer que, a imagem sendo outra do que a coisa de que ela é a imagem, ela é ao mesmo tempo o mesmo do que essa coisa (sem o quê ela não seria uma imagem de, não seria nada, apenas riscos feitos ao acaso) e o seu outro (a sua imagem, visto que se separa dela, se desloca para outro lado, pode sobreviver-lhe, etc). A imagem é e não é a coisa[13]. Imagem verdadeira, se a sua composição – a mistura das cores e da linhas, nomeadamente as suas proporções – permanece a mesma do que a da coisa, falsa se não for esse o caso. Como para o discurso, que é o que de facto interessa Platão neste texto: aqui a mistura é dupla (assinalada aliás em passos diferentes do texto), entre letras para construir palavras (e esta mistura depende de uma arte e das suas regras, não é de qualquer maneira) (253a), entre nomes e verbos para fazer uma frase (262a-b): se a mistura é boa, adequada ao que ele diz (“Teeteto está sentado”), o discurso é verdadeiro, se não (“Teeteto voa”), é falso. O mesmo é dizer que Platão, para fazer a distinção decisiva entre discurso verdadeiro e discurso falso, põe o dedo na dupla articulação da linguagem, o que nos permite estabelecer uma diferença entre imagem e discurso ou fala: esta articula-se duplamente a partir de elementos (fónicos: os fonemas; ou gráficos: as letras) que não são imagens de nada, que permanecem absolutamente imotivados em relação às coisas que as palavras designam ou nomeiam (o que as diferenças entre as diversas línguas atestam). É esta dupla articulação que permite à linguagem, ao discurso, produzir sentido, pensamento. Também o nome é e não é a coisa nomeada, mas de um modo muito diferente do das imagens: o mesmo nome “cão” pode designar cães bem diferentes, para designar ‘este’ cão, são-lhe necessários determinantes (artigos definidos, demonstrativos) no discurso. Não a imagem: a de um cão, é a deste cão (quer ele exista ou não, pode tratar-se  de um desenho inventado), e mais nenhuma outra. Toda a imagem é singular. Mas não pelo facto do seu objecto ser particular (os discursos também falam habitualmente de objectos particulares): podem fazer-se centenas de fotografias ou de desenhos de uma mesma personagem, com enquadramentos e perspectivas diferentes, cada uma destas imagens é singular (do mesmo modo podem dizer-se ou contar-se numerosas coisas desse mesmo personagem). Não têm articulação (como a linguagem, a matemática e a música), este motivo implicando linearidade e discreção; não são susceptíveis pois de comutações, não consistindo senão na sua visibilidade, na sua ‘imagética’[14] (o que se ‘vê’ numa imagem, o seu conjunto de traços-cores-sombras: superfície ou volume), uma imagem não é ‘resumível’, não é traduzível nem transferível para outra coisa, ela não é susceptível de polissemia, não tem sentido, não tem pensamento discursivo.  Ela basta-se a si mesma, não pede outras imagens para ter sentido de imagem, mais frequentemente uma legenda dizendo o contexto: é uma legenda de narratividade, dita ‘guião’ quando ‘guia’ uma sequência fílmica de imagens. Quanto ao discurso, este relaciona-se com a imagem do mesmo modo que com a coisa: ela pode ser nomeada, descrita, permanecendo outra do que o discurso que a diz. É sem dúvida por isso que as tentativas semióticas sobre as imagens têm, ao que parece, bastante dificuldade em se estabelecerem[15].
12. Não há uma imagem ‘pura’. Por um lado, não há imagem senão em composição, em contexto de imagens, num plano, como se diz em linguagem cinematográfica, este contexto sendo habitualmente delimitado, enquadrado num rectângulo; o jogo das diferenças contextuais entre as diversas imagens de um mesmo plano tem efeitos sobre as ‘imagéticas’ respectivas que mudarão se o plano muda, se uma das imagens se desloca para outro contexto. Quer isto dizer que um realizador, tal como um fotógrafo ou um pintor, joga com as suas imagens enquadrando os seus planos (perspectiva, grande plano ou panorâmico, luz, etc.), já que o rectângulo-clausura exclui sempre muitas imagens do contexto da realidade filmada ou a pintar. Como ele joga também com elas em relação ao contexto das sequências de planos, tanto no jogo da câmara como no da montagem. Não há pois imagens-em-si, não há senão planos de imagens e sequências de planos. Compor um quadro, uma fotografia, um filme, é sempre seleccionar entre numerosas possibilidades. Desenhar uma imagem sem contexto, sozinha, ou apagar o seu fundo numa fotografia, não é senão uma dessas possibilidades.
13. Por outro lado, não há tão pouco imagem ‘pura’ por ela sempre ser, no seu contexto de planos, jogo de forças, de afectos, de conflitos e de amores, de desejos e rivalidades. Nós não temos imagem de nós mesmos: o nosso retrato, olhamo-lo ‘como’ o de outro que não conhecemos ‘tal’ como a imagem no-lo mostra. A imagem é sempre imagem de um outro de que se visa a face, o visto, o aspecto, o eidos, diziam os Gregos. Tomemos de Rorty o exemplo aristotélico do conhecimento que se pode ter de uma rã que se olha. Recebe-se o seu eidos, a sua ‘forma’, sem no entanto nos tornarmos numa rã (como acontece à cria desta rã, que também dela recebeu o eidos). Mas tornamo-nos de algum modo rã por este eidos recebido, quando reconhecemos, com um mínimo de familiaridade, outras rãs. A rã -nos a sua imagem, que se torna uma ‘parte’ de nós, do nosso ‘imaginário’, como se diz, ela agarra-nos, prende-nos, liga-nos, como o sabemos quando se sonha com ela, quer dizer, quando uma imagem de rã (compósita tal­vez, deformada, pouco importa) vem, de nós e em nós, com uma nitidez e uma intensidade extraordinárias, tomando a iniciativa, se pode dizer-se, movendo-se, fazendo ruídos, etc. A coisa dá-nos a sua imagem e prende-nos a ela, modifica-nos com ela. Mas a rã encontra-se numa bela pedra, na margem do rio onde assim fomos captivados pela rã como o Principezinho, e eis que nos tornamos pedra, rio, que nos separamos da rã: a sua ‘imagem’ permanece grafada em nós, fica ‘nós’, sem perder a rã (senão já não seria uma imagem), mas perdendo-a na sua empiricidade real, digamos; a rã ‘morre’ para nós, esta ‘morte’ sendo a condição da sua sobrevivência em nós, tornada memória-nós. Porque o nosso saber, o nosso conhecimento no que respeita às coisas, às pessoas, é constituído pela amálgama dessas imagens-nós. Tomei o exemplo da rã, parece evidente que tudo isto é ainda mais forte nas nossas relações com os outros humanos, tecidas de desejos, de afectos, de rivalidades, etc., aos quais estamos ligados por essas imagens-nós, são eles sobretudo que vêm sonhar nos nossos sonhos.

A música
14. Apesar da minha ignorância, é interessante caracterizá-la para chegar a uma consideração geral deste conjunto assaz heterogéneo “de inscrições numa matéria de empréstimo”. Tal como a linguagem oral, também ela é feita de diferenças-repetições sonoras, que se dão numa linearidade sucessiva (espaço-tempo), a da melodia. Mas ela só possui uma articulação: entre fonemas e frases, sem o nível intermediário, o das palavras. Com efeito, as ‘notas’ são sons elementares (não segmentáveis) que não são imagem de nada; todavia, em vez das modulações da voz (aperto maior ou menor da glote, vibração das cordas vocais, posições diversas da boca...), a música joga nas diferenças-repetições temporais dos sons em extensão (breve, colcheia, fusa, etc.), os seus intervalos, ritmos e outras medidas, nas diferenças-repetições de frequência, entre grave e agudo, de escala musical (dó, ré, mi...), nas diferenças-repetições de timbre (espectro-harmónico, mudando segundo as vozes e os instrumentos) e de amplitude (intensidade dos acentos). Essas diferenças-repetições sonoras não se prestam a formar palavras que reenviassem a outra coisa que não a música; é o que permite também a harmonia, parece-me, a simultaneidade de mais duma linha melódica, o que a linguagem oral exclui firmemente, sob pena de não haver comunicação. E permite também o canto, combinação da linguagem oral e da música numa só sucessão sonora em que se inscrevem os dois tipos de diferenças: se se imagina o canto por uma voz que não seja acompanhada por um outro instrumento musical, dir-se-ia que é a própria palavra que é musicada pela melodia: os mesmo sons e no entanto dois registos de diferenças.
15. Estas indicações muito simples permitem compreender uma diferença capital da música em relação aos outros jogos de ins­crição: só ela é rigorosamente imanente, não valendo senão pela arte da sua composição (e da sua interpretação), susceptível de muitas espécies de músicas diferentes. Excepto talvez para as correspondên­cias entre músicas e emoções, devidas às cumplicidades entre as osci­lações de umas e outras, a imanência faz da música uma arte ‘abstracta’, como se diz, logo universal por direito, ‘a arte’ sendo o que nela nos dá ‘emovância’.
Um quadro sinóptico
16. Para concluir, tentemos uma comparação sinóptica entre estes diversos jogos de inscrição, colocando-os numa tabela oferta a um olhar (a uma óptica) de conjunto (sin-), embora haja dois que só dizem respeito à sonoridade. Por outro lado, entre aqueles que respeitam à visibilidade (e por vezes ao tacto: o alfabeto Braille testemunha-o), as imagens destacam-se em que, jogando na superfície ou plano, elas não se articulam segundo a linearidade, não são susceptíveis de segmentação em elementos simples e discretos; o que é sem dúvida uma razão para que sejam singulares. Ter-se-ia assim um quadro das possibilidades de articulação de unidades discretas segundo a linearidade: a linguagem oral e duplamente articulada, entre fonemas, palavras e frases, a escrita matem­tica que se articula entre palavras e frases, a música entre fonemas e frases, as imagens enfim que não se articulam linearmente[16]. Em relação ao que é próprio da escrita, poder-se-ia encarar os seus diversos espécimens históricos segundo um percurso completo deste quadro. As imagens da pintura e do desenho seriam as primeiras escritas conhecidas, os hieróglifos a passagem a figuras podendo significar (sobre os discursos) as coisas visíveis numa sequência linear; os caracteres chineses corresponderiam aos da matemática, cada ‘conceito’ sendo significado pelo seu carácter, de tal modo que, ao que parece, a mesma escrita pode servir para línguas diferentes, que não se compreendem entre eles[17].  O alfabeto chega enfim à dupla articulação e à sua capacidade de segmentação para descrever as coisas. Quanto à música, fica à parte, na sua imanência altiva, mas encontrou também uma escrita que lhe é tão adequada que os seus sons são designados através desta notação, como ‘notas’.
17. As quatro casas deste quadro parecem irredutíveis entre elas, a música sendo, ao que parece, a que mais resiste a qualquer tentativa das outras inscrições que quisessem dobrá-la: não se pode ‘dizer’ uma música, nem desenhá-la, colori-la, filmá-la; ela presta-se no entanto a um certo tratamento matemático, desde os Gregos. A linguagem pode ler as equações matemáticas (sem as substituir, como vimos), pode descrever as imagens mas pondo em sucessão o que se dá numa composição simultânea e deixando sempre muitos restos, dado o seu carácter elíptico estrutural (quer dizer que a linguagem se comporta face às imagens como a qualquer outra realidade). A escrita matemática conseguiu formular proposições lógicas, como já o tinha feito para as figuras geométricas (cartesianismo) e parece estar à medida de fazê-lo doravante para qualquer imagem electrónica (imagens ditas numéricas: decomponíveis segundo pontos e recomponíveis, sem que elas se tornem todavia unidades discretas). Enfim, se as imagens, cinematográficas por exemplo, conseguem, de uma certa maneira, redobrar as narrativas, os discursos não lhes resistem menos. "Eu perguntava-me em que é que ela acreditava ao certo” ou "a essência não é visível dela mesma, por definição”: não haverá nestes enunciados uma única palavra susceptível de ser substituída por uma ou várias imagens.
18. A linguagem oral tem um privilégio, sem o quê o logocentrismo seria irracional: é o único destes jogos que é organizado segundo um retiro no próprio sistema (os fonemas, § 6), tendo se lhe juntado historicamente as letras dos alfabetos. Daí que ela seja a única a jogar um papel estrutural na reprodução de todos os outros usos sociais, incluindo imagens, músicas e matemática; daí também que só a escrita alfabética tenha permitido historicamente o texto gnosiológico da filosofia, lógica e ciências, onde no entanto as figuras geométricas e astronómicas, pelo menos, e a aritmética jogaram um papel irredutível à dupla articulação. Privilégio também pelo facto de toda a gente falar esta linguagem oral, segundo a sua autonomia singular, enquanto que os outros jogos exigem especialistas mais ou menos dotados. Mas este privilégio tem um preço grande: sendo a única universal no sentido que acabamos de dizer, de que toda a gente tem parte nele essencialmente, ela é a única que não é universal de direito: varia segundo as comunidades, segundo os povos, o que a torna útil dentro da cada comunidade é o que se torna obstáculo entre comunidades diferentes. O que o retiro doa, a autonomia de cada um na comunicação, tira-lhe também. É um escândalo para a razão: todos os outros jogos de inscrições são por direito universais (embora obstáculos culturais podendo apresentarem-se de facto). Foi contra este escândalo de Babel que a razão europeia inventou a representação.
19. O quadro deixa-se ler também segundo a economia da verdade – respeitante à relação com os outros usos – e da liberdade – respeitante à composição segundo regras. Designemos os diversos níveis das unidades lineares (abaixo da composição do discurso ou da melodia): o nível mais baixo é o das unidades imotivadas em relação a outras coisas, o nível intermediário é o das unidades de referência, o nível da frase enfim é o das unidades que fazem sentido. A liberdade seria máxima na música, sem unidades de referência, dependente apenas do sentido das frases musicais e do jogo de composição da melodia: a sua ima­nência, excluindo qualquer relação de verdade com os outros usos, interditaria uma qualquer ‘objectividade’ do erro, que não poderia resultar senão de falhas de gosto antropológicas, respeitantes às regras estéticas de composição; não haveria pois também mentira, toda a música sendo estruturalmente ficção. As matemáticas estariam nos antípodas. Sem unidades imotivadas, as suas unidades de referência têm uma relação estritamente definida pelas suas convenções ao uso de contar unidades ou de medir: as suas regras derivam dessa relação e jogam de tal maneira que não há praticamente liberdade que não seja ‘erro objectivo’. Por razões que parecem inversas, porque aqui a exactidão torna mínima a ficção (excepto nas conven­ções de invenção), também não haveria mentira nas matemáticas.
20. A relação referencial das palavras da linguagem e das imagens às coisas (muito variáveis) implica nelas um outro registo da questão da verdade. Como argumentei noutro lado[18], a capacidade de dissimulação é necessária à autonomia pertinente de cada um, à sua liberdade, o que implica portanto capacidade de mentir, de guardar segredos, de fazer ficção, cada sociedade dando-se os seus critérios de verdade, morais antes de mais (a difamação, mentira que prejudica outros, destaca-se do erro), estéticas também nas duas modernidades, a da Antiguidade e a nossa, em relação à liberdade de composição poética e literária. Foi a fotografia que introduziu uma alteração notável desta questão no que tem a ver com o mundo das imagens (na pintura dita abstracta não há imagens, ela não é aqui contemplada): enquanto que a pintura havia já suscitado dúvidas éticas a Platão no Sofista (235e-236c), o carácter maquinal e químico da fotografia, a química da luz, produz um efeito de real (R. Barthes, La chambre claire), implica a convicção forte da sua verdade, apesar das manipulações possíveis (tudo somado relativamente raras até à recente numerização): “o que é visto no papel aconteceu realmente: é um atributo essencial da fotografia analógica”[19]. Enquanto que no cinema, a artificialidade dos cenários, as escolhas de planos e os seus cortes, o jogo de elipses, a montagem e outros elementos da composição dos filmes  depressa mostraram que ele relevava da ficção, com possibilidades de truques, de erros e de mentiras, como a pintura desde sempre.
Artificções
21. Seria preciso ainda perguntarmo-nos, os músicos pretendendo sem dúvida que a sua música se relaciona com o mundo, com a vida, seja qual for o modo de falar deles, seria preciso pôr a questão de saber que verbo (descrever, dizer, narrar, contar, figurar, evocar, cantar... o mundo) poderia dizer a relação destes quatro (ou mais) ‘tipos’ de usos não como os outros, destas inscrições em matérias de empréstimo, aos outros usos e coisas. Sem nome comum, sem verbo comum tão pouco? Em resumo, a linguagem é um modo de dizer as coisas, a matemática de as contar e medir, a pintura e o cinema de as imaginar, a música enfim de as fazer cantar.
22. Renunciemos pois a encontrar um verbo comum, mas não a um nome. Ele deve dizer a composição, como em qualquer uso, em  qualquer técnica, mas enquanto que nos outros usos, em geral, os useiros não são destacáveis deles, de que fazem parte intrínseca (um robot não faz ‘usos’, faz parte do mundo das máquinas, da produção), sublinhemos pela palavra ‘artifício’ a autonomia ganha por essas composições, no sentido em que elas são estruturalmente reproduzíveis fora do compositor, em que é essa a sua razão de ser. Não se trata pois somente de um ‘artefacto’, mas sobretudo de um ‘artifício’: o sufixo ‘-fício’, ao contrário de ‘-facto’ (os dois dizendo ‘fazer’), diz também o seu carácter ‘fingido’, fingir como ‘ficção’ (‘fingo’, em latim: o fazer do escultor ou do actor, o seu particípio fictus/m dizendo falso, mentiroso). Permite ainda dizer a autonomia da sua composição em relação à “matéria de empréstimo”, sonora ou superfície visual, em que elas são inscritas: poderia dizer-se que se trata do mundo das artificções. É esta autonomia de composição que lhes proporciona as possibilidades estéticas do que chamamos ‘arte’[20], ela manifesta-se na liberdade (relativa) da sua composição (ou ficção) segundo regras imotivadas em relação às leis mecânicas, químicas, eléctricas, fisiológicas, dessas matérias. Ao contrário dos outros artefactos e usos sociais, em que as inscrições se fazem essencialmente de acordo com essas propriedades ‘materiais’, para delas se tirar partido: o que nós dizemos utilidade (dos usos, justamente) ou functional.

lidade.


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ø
imagens
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fonemas
ø
‘notas’
ø
sonoridade
sim
ø
sim
ø
visibilidade
ø
sim
ø
sim
escrita que redobra
alfabética
caracteres chineses
notação
musical
pintura 
hieroglifos
relação a outros  usos
imotivado: 
qq. uso
motivado:
contar, medir
imotivado:
 imanência
motivado: 
usos  visíveis   

Dispositivos de inscrição: neurónios, papel, circuitos electrónicos
23.  A evocação destes diversos tipos de “usos não como os outros”, de “inscrições numa matéria de empréstimo”, permite considerar os dispositivos que podem fazer essas inscrições. Tal como o grego dizia com a mesma palavra techné, o que nós chamamos artes e técnicas (os artesanatos), designando tanto as artes manuais como as artes do discurso, do mesmo modo um jogo é possível com a palavra hulê (madeira)[21], a ‘matéria’ utilizada, com a pedra, na habitação. Ora, tanto a madeira como a pedra e a argila foram das primeiras matérias de empréstimo das escritas antigas, essa madeira de que é feito ainda o papel das nossas inscrições, mas que deu lugar ao aço e ao betão armado na construção. Se a imprensa, a indústria da escrita alfabética de ‘dupla articulação’, está no começo da modernidade europeia, o vapor proveniente do carvão, o petróleo e sobretudo a electricidade – as máquinas também  de ‘dupla articulação’ – asseguraram o seu desenvolvimento; livros e máquinas e libras, é isso a modernidade.
24. Digamos telegraficamente que a electricidade desempenha três papéis. a) A electricidade clássica, dita de correntes fortes, não é útil senão como modo ‘limpo’ (do ponto de vista da poluição) e económico (do ponto de vista dos custos) de transportar a energia para longe (‘tele-‘); chegada às fábricas ou aos nossos apartamentos, ela é transformada noutras formas de energia, quer em iluminação, quer (por meio de um motor nas máquinas) em mecânica, térmica, etc., são estas outras energias que trabalham. b) Esta energia ‘tele-‘ pode também alimentar os aparelhos electrónicos, de correntes fracas, em que ela é transformada em artificções (linguagem oral, músicas, escritas diversas, imagens), transportada por antenas (ondas electromagnéticas) ou cabos de tipo telefónico. c) Enfim, a energia eléctrica cessa de ser ‘tele-’ para trabalhar por ela própria, conduzida por programas de software em circuitos electrónicos de hardware, quer em máquinas da construção, quer nas inscrições: o robot e o computador. Depois da fotografia, do cinema e das ondas do audiovisual, é a última grande revolução moderna nas matérias de empréstimo das inscrições.
25. Ora, acontece que os engenheiros dos robots e computadores procuram os seus modelos no “cérebro”  humano. Isto deve ser sugestivo para os filósofos, encontrarem problemas filosóficos no coração de questões técnicas, e começa por chamar a nossa atenção para o facto de o “cérebro” , dispositivo de inscripção por excelência, só o ser depois de ter ele próprio sido ‘matéria de empréstimo’ das inscrições de outros “cérebro” s. Sem dúvida que ele faz parte de um sistema mais complexo, entre os órgãos perceptivos e os músculos e o esqueleto, mas como podemos encontrar três grandes eixos neste sistema, da visão ao trabalho das mãos e à caminhada dos pés, da visão ao trabalho só com as mãos e da audição à fonação, podemos fazer corresponder os robots ao primeiro, os computadores ao segundo e os telefones ao terceiro. Mas dos robots não nos ocuparemos aqui; tomaremos em consideração a) os “cérebro” s humanos, b) o papel dos livros[22], c) o computador, actualmente jogando entre visão e mãos d) e num futuro previsível entre audição e fonação também. Esta ordem, a da cronologia da sua invenção coloca-nos uma primeira diferença entre o “cérebro”  e os outros dispositivos de inscrição: ele foi inventado pela muita lenta evolução dos vertebrados, dos peixes aos símios, antes das inscrições e das construções. O que implica uma delimitação essencial do dispositivo cerebral enquanto comparável ao livro e ao computador: as tarefas essenciais de qualquer “cérebro”  animal não têm nada a ver nem com os livros nem com os computadores, não servem para nada na comparação que tentamos aqui. Em rigor aliás nem há sequer “cérebro” s, só há sistemas biológicos e fisiológicos mais ou menos complexos, implicando os órgãos ditos perceptivos e o sistema muscular ligado ao esqueleto  e à mobilidade; mas implicando de igual modo o resto do organismo, nomeadamente a circulação do sangue que o “cérebro”  controla por via hormonal, assegurando-lhe o equilíbrio homeostático (teores variados, pressão, temperatura, etc.). O sistema P-C-M (órgãos perceptivos-”cérebro” -músculos) tem a sua razão de ser na regulação necessária do organismo animal, face ao aleatório do tráfico no seu território ecológico[23], tendo em conta a predação e a fuga face à dos outros, a necessidade de assegurar as suas condições de reprodução e repouso, etc. Tudo isto pertence à essência do “cérebro”  animal, que foi inventado pela evolução para seres-no-mundo-ecológico, quer por meio dos eixos olfacto / patas, mandíbulas-gosto / patas, quer pelos eixos visão / patas, audição / emissão de ruídos, etc. Enquanto que o computador foi inventado, a exemplo do livro, para seres-nas-escritas, primeiro matemáticas e depois também alfabéticas, que existiam já e pediam matérias de empréstimo cada vez mais aperfeiçoadas. Foram os primatas antropoides que, tendo no entanto um “cérebro”  muitíssimo próximo do dos outros primatas símios, inventaram as línguas e as escritas e as construções.
26. Quer dizer que os “cérebro” s não são comparáveis aos livros e aos computadores senão a partir da invenção da linguagem duplamente articulada (oral e alfabética) e da matemática. Ora, do ponto de vista neurológico, essas linguagens são suplementares, elas inscrevem-se na rede sináptica dos “cérebro” s humanos, que nas outras espéceies vertebradas já tinha funções de inteligência, aquelas para as quais os “cérebro” s foram inventados pela evolução da vida terrestre. Dito de outro modo, se se dá a ‘pensamento’ o sentido corrente na nossa civilização, aquele que pode valer também para os livros e para os computadores, não se pode dizer que ele seja uma função essencial dos “cérebro” s animais em geral, nem ainda que, no que respeita aos humanos, se trata de uma função hierarquicamente superior em relação às outras funções cerebrais. Dizer que o pensamento humano é histórico, implica pois que ele tenha sido também ‘inventado’, que ele tenha qualquer coisa de ‘artificial’, que não se possam opor os três dispositivos em termos de ‘natural / artificial’. Trata-se de algo de positivo para a nossa comparação, que deveria poder ajustar melhor as pretensões dos engenheiros da Inteligência Artificial às dos psicólogos e dos filósofos que lhes opõem limites. É que também é positivo para o debate que se delimite o que é verdadeiramente comparável entre tudo o que um “cérebro” pode realizar[24]. Porque enfim, é positivo que um computador ou um robot não comecem a sonhar, nem a terem depressões ou orgasmos. Digamos que tentaremos aqui privilegiar as escritas e as suas operações sintáctico-semânticas, a sua aprendizagem e a sua memória.
27. Por outro lado, e é o que justifica os interesses filosóficos dos seus engenheiros, o computador está do lado do “cérebro”  em oposição ao livro, pelo facto de trabalhar, enquanto que o papel se oferece à impressão e não ‘mexe’: fica para ser lido. O computador vai mais longe do que o cinema, onde as imagens estão em movimento por meio de uma máquina mas não se alteram desde que o filme esteja terminado, enquanto que ele faz verdadeiras operações, umas que já se faziam antes da sua invenção mas que ele realiza muito mais depressa, outras, tal como certas simulações, que os humanos não estão em condições de fazerem por eles mesmos.
28. Tratar-se-á de analisar as diferentes maneiras de os dispositivos se relacionarem com as respectivas inscrições, diferentes também segundo o tipo de linguagem ou escrita utilizada.
A inscrição no papel
29. Comecemos pelo livro. A sua matéria de empréstimo, o papel, é uma superfície susceptível de inscrição do tipo tinta, assegurando quer o contraste das cores (negro sobre branco), quer a duração do material. Ela tem assim uma muito grande disponibilidade face à inscrição, no sentido dos limites impostos: qualquer tipo de alfabeto ou de outra escrita – ideográfica, matemática, desenho, fotografia, notação musical, etc. – pode ser inscrita num livro. Uma tal disponibilidade não existe do mesmo modo nos dois outros dispositivos (que exigem, um a lenta aprendizagem, o outro um software adequado), mas tem uma contrapartida, uma vez a superfície escrita não se pode mais inscrever nenhuma outra, ou seja, não há palimpsestos: nestes, ou se lê um, ou o outro texto, não os dois.
30. Um livro, numa estante, nada mais faz do que ficar entre duas leituras, é uma coisa, não é um dispositivo de linguagem. Para o ser, exige um sistema P-C-M humano que o leia. O que é ler?  Não é ‘ver’: eu posso ver com detalhe um livro escrito em russo sem poder entender uma só palavra. Mas ler também não é seguir uma palavra após a outra: é uma operação de apreensão, de compreensão das diferenças (entre letras, sintáctico-semânticas, códigos textuais, efeitos de ritmo) entre as palavras e entre as frases, das regras (a língua) que organizam o texto, incluindo palavras que não estão escritas. Quando leio a palavra ‘bem’ num texto, devo saber que é um termo mais ou menos oposto a ‘mal’, mesmo se essa palavra não figura lá. Ora, as diferenças ‘lidas’, que implicam pois também ausências, não se ‘vêem’. Além disso, ler implica, por um lado, a memória do que já se leu em páginas anteriores (sem o quê não se entende nada), mas esta memória permanece de algum modo em retiro, nem ‘presente’ nem ‘ausente’, esquecida e memorizada: não retenho de cor tudo o que já li, esqueço o detalhe, mas se volto duas páginas atrás, sei que as li, reconheço-as. E por outro lado, antecipo o que ainda não li, como que em ‘suspense’, na expectativa, no desejo de saber que me faz continuar a ler. E o que lerei ligar-se-á ao que já li: retenho os jogos das diferenças já lidas, adio ou difiro as ainda não lidas. E depois da leitura terminada, uma certa memória permanece inscrita no meu “cérebro”  (possibilidade de conversar sobre o que li, de lhe fazer um resumo, escrever uma recensão, etc.), memória essa que poderá durar mais ou menos tempo durante a minha vida posterior, permanecer esquecida durante muito tempo e voltar-me um dia por associação com um outro livro do mesmo autor, por exemplo. Relidos ou não, há livros que jamais se esquecem completamente, mas posso também relê-los alguns anos mais tarde, com uma outra compreensão, ou então compreendê-los mal, etc. Em suma, não há livro sem leitura, sem “cérebro”  de leitor.
31. Os livros permitem também escrever outros livros. Não posso escrever isto que estou a escrever, com maior ou menor competência, senão pela razão de já ter lido muitos livros na minha vida. Os “cérebro” s dos autores dos livros que li, alguns já mortos há muito tempo, são pois condição essencial das minhas leituras-escritas, os Mortos que me habitam, as suas obras inscritas duradouramente na minha memória.
A inscrição na rede neurológica
32. Já comecei portanto a falar do dispositivo cerebral. Ora, o “cérebro”  não funciona sozinho, ele está sempre engatado, enxertado numa situação dada num território ecológico. Por exemplo, os usos da casa em que habito, o seu espaço e calendário, os seus humanos e os seus objectos, inscrevem-se no meu “cérebro” , traçam na sua rede sináptica o que Changeux designa por grafos. Enquanto que os discursos orais produzidos nessa habitação, tanto os dos outros como os meus, se esquecem, as suas repetições inscrevem-se duradouramente no tempo como grafos, como memória. Por exemplo, a da minha língua materna, com as suas regras linguísticas, tanto as mais gerais como as mais subtis, tais que elas são essenciais para que eu compreenda o que me dizem e o que eu próprio digo. Essas regras, pude aprendê-las no liceu: mas já lá estavam, inscritas (como jogos de diferenças) no uso dos discursos concretos que eu ouvira  / lera / dissera / escrevera desde a minha infância, os quais discursos concretos esqueci completamente. Não é um espanto ouvir uma criança de três ou quarto anos a falar, usando correctamente regras linguísticas complexas e relacionadas entre si que nunca aprendeu enquanto tais? Ora bem, a questão mais difícil, e que é decisiva no debate sobre os computadores, é que são os grafos que são percorridos pelos fluxos nervosos dos (novos) discursos que ouço (ou leio), sem esses grafos não compreenderia nada, por um lado; mas, por outro lado, esses grafos são memória esquecida, em retiro (não presentes mas também não ausentes, já que tendo efeitos de compreensão) relativamente ao fluxo empírico que os percorre. Retomemos o livro: inscrito no papel, o texto, embora não ‘mexa’, não é ‘passivo’ à leitura, como se crê muitas vezes, trata-se outra vez da diferença entre ‘ver’ e ‘ler’: circulando como fluxo nervoso, as suas regras e palavras trabalham no “cérebro” , são reconhecidas pelos grafos, os quais portanto também trabalham. Quer dizer que aquilo que, como fluxo ‘actual’ do texto no dispositivo cerebral, é susceptível de ser reconhecido num electro-encéfalograma como rasto de frequências eléctricas, não é senão uma parte, digamos, do que (se) está a passar no “cérebro” ; a memória inscrita antes como grafo, relevando provavelmente da química (se não, como teria ela estabilidade?), deixará os seus rastos no e.e.g.?
33. Sendo um conceito teórico necessário, precioso (é o efeito retrospectivo da repetição dos percursos dos fluxos que permite reconhecê-los), os grafos talvez não sejam acessíveis à observação neurológica senão em simultâneo com o fluxo actual que o percorre. Fazendo embora parte essencial da matéria de empréstimo cerebral, no coração do enigma humano, ele resistiria à oposição entre ele próprio e a inscrição actual. Já que a rede sináptica não serve para nada sem que grafos aí se inscrevam Tendo em conta E. Kandel, (aprender é criar sinapses), estes resultam da repetição dos fluxos, é como se os grafos fossem a matéria de empréstimo (entre as redes sinápticas, eles são aquelas que são facilmente percorridas), sem serem por outro lado isoláveis do fluxo actual. É sem dúvida por isso que os neurologistas confessam tanta dificuldade em ‘apanhar’ a memória. E é talvez também a razão pela qual o “cérebro”  é, à nascença, susceptível de ser inscrito por qualquer língua do mundo, mas esta disponibilidade reduz-se à medida que uma entre elas (e depois duas ou três estrangeiras) se inscreve duradouramente (ainda que os grafos possam apagar-se por falta de uso). Ora, o neurologista, com as suas máquinas enxertadas num “cérebro”  a pensar, por exemplo, também não pode, através do seu aparelho, saber o que é que ele está a pensar, nem sequer em que língua ele pensa (M. Jouvet, estudando gente a dormir, tem de cada vez de os acordar para saber se eles sonham ou não, e o que eles sonham). E aí estamos no coração de um outro aspecto do debate actual que opõe neurologistas e psicólogos (ou linguistas, analistas do discurso, psicanalistas, etc.): os primeiros não têm acesso específico ao material dos segundos, Damásio chamou ‘mente’ ao acesso exclusivo do próprio ao que se passa nos seus neurónios.
34. Tudo isto permanece igualmente válido para um “cérebro”  que esteja a ler ou a escrever um texto em escrita alfabética, ou então a resolver exercícios de matemática. Nesses casos, a situação do território ecológico em que o “cérebro”  está engatado, enxertado, está fortemente concentrada no papel e nos traços, na mão que a vista segue. Tal como não há linguagem oral sem território humano habitado, sem a inscrição dos seus usos sociais, não há tão pouco escrita no sentido corrente sem linguagem oral, nem papel escrito, livros, cadernos escolares, etc. Também a matemática, vimo-lo mais acima, só existe no “cérebro”  porque existe escrita também no papel: um “cérebro”  não faz matemática senão com papel e lápis (ou seus equivalentes), esses dispositivos são-lhe essenciais, ela é irredutivelmente escrita, não há matemática puramente cerebral.
A inscrição nos circuitos electrónicos
35. Chegamos ao computador. Deixando de lado a ficção científica, os computadores têm necessidade, como os livros, de “cérebro” s humanos para funcionar. Mas é o seu funcionamento como dispositivo electrónico que trabalha em autonomia que nos interessa aqui. O que é um computador? Digamos primeiro que é um hardware de cabos de electrónica, em circuitos labirínticos construídos tendo em vista certas operações, estas fazendo-se segundo um percurso entre uma entrada de dados, um teclado, por exemplo (ou um leitor de cartões perfurados, bandas magnéticas), e uma saída de resultados, uma impressora, de que o écran oferece uma pré-visualização (ou ainda bandas magnéticas, cartões perfurados, etc.). Entre os dois[25], programas de software variados de que se escolhe um, oferecem sintaxes de operações sucessivas a fazer sobre os dados, regulam os percursos no labirinto, os quais exigem muitas vezes a intervenção do operador.
36. Trabalhando à electricidade (§ 24 c), esta só conhece duas possibilidades elementares: passar ou não passar, portanto 1 e 0. O que tem logo uma consequência bem conhecida: o hardware ignora até a distinção entre um número e uma letra. Ele apenas recebe do teclado 256 possibilidades, correspondendo aos octetos (bytes), combinações de oito impulsos eléctricos simultâneos de 0/1[26]. É com esses octetos (0 1 2 . ,  a b c A B C + - etc., o intervalo entre as palavras inclusive) que o software tem que fazer jogar as sintaxes operacionais, a transposição fazendo-se por três operações elementares do sistema lógico (‘e’, ‘ou’, ‘não’), inscritas no hardware. Os números da aritmética estão aí inscritos, não no sistema decimal que todos conhecemos (1, 2, 3, 4, 10, 100, etc), mas num sistema binário que só conhece 1 e 0[27]. Por outro lado, é necessário que todas as operações matemáticas que o hardware tem que operar estejam, ou inscritas na própria rede electrónica, ou traduzidas anteriormente nas que estão lá inscritas. Se ele tem que adicionar dois números, o + do software deve estar convertido na indicação desta operação no hardware[28]. A minha presunção é a de que o computador, no que respeita à matemática, não faz senão isso, e que é essa a sua positividade, a razão do seu enorme sucesso. Posto isto, os números são susceptíveis de verdadeiras operações de cálculo, a uma velocidade inaudita; mas não as letras das equações, que são apenas transpostas entre os seus dois membros, segundo as regras matemáticas, até ao momento em que sejam substituídas por números, o cálculo prosseguindo depois somente com estes. É justamente o que o matemático também faz na sua matemática de lápis e papel. Ainda aqui, não se trata de um defeito dos computadores, mas da sua positividade essencial.          
37. Quer isto dizer que o hardware é radicalmente inapto para ‘calcular’ com a linguagem alfabética: as sua únicas operações – muito úteis, cada um de nós o sabe pelo seu P. C. – são as de receber ‘representações’ de letras, acentos, vírgulas, etc. e espaços brancos separando as palavras, o que lhe permite ter também ‘representações de palavras’ (e de sintagmas mais ou menos prolongados) como sequências de representações de letras. O que quer dizer que, por razões intrínsecas ao hardware, o computador ignora a dupla articulação da linguagem (§ 9) e os seus diferentes níveis de regras, as quais no entanto se jogam ao nível do software, enquanto texto capaz de ser lido e escrito por um “cérebro”  humano. Encontramos aqui um contraste fundamental em relação ao dispositivo neuronal: o próprio software do computador não ‘lê’ as diferenças (§ 30), ele apenas ‘vê’ letras, números, sinais das operações. Quando por vezes se distingue a letra O do algarismo O, cortando este com uma diagonal, é para evitar o risco de desatenção do operador perante uma mistura de letras e números, enquanto que esse risco não existe normalmente para o “cérebro” , que lê a elipse O como letra se rodeada de letras (jogo de diferenças) ou como número se rodeado de números (idem). Aquilo a que chamei ‘representação de palavra’ implica a inexistência de diferença entre ‘significante’ e ‘signifié’ (no sentido de Saussure) – ora, esta diferença não existe na escrita matemática, sem o que ela não seria exacta. Se o hardware do computador, que só conhece 0 / 1, é cego perante a diferença letra / número, muito mais cego será em relação à polissemia (§§ 4-6). A polissemia não é uma fluidez da linguagem mas algo que resulta de regras linguístico-textuais muito subtis e precisas. Não é pois senão ao nível exclusivo do software que estas regras, ou operações, devem ser fornecidas, explicitamente, ao computador, como quem lhe ensina as regras elementares da gramática, uma a uma, como aliás os linguistas o vão fazendo com bons resultados[29], como se pode ver, por exemplo, numa teradução dum texto ingles para português que não seja de tipo literário. 
Memórias?
38. Encontramo-nos aqui perante um caso de polissemia, o da utilização da palavra ‘memória’ nos contextos da informática e da neurologia; é necessário dizer uma palavra sobre o contraste entre estes dois sentidos (não exactamente ‘dois’). O que se escreveu mais acima sobre o electro-encéfalograma (§§ 32-33) pode ser transposto para os computadores. Com efeito, um engenheiro electrónico, com os seus aparelhos de reparação do hardware engatados num computador, pode analisá-lo quando um programa de software está em marcha, mas não pode saber através desses aparelhos que tipo de linguagem informática esse programa utiliza (no caso de admitir várias). Tal e qual como os neurologistas, pois. Em ambos os casos, o conceito de matéria de empréstimo é o de uma rede ‘material’ (neuronal num caso, elementos eléctricos no outro), capaz de ser inscrita por escritas ou linguagens diversas; dum ponto de vista filosófico, dir-se-á que essas linguagens ou escritas são imotivadas em relação à matéria de empréstimo em que são inscritas, não lhe exigindo mais do que uma disponibilidade à inscrição[30]. São as suas regras sintácticas que trabalham nessas matérias de empréstimo. Mas de maneira completamente diferente, porque, num dos casos, a memória é inscrita por aprendizagem e permanece como inscrição (química)[31] essencial às operações da leitura textual, onde ela trabalha também em retiro. Pelo contrário, faz parte da positividade dos computadores enquanto tecnologia electrónica, que os seus fios não sejam afectados, modificados, inscritos duradouramente, pelo software após a sua passagem (o que seria um ruído infernal, em linguagem da teoria da informação). Se quiséssemos  falar aqui de grafos, seriam os circuitos (chips?) construídos em pormenor pelo engenheiro do hardware. Um dos aspectos desta positividade, é que um computador, desde que adaptado aos alfabetos respectivos (latino, grego, cirilico, árabe, hebraico, etc.) pode receber e tratar indefinidamente qualquer escrita alfabética, sem a aprender, sem ter memória dela, o que um “cérebro”  humano não consegue, é evidente. O computador não lê os textos, só vê letras, mas a que velocidade!
39. A autonomia do computador resulta das regras que lhe são dadas pelo software (heteronomia), mas esta heteronomia não é apagada, como na memória humana[32], ela permanece explícita como condição das operações a prosseguir. É por isso que parece difícil falar de ‘memória’ ao nível do hardware (RAM). É o software que conseguer armazenar memória, em discos, bandas magnéticas, etc., portanto sempre separada do software ‘actual’ (à maneira das bibliotecas, “toda a memória do mundo”: trata-se de um verdadeiro armazém, o que justamente a memória cerebral, jogando de forma química retirada, não é de forma nenhuma), ainda que se trate  de ‘representação’ de sintagmas ou de operações sintácticas determinadas; mas neste último caso tudo tem que ser rigorosamente explicitado pelos linguistas, com os limites actuais destas disciplinas, no que respeita à relação teórica e prática entre frase e texto. Enquanto que nós lemos e escrevemos sem sabermos linguística nem semiótica. Desta autonomia tão nova do computador, poder-se-ia dizer que se trata de uma ‘autonomia programada’. Há aí aleatório? Sem dúvida, senão não seria autonomia, não seria operatório; mas é um aleatório ‘programado’ no software de modo a que os ‘dados’ sobre os quais as operações serão feitas possam tornar-se adequados às ‘regras’ do programa, de modo a que isso não falhe. Já que ele tem que fazer o que o operador pretende, não o que ele, computador, quisesse.
O computador escuta mal
40. Ponhamos enfim uma última questão, a que indicámos como d) no § 25. Até hoje, no esforço para imitar os sistemas neurológicos, os computadores ‘trabalham’, mas não conseguem ‘escutar’: as nossas mãos pressionam os teclados, os nossos olhos lêem écrans e impressoras, mas eles não conseguem, apesar dos esforços neste sentido desde há numerosos anos, compreender as nossas vozes: seria preciso que os fonemas das nossas vozes tocassem directamente os octetos correspondentes, como fazem os toques dos dedos nos teclados. A dificuldade reside essencialmente em que as nossas vozes não produzem fonemas (‘iguais’ em todas as bocas), mas sons que mudam segundo os nossos timbres e humores: é que os fonemas não são senão as diferenças entre os diferentes sons das nossas vozes, são essas diferenças que são as ‘mesmas’, ‘iguais’, em cada uma das vozes duma mesma língua (é a grande lição da linguística saussuriana). Há aliás uma dificuldade semelhante com os scanners ao passarem as diferentes tipografias e nomeadamente as nossas diferentes ‘letras’, quando escrevemos com caneta. Enquanto que os nossos “cérebro” s aprenderam a distinguir os fonemas nas vozes empiricamente diferentes que os traçaram, nas diversas letras que as mãos grafaram: é isto a que Saussure chama ‘significante’, essas diferenças que se repetem, como condição necessária de entendimento social. Ora, a única maneira de um computador electrónico escutar (§ 24 b) é em alta fidelidade: os aparelhos acústicos telefónicos e de música (ou os scanners) – ao contrário dos teclados que são indiferentes aos dedos que possam tocá-los, a impulsão eléctrica sendo sempre a mesma – restituem todas as particularidades ou singularidades das vozes e timbres de cada um (ou das escritas à mão), sem que seja fácil destacar um núcleo empírico ‘comum’ a todos, porque este comum não é justamente empírico, segundo a leitura husserliana que Derrida fez, não identificável portanto pela corrente eléctrica. Com efeito, as diferenças entre os sons (empíricos) ou entre as grafias (empíricas) não são nem sonoras nem visíveis. É aí, parece-me que se joga, hélas!, a resistência aos esforços dos engenheiros electrónicos para conseguirem que os computadores compreendam directamente a voz dos useiros (ou então a sua escrita pessoal, ou ainda toda e qualquer tipografia).


[1] Trata-se da adaptação de um extracto de “Aristóteles e a classificação das semióticas estéticas”, comunicação ao  Colóquio de 26-28/5/86 da Faculdade de Letras sobre semiótica, em torno de Greimas. A primeira parte foi publicada com o título “Artes e media: um ensaio de classificação em Jornal de Letras, ano VII, nº 267, 17-8-1987.

[2] P. Somville, Essai sur la Poétique d’Aristote, J. Vrin, 1975, p.46, citando R. Mac. Keon, Critics and Criticism: Ancient and Modern, Chicago, 1952, pp. 152 ss. (reenviando ao cap. VII do “Système des beaux-arts” de Alain, vol. II das suas Oeuvres Complètes, Pléiade, pp. 237-240).
[3] Salvo recentemente o de ‘linguagem’, que em rigor só convém à oralidade, à sua ‘língua’.
[4] O que não pode dizer-se sem mais em relação aos “cérebro” s humanos, já que estas inscrições não são as únicas a serem recebidas por eles, mediante transformação em electricidade e química: as pessoas e as coisas são captáveis (visual, auditiva e tactilmente) ‘em directo’, pela sua ‘face’, aquilo a que os gregos chamavm eidos, o que é visto, visado (§ 13).
[5] Tal como os provérbios, por exemplo, os poemas anteriores à escrita eram ‘inscrições’ orais, quer dizer, textos fixados no seu ritmo de modo a serem repetidos tal e qual nos diferentes contextos (à semelhança do escrito). Eram civilizações com técnicas de memória muito desenvolvidas, que não se devem pois opor sem mais às sociedades com escrita. As definições e outros enunciados de teoremas, por exemplo, funcionam da mesma maneira: são também para repetir tal e qual, para evitar que mudem quando muda o contexto.
[6] No sentido de S/Z de Barthes, por exemplo, ou da leitura dos mitos ameríndios por Lévi-Strauss.
[7] O que nem o fonema nem a letra possuem: eles não significam nada por eles mesmos, retirados do campo da significação e da comunicação.
[8]  “= é ‘igual a’ ” , “+ é ‘a operação de adição cujas regras são tais e tais’ ”, etc. Para os algarismos: “3 é ‘três’ ”, adjectivo numeral polissémico como por exemplo, em 1) três maçãs que vou comer, 2) três dos meus amigos, 3) três sonhos que tive, 4) três filmes que vi, 5) três países com políticas convergentes, 6) as três pessoas da Santa Trindade, e assim por diante, em que  parece que ‘três’ não tem sempre o mesmo sentido, nem que se trata tão pouco de ‘seis sentidos separados entre eles’, que não é susceptível de uma operação de multiplicação ‘três vezes seis’, dando ‘dezoito entes’, ‘entidades’, ‘coisas’ (exemplo adaptado de C. Castoriadis, “ Science moderne et interrogation philosophique”, Enc. Universalis, vol.17, p.71).
[9] Este não é senão um entre os numerosos sistemas possíveis; um outro é o sistema binário dos computadores, jogando apenas com 1 e 0 (§ 36n).
[10] Para os exemplos simples que dou; não creio que estes raciocínios sejam infirmados pelas matemáticas modernas, que ignoro.
[11] E aí está a condição para que essas ciências sejam susceptíveis de técnica, o que não é o caso se a matemática utilizada for de tipo estatístico.
[12] Sem dúvida, a Física desenvolveu-se ao encontrar equações mais gerais permitindo unir campos antes isolados na clausura das equações. Isto não me parece infirmar a demonstração que estou a tentar. Poder-se-ia aliás dizer-se que o princípio de discernimento das etapas da história da física é, por um lado, o do estabelecimento de novas equações e portanto de novas regiões físicas, e por outro lado, o do estabelecimento de equações mais gerais integrando e unificando algumas regiões físicas cujas equações se revelam ser casos particulares daquelas que se acabam de descobrir (Newton em relação a Einstein, por exemplo célebre). 
[13] Como o mapa é e não é o território
[14] Como se constrói ‘eidético’, a partir de eidos.
[15] Ver L. Gervereau, Voir comprendre analyser des images, La Découverte, 1997.
[16] A articulação  do cinema e da banda desenhada é paralela à das narrativas em sequências e capítulos, a que eu chamaria narratividade, já do nível do discurso, acima do da frase
[17]  “Chine-Littératue”, Enc. Universalis, vol.4, 1974, pp.310-311.
[18] Belo, A conversa, linguagem do quotidiano, Presença, 1991, § 24.
[19] Bernard Stiegler, “L’image discrète”, in J. Derrida e B. Stiegler, Écographies, de la télévision, Galilée-INA, 1996, p. 168, que cita A. Bazin (“a objectividade do objectivo” da fotografia) e R. Barthes (“isto sucedeu”, noema intencional da fotografia). Já não é o caso da imagem numérica, que, tornando-se, por assim dizer, fotografia desenhada, retorna à tradição com que a química da luz tinha rompido 
[20] O que pode ser verdade inclusive da matemática: uma barragem, uma ponte, serão tanto mais belas quanto o seu cálculo tiver sido matematicamente económico. Se bem me lembro, e me fôr permitido, tive uma verdadeira emoção estética numa aula sobre estruturas das pontes, como a sua linha de influência (curva matemática dos momentos das forças às quais serão submetidas) coincide com a sua flecha, a curva da deformação elástica do seu eixo.
[21] Aristóteles fez dela um termo filosófico que os latinos traduziram por matéria.
[22] Em certo sentido pode-se dizer que o leitor é ‘inscrito’ pelo texto que lê, tal como pelas falas dos outros. O que aliás também vale para o cinema e outras obras de arte.
[23] É pois sobretudo o organismo inteiro que é uma máquina (com regras que jogam para fazer face ao aleatório), e não o “cérebro”  sozinho. Por isso as aspas em “cérebro”.
[24] O que se deixa aqui de lado, por razões de economia do próprio debate, terá no entanto relação com as dificuldades que se encontrarão mais adiante.
[25] E supondo um logicial tipo Windows.
[26] Um pouco como os sinais de Morse; eram esses octetos que se inscreviam nos cartões perfurados na época dos antigos computadores.
[27] 2 é 1+1=10, 3=11, 4=100, 8=1000, 32=100000; quer dizer, 2n=1 seguido de n zeros. Em seguida, 33=100001, 34=100010, 35=100011, etc.
[28] Tal como aliás pode jogar com desenhos, fotografias, etc. segundo processos que desconheço.
[29] Penso nomeadamente nos grandes quadros de distribuições sintáctico-semânticas elaborados pela equipa de Maurice Gross.
[30] Quer dizer, e isto tem relação com o conceito de máquina proposto logo no início, que nem a biologia do “cérebro”  nem a rede electrónica do computador determinam (no sentido da causalidade mecânica clássica) os fluxos que os percorrem. É a importância do motivo da inscrição: esta vem de fora, impede a oposição entre interior e exterior no funcionamento dos ‘dispositivos’, cerebrais ou electrónicos.
[31] A electricidade neuronal é feita de iões de sódio e potássio, o que a presta a reacções químicas nas sinapses, ao contrário da electricidade industrial, feita de electrões. 
[32] A memória da nossa língua só nos serve porque as vozes dos outros que no-la ensinaram se apagaram, como condição da autonomia da nossa fala.