1. Entre os numerosos usos sociais[1]
que as sociedades como a nossa transmitem de geração em geração, renovando-os
sem dúvida e acrescentando-lhes invenções novas que se tornarão usos a transmitir
também, poderemos distinguir os que têm finalidades técnicas de habitação,
construidos segundo essa finalidade, de outros usos, como os enunciados no
título, também se reproduzindo de geração em geração e muito mais se alterando
ainda porventura, cuja especificidade poderia ser dita talvez como Alain do mimêma pictural: “uma inscrição numa
matéria de empréstimo”[2].
Esta matéria de empréstimo, acrescentaria eu, pode ser quer sonora, quer visual
ou táctil. Com efeito, a linguagem oral – enquanto sistema de diferenças
linguísticas, os significantes – inscreve-se na matéria sonora que ela
reelabora, tal como a escrita e as imagens (pintura, desenho, fotografia,
filme) em superfícies visíveis, a música sendo ainda um outro exemplo de inscrição
sobre matéria sonora.
2. Estranhamente, estas diversas
“inscrições numa matéria de empréstimo”, estes usos que não são como os outros,
não parecem ter um nome comum, como se a cultura ocidental não tivesse dado
pelo que as liga enquanto usos semelhantes[3].
De certo modo, também são técnicas que implicam saber e habilidade, inscrições
de habitação que sobrevivem à morte das gerações, à maneira dos utensílios, dos
diversos edifícios, do urbanismo, etc. Mas estes são “inscrições numa matéria”,
como dizer? específica para funções de habitação determinadas, muitíssimo variadas
segundo as sociedades: matérias ‘funcionais’, digamos, não se poderia falar de
empréstimo a seu propósito. Todavia estas palavras, ‘técnica’, ‘habitação’,
‘uso’ podem fazer pensar em ‘instrumentos’ ou em ‘coisas’, ou até em ‘meios’, e
é isso que elas não são de forma nenhuma: sendo aquilo de que se ocupam a
escola e o que se pode chamar instituições de circulação cultural, elas são na
verdade os únicos ‘produtos’ – e isto serve para precisar um pouco mais esta
noção vaga de ‘matéria de empréstimo’ – que podem deixar a sua “matéria de
empréstimo”, serem transformados em electricidade e enviados (‘tele-‘) a longa
distância e voltarem de seguida à sua “matéria de empréstimo”, os únicos assim
susceptíveis de serem manipulados por computadores, de circularem na Internet[4].
Linguagem duplamente articulada: poema e
definição
3. Para delimitar a diferença entre
a linguagem duplamente articulada e as outras formas de inscrição socialmente
duráveis, ocupar-me-ei aqui um pouco do texto poético, aonde encontramos a linguagem
(oral e escrita) na sua maior força e complexidade. Diria de modo aproximado
que se chama poema a um texto em que, por razões intrínsecas, não se pode
separar o jogo significante – sonoridades rítmicas e aliterantes – do jogo do
sentido ou do pensamento, nem tão pouco separar oralidade e escrita[5].
Poder-se-á objectar que qualquer texto é uma tal impossibilidade; é certo, mas
o poema é o texto em que esta resistência é, de certo modo, mais visível, mais
palpável, no sentido em que ele resiste à tradução exacta, à paráfrase, ao
resumo em que se perde enquanto esse texto, esse texto-pensamento. Dito de forma
mais técnica, o poema é o texto que joga a fundo com a unidade da dupla articulação da linguagem
humana, a dupla economia da repetição de diferentes significantes, entre os
fonemas/letras e as palavras, por um lado, entre as palavras e as
frases/textos, por outro, com a unidade indissociável do significante e do
‘signifié’.
4. Assim, por exemplo, um poeta terá
a possibilidade de jogar com as diferenças significantes de basta, bastante,
bastar, bastão, bastardo, besteiro, besta, bosta, busto, bispo, bicho, palavras próximas nos seus
significantes e cujos sentidos podem aproximar-se ou não entre eles; este tipo
de jogo é bastante diferente no entanto do que há entre os opostos como bastante
/ pouco, por
exemplo. É um jogo que pertence àquilo a que Derrida chamou disseminação, de
que faz parte também a polissemia, segundo a qual o mesmo significante muda de
‘signifié’ (Saussure) segundo o contexto em que se insere, quer se trate de uma
palavra ou de uma citação mais longa. O poema seria pois um jogo pensante de disseminação,
seja qual for a consciência que o poeta tenha disso.
5. Uma outra consequência da disseminação
numa linguagem duplamente articulada, é a impossibilidade de dar uma fronteira
ao poema: a sua escrita ou leitura implica relações essenciais a outros textos,
poéticos ou não, quer ao nível fonético e das palavras, quer ao nível da
sintaxe-semântica e dos códigos textuais[6].
Sem esta relação – susceptível de uma certa transgressão –, que se
constrói a partir das leituras e falas anteriores do poeta e que é
rigorosamente incontrolável por ele, nenhum poema seria legível. Como qualquer
texto que seja, sem cisões possíveis. Mas é sem dúvida também o caso dos outros
jogos de inscrição, a escrita matemática sendo aquela que melhor se defende da
chamada intertextualidade.
6. As ciências e a filosofia não
teriam sido possíveis sem uma arma de defesa contra a polissemia, tão
importante para o narrativo e o discursivo, os textos que dizem o singular, os
acontecimentos: foi a definição, as fronteiras à volta da polissemia da palavra definida para não reter
senão um só sentido. O mesmo é dizer que os textos gnosiológicos jogam em
sentido inverso ao da poesia: eles privilegiam o ‘significado’ assim definido,
o conceito (a ideia, a representação mental europeia tem aí a sua origem) e
desconfiam do significante, do seu jogo de disseminação, das palavras que mudam
segundo as línguas. Esta forma de fazer tende para a universalidade, uma das
suas incidências é a exclusão para fora das suas fronteiras de qualquer marca
singularizante: ‘eu’ e ‘tu’, ‘aqui’ e ‘agora’, o ‘presente’ e o ‘aoristo’, os
tempos e os modos dos verbos. A invenção do texto gnosiológico – o dos saberes
filosófico, lógico e científico – foi assim uma ruptura com as narrativas e os
discursos situados temporalmente e espacialmente; é a escrita do que valerá
unicamente pelas suas definições e argumentos, tanto faz quando, tanto faz
onde, tanto faz para quem. Trata-se pois de ficção, porque ao compor-se
como intemporal e válido em qualquer lugar, ela denega a sua própria situação
de escrita. Sem dúvida que nós nos tornámos mais modestos nas nossas pretensões
ao conhecimento científico, que sabemos ser histórico e relativo, no entanto,
esta estrutura gnosiológica dos textos científicos continua a ser necessária,
definidora da ciência como projecto de saber, aberto há vinte e cinco séculos
pelos Gregos. Desde o “que ninguém entre aqui que não seja geómetra” inscrito
no frontispício da Academia de Platão até à fenomenologia do matemático
Husserl, passando por Renatus Cartesius, aquele que geometrizou a álgebra com o
seu sistema de coordenadas, por Kant o newtoniano e por alguns outros, o privilégio
filosófico do conceito teceu a aliança, cheia de “finesse”, com as matemáticas,
com “o espírito de geometria” pascaliano.
A escrita matemática
7. A escrita matemática não é
duplamente articulada: contra o que parece à primeira vista, ela ignora o nível
fonema / letra. Sem dúvida que o seu nível mais elementar só conhece, por
regra, um único carácter, mas ele corresponde às palavras da linguagem
duplamente articulada, já que ele tem um sentido[7]
atribuído convencionalmente por uma definição prévia, feita aliás em discurso
duplamente articulado (por exemplo, “R é o raio de uma circunferência”). A
matemática só conhece pois um nível, o que articula palavras e frases em
equações. Por exemplo, a equação da circunferência cujo centro está no ponto de
cruzamento dos eixos das coordenadas:
x2 + y2 = R2
As equações podem ser transformadas, segundo
regras sintácticas codificadas,
______
x2
= R2 - y2
e x=± V R2 - y2
por exemplo, de modo a que estas equações sejam
equivalentes. Isto implica que uma equação (ou um sistema de duas ou mais
equações, isso não altera nada aqui) seja fechada em relação às outras, que
possuam outras definições convencionais (R pode ser a resistência eléctrica em
equações da Electro-estática, por exemplo). A matemática não forma pois texto a
outro nível que não seja o das suas frases (as suas equações), pelo menos se
definirmos texto como uma sucessão de frases relacionadas entre elas mas que
não se repetem quanto ao sentido. Tudo isto implica que a matemática tenha só
uma articulação, e esta é uma primeira boa razão para que o termo ‘linguagem’
não lhe convenha em rigor. Ao contrário da linguagem duplamente articulada e
radicalmente imotivada, o significado matemático é, de jure, prévio (na língua do matemático)
ao significante, este sendo justamente uma convenção: portanto nem polissemia
nem disseminação (excepto em caso de erro) por definição da convenção
matemática, concebida para evitar todo o efeito polissémico. Quer isto dizer
que ela foi concebida para ser monossémica, unívoca, em suma exacta. Estou a descrever a sua finitude,
a sua positividade, e não defeitos! Ela é também exaustiva, o que o discurso duplamente
articulado, estruturalmente elíptico, não pode ser: não se pode nunca dizer
‘tudo’ sobre o que quer que seja.
8. Ela foi também concebida para ser
exclusivamente operatória, o que lhe vem de uma característica sua, a de ser composta por
caracteres, quer dizer, de ser essencialmente uma escrita, implicando os olhos, as mãos, um
lápis, o papel ou similar, em suma os instrumentos da matéria de inscrição; se
somos capazes de resolver mentalmente certas operações simples, isso não é no
entanto verdadeiro para a maioria dos casos – multiplicar 3197 por 7913, raiz
quadrada de 7 ou de 23, resolução de equações, etc. –, que se tem que fazer
estruturalmente por escrito. É certo que ela tem necessidade, na colocação dos problemas, na condução
das suas operações e na interpretação dos resultados, ela tem necessidade da
oralidade da linguagem humana, que lê ‘dois mais dois é igual a quatro’ em
2+2=4. Mas esta oralidade não joga na operação matemática, que é exactamente a
mesma para um português ou para um alemão. Puramente convencional – quer dizer
que ela exige línguas duplamente articuladas a montante e a jusante –, a
escrita matemática é universal em relação a essas línguas, ela não precisa de
ser traduzida:
3 197x7 913 = 25 297 861, é igual para os portugueses e franceses e não
é a mesma coisa que ‘três mil cento e noventa e sete vezes sete mil novecentos
e treze é igual a vinte e cinco milhões duzentos e noventa e sete mil
oitocentos e sessenta e um’ em português, porque em francês diz-se ‘trois mille
cent quatre-vingt diz sept multiplié par sept mille neuf-cents treize est égal
à vingt-cinq millions, deux cents quatre-vingt dix-sept milhe, huit-cents
soixante-un’. Sendo operatória, ela não é pois ‘pensamento’ no sentido corrente do termo, o qual só
funciona nas línguas duplamente articuladas; estas no entanto são necessárias
para estabelecer as convenções das características matemáticas, talvez não para
‘seguir’ as operações (os computadores calculam ‘sem língua’). E é uma outra
boa razão para que o termo ‘linguagem’ não lhe convenha em rigor.
9. O que são então as ‘palavras’
matemáticas, com as quais se escrevem as frases-equações? Há caracteres
sintáxicos, os que indicam as operações (+, =, o traço das fracções, os
expoentes, f(x), etc.), segundo regras exactamente convencionadas[8].
Depois, há duas espécies de caracteres semânticos: primeiro, os algarismos. Nós
usamos nove, segundo o sistema decimal árabe, ao qual por razões de economia,
se acrescentou o algarismo vazio 0, para fazer o décimo como 10 (e mais adiante
o 20), depois faz-se seguir duas vezes o primeiro como 11, etc., de modo tal
que os números de vários algarismos parecem uma palavra com vários caracteres,
mas não sendo de facto mais do que uma convenção para as operações de adição
(741=700+40+1)[9]. Os números
inteiros definem-se a partir dos números elementares (os dedos das duas mãos)
por adição de 1 ao anterior (n+1), os outros por divisão ou outra (1/3, raiz
quadrada de 2, etc.). Em seguida, as letras. Estas podem ser constantes (a
substituir por um número que, num problema concreto, tal como R para uma circunferência
dada, é sempre o mesmo) ou variáveis (que são também para substituir por
números, como x e y no exemplo: para cada valor de y encontra-se, pela
resolução da equação, dois valores simétricos para x, o conjunto dos números
que assim achamos permitindo o desenho da circunferência em questão). Quer
dizer, as letras em matemática valem por números, conhecidos ou “incógnitas”, e
a resolução de uma equação consistirá, como tendência pelo menos[10],
em chegar a resultados numéricos pela substituição progressiva e regrada das
suas letras.
10. O que é então uma equação (ou um
sistema de equações)? É uma frase–texto, cuja constelação das
variáveis define um tipo de problemas a resolver. E nisso se basta, nisso ela é exacta, é bem a
sua finitude, a sua fecundidade. Por exemplo, na ciência física, a cada
variável corresponde uma dimensão mensurável segundo padrões convencionados
(metro, segundo, grama, ampère, etc.), as medidas de experimentação dando
os números que permitirão a resolução dos problemas[11]
da região da física à qual a equação pertence. Em matemática, como nas ciências
que a utilizam, os problemas são isolados uns dos outros, como as suas equações:
trata-se de fragmentos operatórios. É por isso que as matemáticas não permitem
elaborar textos. A resolução de um problema matemático consiste em transformar
uma frase, uma equação (ou um sistema de várias equações), noutras frases ou
equações rigorosamente equivalentes. Nomeadamente as letras, constantes ou
variáveis, devem ser adequadas a cada caso (pelo menos numa região restrita da
física, da geometria ou outra). Sem o quê depressa se esgotariam as letras dos
alfabetos latino e grego. Em resumo, as matemáticas são essencialmente fragmentárias : cada equação (ou sistema de
equações) é autónoma em relação às outras[12].
As imagens
11. É o quê, uma imagem, precisamente? Já
Platão punha a questão no Sofista, as imagens (eikona) como discursos (logoi), para saber como podiam ser falsos.
Como podiam os Sofistas enganar os jovens? (234c). Para responder, ele
introduz, mais do que a oposição exclusiva (de Parménides) entre ser e não-ser
(ou é um ou é outro), a diferença não exclusiva entre o mesmo e o outro (diferenças
susceptíveis de mistura recíproca, de terem algo em comum). O que nos permitirá
dizer que, a imagem sendo outra do que a coisa de que ela é a imagem, ela é ao
mesmo tempo o mesmo do que essa coisa (sem o quê ela não seria uma imagem de, não seria nada, apenas riscos feitos
ao acaso) e o seu outro (a sua imagem, visto que se separa dela, se desloca para outro lado, pode sobreviver-lhe,
etc). A imagem é e não é a coisa[13]. Imagem verdadeira, se a sua composição – a mistura das cores e da linhas,
nomeadamente as suas proporções – permanece a mesma do que a da coisa, falsa se
não for esse o caso. Como para o discurso, que é o que de facto interessa
Platão neste texto: aqui a mistura é dupla (assinalada aliás em passos
diferentes do texto), entre letras para construir palavras (e esta mistura
depende de uma arte e das suas regras, não é de qualquer maneira) (253a), entre
nomes e verbos para fazer uma frase (262a-b): se a mistura é boa, adequada ao
que ele diz (“Teeteto está sentado”), o discurso é verdadeiro, se não (“Teeteto
voa”), é falso. O mesmo é dizer que Platão, para fazer a distinção decisiva
entre discurso verdadeiro e discurso falso, põe o dedo na dupla articulação da
linguagem, o que nos permite estabelecer uma diferença entre imagem e discurso ou
fala: esta articula-se duplamente a partir de elementos (fónicos: os fonemas;
ou gráficos: as letras) que não são imagens de nada, que permanecem absolutamente
imotivados em relação às coisas que as palavras designam ou nomeiam (o que as
diferenças entre as diversas línguas atestam). É esta dupla articulação que
permite à linguagem, ao discurso, produzir sentido, pensamento. Também o nome é
e não é a coisa nomeada, mas de um modo muito diferente do das imagens: o mesmo
nome “cão” pode designar cães bem diferentes, para designar ‘este’ cão, são-lhe
necessários determinantes (artigos definidos, demonstrativos) no discurso. Não
a imagem: a de um cão, é a deste cão (quer ele exista ou não, pode
tratar-se de um desenho inventado), e mais nenhuma outra. Toda a
imagem é singular.
Mas não pelo facto do seu objecto ser particular (os discursos também falam
habitualmente de objectos particulares): podem fazer-se centenas de fotografias
ou de desenhos de uma mesma personagem, com enquadramentos e perspectivas
diferentes, cada uma destas imagens é singular (do mesmo modo podem dizer-se ou
contar-se numerosas coisas desse mesmo personagem). Não têm articulação (como a
linguagem, a matemática e a música), este motivo implicando linearidade e discreção; não são susceptíveis pois de comutações,
não consistindo senão na sua visibilidade, na sua ‘imagética’[14]
(o que se ‘vê’ numa imagem, o seu conjunto de traços-cores-sombras: superfície
ou volume), uma imagem não é ‘resumível’, não é traduzível nem transferível
para outra coisa, ela não é susceptível de polissemia, não tem sentido, não tem
pensamento discursivo. Ela basta-se a si mesma, não pede outras imagens
para ter sentido de imagem, mais frequentemente uma legenda dizendo o contexto:
é uma legenda de narratividade, dita ‘guião’ quando ‘guia’ uma sequência
fílmica de imagens. Quanto ao discurso, este relaciona-se com a imagem do mesmo
modo que com a coisa: ela pode ser nomeada, descrita, permanecendo outra do que
o discurso que a diz. É sem dúvida por isso que as tentativas semióticas sobre
as imagens têm, ao que parece, bastante dificuldade em se estabelecerem[15].
12. Não há uma imagem ‘pura’. Por um
lado, não há imagem senão em composição, em contexto de imagens, num plano,
como se diz em linguagem cinematográfica, este contexto sendo habitualmente
delimitado, enquadrado num rectângulo; o jogo das diferenças contextuais entre
as diversas imagens de um mesmo plano tem efeitos sobre as ‘imagéticas’
respectivas que mudarão se o plano muda, se uma das imagens se desloca para outro
contexto. Quer isto dizer que um realizador, tal como um fotógrafo ou um
pintor, joga com as suas imagens enquadrando os seus planos (perspectiva,
grande plano ou panorâmico, luz, etc.), já que o rectângulo-clausura exclui
sempre muitas imagens do contexto da realidade filmada ou a pintar. Como ele
joga também com elas em relação ao contexto das sequências de planos, tanto no
jogo da câmara como no da montagem. Não há pois imagens-em-si, não há senão planos
de imagens e
sequências de planos. Compor um quadro, uma fotografia, um filme, é sempre seleccionar
entre numerosas possibilidades. Desenhar uma imagem sem contexto, sozinha, ou
apagar o seu fundo numa fotografia, não é senão uma dessas possibilidades.
13. Por outro lado, não há tão pouco
imagem ‘pura’ por ela sempre ser, no seu contexto de planos, jogo de forças, de
afectos, de conflitos e de amores, de desejos e rivalidades. Nós não temos imagem
de nós mesmos: o nosso retrato, olhamo-lo ‘como’ o de outro que não conhecemos
‘tal’ como a imagem no-lo mostra. A imagem é sempre imagem de um outro de que
se visa a face, o visto, o aspecto, o eidos, diziam os Gregos. Tomemos de Rorty o exemplo
aristotélico do conhecimento que se pode ter de uma rã que se olha. Recebe-se o
seu eidos, a sua
‘forma’, sem no entanto nos tornarmos numa rã (como acontece à cria desta rã,
que também dela recebeu o eidos). Mas tornamo-nos de algum modo rã por este eidos recebido, quando reconhecemos, com
um mínimo de familiaridade, outras rãs. A rã dá-nos a sua imagem, que se torna uma ‘parte’ de
nós, do nosso ‘imaginário’, como se diz, ela agarra-nos, prende-nos, liga-nos, como o sabemos quando
se sonha com ela, quer dizer, quando uma imagem de rã (compósita talvez, deformada,
pouco importa) vem, de nós e em nós, com uma nitidez e uma intensidade extraordinárias,
tomando a iniciativa, se pode dizer-se, movendo-se, fazendo ruídos, etc. A
coisa dá-nos a sua imagem e prende-nos a ela, modifica-nos com ela. Mas a rã
encontra-se numa bela pedra, na margem do rio onde assim fomos captivados pela
rã como o Principezinho, e eis que nos tornamos pedra, rio, que nos separamos
da rã: a sua ‘imagem’ permanece grafada em nós, fica ‘nós’, sem perder a rã
(senão já não seria uma imagem), mas perdendo-a na sua empiricidade real, digamos;
a rã ‘morre’ para nós, esta ‘morte’ sendo a condição da sua sobrevivência em
nós, tornada memória-nós. Porque o nosso saber, o nosso conhecimento no que
respeita às coisas, às pessoas, é constituído pela amálgama dessas imagens-nós.
Tomei o exemplo da rã, parece evidente que tudo isto é ainda mais forte nas
nossas relações com os outros humanos, tecidas de desejos, de afectos, de rivalidades,
etc., aos quais estamos ligados por essas imagens-nós, são eles sobretudo que
vêm sonhar nos nossos sonhos.
A música
14. Apesar da minha ignorância, é
interessante caracterizá-la para chegar a uma consideração geral deste conjunto
assaz heterogéneo “de inscrições numa matéria de empréstimo”. Tal como a
linguagem oral, também ela é feita de diferenças-repetições sonoras, que se dão
numa linearidade sucessiva (espaço-tempo), a da melodia. Mas ela só possui uma
articulação: entre fonemas e frases, sem o nível intermediário, o das palavras.
Com efeito, as ‘notas’ são sons elementares (não segmentáveis) que não são imagem
de nada; todavia, em vez das modulações da voz (aperto maior ou menor da glote,
vibração das cordas vocais, posições diversas da boca...), a música joga nas
diferenças-repetições temporais dos sons em extensão (breve, colcheia, fusa,
etc.), os seus intervalos, ritmos e outras medidas, nas diferenças-repetições
de frequência, entre grave e agudo, de escala musical (dó, ré, mi...), nas
diferenças-repetições de timbre (espectro-harmónico, mudando segundo as vozes e
os instrumentos) e de amplitude (intensidade dos acentos). Essas diferenças-repetições
sonoras não se prestam a formar palavras que reenviassem a outra coisa que não
a música; é o que permite também a harmonia, parece-me, a simultaneidade de
mais duma linha melódica, o que a linguagem oral exclui firmemente, sob pena de
não haver comunicação. E permite também o canto, combinação da linguagem oral e
da música numa só sucessão sonora em que se inscrevem os dois tipos de
diferenças: se se imagina o canto por uma voz que não seja acompanhada por um
outro instrumento musical, dir-se-ia que é a própria palavra que é musicada
pela melodia: os mesmo sons e no entanto dois registos de diferenças.
15. Estas indicações muito simples
permitem compreender uma diferença capital da música em relação aos outros
jogos de inscrição: só ela é rigorosamente imanente, não valendo senão pela
arte da sua composição (e da sua interpretação), susceptível de muitas espécies
de músicas diferentes. Excepto talvez para as correspondências entre músicas e
emoções, devidas às cumplicidades entre as oscilações de umas e outras, a
imanência faz da música uma arte ‘abstracta’, como se diz, logo universal por
direito, ‘a arte’ sendo o que nela nos dá ‘emovância’.
Um quadro sinóptico
16. Para concluir, tentemos uma
comparação sinóptica entre estes diversos jogos de inscrição, colocando-os numa
tabela oferta a um olhar (a uma óptica) de conjunto (sin-), embora haja dois
que só dizem respeito à sonoridade. Por outro lado, entre aqueles que respeitam
à visibilidade (e por vezes ao tacto: o alfabeto Braille testemunha-o), as imagens
destacam-se em que, jogando na superfície ou plano, elas não se articulam
segundo a linearidade, não são susceptíveis de segmentação em elementos simples
e discretos; o que é sem dúvida uma razão para que sejam singulares. Ter-se-ia
assim um quadro das possibilidades de articulação de unidades discretas segundo
a linearidade: a linguagem oral e duplamente articulada, entre fonemas,
palavras e frases, a escrita matemtica que se articula entre palavras e
frases, a música entre fonemas e frases, as imagens enfim que não se articulam
linearmente[16]. Em relação ao que é próprio da
escrita, poder-se-ia encarar os seus diversos espécimens históricos segundo um
percurso completo deste quadro. As imagens da pintura e do desenho seriam as primeiras
escritas conhecidas, os hieróglifos a passagem a figuras podendo significar
(sobre os discursos) as coisas visíveis numa sequência linear; os caracteres chineses
corresponderiam aos da matemática, cada ‘conceito’ sendo significado pelo seu
carácter, de tal modo que, ao que parece, a mesma escrita pode servir para
línguas diferentes, que não se compreendem entre eles[17].
O alfabeto chega enfim à dupla articulação e à sua capacidade de segmentação
para descrever as coisas. Quanto à música, fica à parte, na sua imanência
altiva, mas encontrou também uma escrita que lhe é tão adequada que os seus
sons são designados através desta notação, como ‘notas’.
17. As quatro casas deste quadro
parecem irredutíveis entre elas, a música sendo, ao que parece, a que mais
resiste a qualquer tentativa das outras inscrições que quisessem dobrá-la: não
se pode ‘dizer’ uma música, nem desenhá-la, colori-la, filmá-la; ela presta-se
no entanto a um certo tratamento matemático, desde os Gregos. A linguagem pode
ler as equações matemáticas (sem as substituir, como vimos), pode descrever as
imagens mas pondo em sucessão o que se dá numa composição simultânea e deixando
sempre muitos restos, dado o seu carácter elíptico estrutural (quer dizer que a
linguagem se comporta face às imagens como a qualquer outra realidade). A
escrita matemática conseguiu formular proposições lógicas, como já o tinha
feito para as figuras geométricas (cartesianismo) e parece estar à medida de
fazê-lo doravante para qualquer imagem electrónica (imagens ditas numéricas:
decomponíveis segundo pontos e recomponíveis, sem que elas se tornem todavia
unidades discretas). Enfim, se as imagens, cinematográficas por exemplo,
conseguem, de uma certa maneira, redobrar as narrativas, os discursos não lhes
resistem menos. "Eu perguntava-me em que é que ela acreditava ao certo” ou
"a essência não é visível dela mesma, por definição”: não haverá nestes
enunciados uma única palavra susceptível de ser substituída por uma ou várias
imagens.
18. A linguagem oral tem um privilégio,
sem o quê o logocentrismo seria irracional: é o único destes jogos que é
organizado segundo um retiro no próprio sistema (os fonemas, § 6), tendo se lhe juntado
historicamente as letras dos alfabetos. Daí que ela seja a única a jogar um
papel estrutural na reprodução de todos os outros usos sociais, incluindo
imagens, músicas e matemática; daí também que só a escrita alfabética tenha permitido
historicamente o texto gnosiológico da filosofia, lógica e ciências, onde no
entanto as figuras geométricas e astronómicas, pelo menos, e a aritmética
jogaram um papel irredutível à dupla articulação. Privilégio também pelo facto
de toda a gente falar esta linguagem oral, segundo a sua autonomia singular,
enquanto que os outros jogos exigem especialistas mais ou menos dotados. Mas
este privilégio tem um preço grande: sendo a única universal no sentido que
acabamos de dizer, de que toda a gente tem parte nele essencialmente, ela é a
única que não é universal de direito: varia segundo as comunidades, segundo os
povos, o que a torna útil dentro da cada comunidade é o que se torna obstáculo
entre comunidades diferentes. O que o retiro doa, a autonomia de cada um na
comunicação, tira-lhe também. É um escândalo para a razão: todos os outros
jogos de inscrições são por direito universais (embora obstáculos culturais
podendo apresentarem-se de facto). Foi contra este escândalo de Babel que a
razão europeia inventou a representação.
19. O quadro deixa-se ler também
segundo a economia da verdade – respeitante à relação com os outros usos – e da
liberdade – respeitante à composição segundo regras. Designemos os diversos
níveis das unidades lineares (abaixo da composição do discurso ou da melodia):
o nível mais baixo é o das unidades imotivadas em relação a outras coisas, o nível
intermediário é o das unidades de referência, o nível da frase enfim é o das
unidades que fazem sentido. A liberdade seria máxima na música, sem unidades de
referência, dependente apenas do sentido das frases musicais e do jogo de composição
da melodia: a sua imanência, excluindo qualquer relação de verdade com os
outros usos, interditaria uma qualquer ‘objectividade’ do erro, que não poderia
resultar senão de falhas de gosto antropológicas, respeitantes às regras
estéticas de composição; não haveria pois também mentira, toda a música sendo
estruturalmente ficção. As matemáticas estariam nos antípodas. Sem unidades
imotivadas, as suas unidades de referência têm uma relação estritamente
definida pelas suas convenções ao uso de contar unidades ou de medir: as suas
regras derivam dessa relação e jogam de tal maneira que não há praticamente
liberdade que não seja ‘erro objectivo’. Por razões que parecem inversas,
porque aqui a exactidão torna mínima a ficção (excepto nas convenções de invenção),
também não haveria mentira nas matemáticas.
20. A relação referencial das
palavras da linguagem e das imagens às coisas (muito variáveis) implica nelas
um outro registo da questão da verdade. Como argumentei noutro lado[18],
a capacidade de dissimulação é necessária à autonomia pertinente de cada um, à
sua liberdade, o que implica portanto capacidade de mentir, de guardar segredos,
de fazer ficção, cada sociedade dando-se os seus critérios de verdade, morais
antes de mais (a difamação, mentira que prejudica outros, destaca-se do erro),
estéticas também nas duas modernidades, a da Antiguidade e a nossa, em relação
à liberdade de composição poética e literária. Foi a fotografia que introduziu
uma alteração notável desta questão no que tem a ver com o mundo das imagens
(na pintura dita abstracta não há imagens, ela não é aqui contemplada):
enquanto que a pintura havia já suscitado dúvidas éticas a Platão no Sofista
(235e-236c), o
carácter maquinal e químico da fotografia, a química da luz, produz um efeito
de real (R. Barthes, La chambre claire), implica a convicção forte da sua verdade,
apesar das manipulações possíveis (tudo somado relativamente raras até à
recente numerização): “o que é visto no papel aconteceu realmente: é um
atributo essencial da fotografia analógica”[19].
Enquanto que no cinema, a artificialidade dos cenários, as escolhas de planos e
os seus cortes, o jogo de elipses, a montagem e outros elementos da composição
dos filmes depressa mostraram que ele relevava da ficção, com
possibilidades de truques, de erros e de mentiras, como a pintura desde sempre.
Artificções
21. Seria preciso ainda
perguntarmo-nos, os músicos pretendendo sem dúvida que a sua música se
relaciona com o mundo, com a vida, seja qual for o modo de falar deles, seria
preciso pôr a questão de saber que verbo (descrever, dizer, narrar, contar,
figurar, evocar, cantar... o mundo) poderia dizer a relação destes quatro (ou
mais) ‘tipos’ de usos não como os outros, destas inscrições em matérias de empréstimo,
aos outros usos e coisas. Sem nome comum, sem verbo comum tão pouco? Em resumo,
a linguagem é um modo de dizer as coisas, a matemática de as contar e medir, a
pintura e o cinema de as imaginar, a música enfim de as fazer cantar.
22. Renunciemos pois a encontrar um verbo
comum, mas não a um nome. Ele deve dizer a composição, como em qualquer uso,
em qualquer técnica, mas enquanto que nos outros usos, em geral, os
useiros não são destacáveis deles, de que fazem parte intrínseca (um robot não
faz ‘usos’, faz parte do mundo das máquinas, da produção), sublinhemos pela
palavra ‘artifício’ a autonomia ganha por essas composições, no sentido em
que elas são estruturalmente reproduzíveis fora do compositor, em que é essa a sua razão de ser.
Não se trata pois somente de um ‘artefacto’, mas sobretudo de um ‘artifício’: o
sufixo ‘-fício’, ao contrário de ‘-facto’ (os dois dizendo ‘fazer’), diz também
o seu carácter ‘fingido’, fingir como ‘ficção’ (‘fingo’, em latim: o fazer do
escultor ou do actor, o seu particípio fictus/m dizendo falso, mentiroso).
Permite ainda dizer a autonomia da sua composição em relação à “matéria de
empréstimo”, sonora ou superfície visual, em que elas são inscritas: poderia
dizer-se que se trata do mundo das artificções. É esta autonomia de composição que lhes
proporciona as possibilidades estéticas do que chamamos ‘arte’[20],
ela manifesta-se na liberdade (relativa) da sua composição (ou ficção) segundo
regras imotivadas em relação às leis mecânicas, químicas, eléctricas,
fisiológicas, dessas matérias. Ao contrário dos outros artefactos e usos sociais, em que as
inscrições se fazem essencialmente de acordo com essas propriedades
‘materiais’, para delas se tirar partido: o que nós dizemos utilidade (dos
usos, justamente) ou functional.
lidade.
|
linguagem
oral
|
escrita
matemática
|
música
|
imagens
|
unidades de sentido
|
frases
|
equações
|
frases musicais
|
ø
|
unidades de referência
|
palavras
|
números
medidas
|
ø
|
imagens
|
unidades
imotivadas
|
fonemas
|
ø
|
‘notas’
|
ø
|
sonoridade
|
sim
|
ø
|
sim
|
ø
|
visibilidade
|
ø
|
sim
|
ø
|
sim
|
escrita
que redobra
|
alfabética
|
caracteres
chineses
|
notação
musical
|
pintura
hieroglifos
|
relação
a outros usos
|
imotivado:
qq.
uso
|
motivado:
contar,
medir
|
imotivado:
imanência
|
motivado:
usos
visíveis
|
Dispositivos de inscrição: neurónios, papel,
circuitos electrónicos
23. A evocação destes diversos
tipos de “usos não como os outros”, de “inscrições numa matéria de empréstimo”,
permite considerar os dispositivos que podem fazer essas inscrições. Tal como o
grego dizia com a mesma palavra techné, o que nós chamamos artes e técnicas (os
artesanatos), designando tanto as artes manuais como as artes do discurso, do
mesmo modo um jogo é possível com a palavra hulê (madeira)[21],
a ‘matéria’ utilizada, com a pedra, na habitação. Ora, tanto a madeira como a
pedra e a argila foram das primeiras matérias de empréstimo das escritas
antigas, essa madeira de que é feito ainda o papel das nossas inscrições, mas
que deu lugar ao aço e ao betão armado na construção. Se a imprensa, a
indústria da escrita alfabética de ‘dupla articulação’, está no começo da
modernidade europeia, o vapor proveniente do carvão, o petróleo e sobretudo a
electricidade – as máquinas também de ‘dupla articulação’ – asseguraram o
seu desenvolvimento; livros e máquinas e libras, é isso a modernidade.
24. Digamos telegraficamente que a
electricidade desempenha três papéis. a) A electricidade clássica, dita de
correntes fortes, não é útil senão como modo ‘limpo’ (do ponto de vista da
poluição) e económico (do ponto de vista dos custos) de transportar a energia
para longe (‘tele-‘); chegada às fábricas ou aos nossos apartamentos, ela é
transformada noutras formas de energia, quer em iluminação, quer (por meio de
um motor nas máquinas) em mecânica, térmica, etc., são estas outras energias
que trabalham. b) Esta energia ‘tele-‘ pode também alimentar os aparelhos
electrónicos, de correntes fracas, em que ela é transformada em artificções
(linguagem oral, músicas, escritas diversas, imagens), transportada por antenas
(ondas electromagnéticas) ou cabos de tipo telefónico. c) Enfim, a energia
eléctrica cessa de ser ‘tele-’ para trabalhar por ela própria, conduzida por programas de software
em circuitos electrónicos de hardware, quer em máquinas da construção, quer nas
inscrições: o robot e o computador. Depois da fotografia, do cinema e das ondas
do audiovisual, é a última grande revolução moderna nas matérias de empréstimo
das inscrições.
25. Ora, acontece que os engenheiros
dos robots e computadores procuram os seus modelos no “cérebro” humano. Isto deve ser sugestivo para os
filósofos, encontrarem problemas filosóficos no coração de questões técnicas, e
começa por chamar a nossa atenção para o facto de o “cérebro” , dispositivo de
inscripção por excelência, só o ser depois de ter ele próprio sido ‘matéria de
empréstimo’ das inscrições de outros “cérebro” s. Sem dúvida que ele faz parte
de um sistema mais complexo, entre os órgãos perceptivos e os músculos e o
esqueleto, mas como podemos encontrar três grandes eixos neste sistema, da
visão ao trabalho das mãos e à caminhada dos pés, da visão ao trabalho só com
as mãos e da audição à fonação, podemos fazer corresponder os robots ao
primeiro, os computadores ao segundo e os telefones ao terceiro. Mas dos robots
não nos ocuparemos aqui; tomaremos em consideração a) os “cérebro” s humanos,
b) o papel dos livros[22],
c) o computador, actualmente jogando entre visão e mãos d) e num futuro previsível
entre audição e fonação também. Esta ordem, a da cronologia da sua invenção
coloca-nos uma primeira diferença entre o “cérebro” e os outros dispositivos de inscrição: ele foi inventado
pela muita lenta evolução dos vertebrados, dos peixes aos símios, antes das
inscrições e das construções. O que implica uma delimitação essencial do
dispositivo cerebral enquanto comparável ao livro e ao computador: as tarefas
essenciais de qualquer “cérebro”
animal não têm nada a ver nem com os livros nem com os computadores, não
servem para nada na comparação que tentamos aqui. Em rigor aliás nem há sequer
“cérebro” s, só há sistemas biológicos e fisiológicos mais ou menos complexos,
implicando os órgãos ditos perceptivos e o sistema muscular ligado ao
esqueleto e à mobilidade; mas implicando de igual modo o resto do
organismo, nomeadamente a circulação do sangue que o “cérebro” controla por via hormonal,
assegurando-lhe o equilíbrio homeostático (teores variados, pressão,
temperatura, etc.). O sistema P-C-M (órgãos perceptivos-”cérebro” -músculos)
tem a sua razão de ser na regulação necessária do organismo animal, face ao
aleatório do tráfico no seu território ecológico[23],
tendo em conta a predação e a fuga face à dos outros, a necessidade de
assegurar as suas condições de reprodução e repouso, etc. Tudo isto pertence à
essência do “cérebro” animal, que
foi inventado pela evolução para seres-no-mundo-ecológico, quer por meio dos
eixos olfacto / patas, mandíbulas-gosto / patas, quer pelos eixos visão /
patas, audição / emissão de ruídos, etc. Enquanto que o computador foi
inventado, a exemplo do livro, para seres-nas-escritas, primeiro matemáticas e
depois também alfabéticas, que existiam já e pediam matérias de empréstimo cada
vez mais aperfeiçoadas. Foram os primatas antropoides que, tendo no entanto um
“cérebro” muitíssimo próximo do
dos outros primatas símios, inventaram as línguas e as escritas e as construções.
26. Quer dizer que os “cérebro” s
não são comparáveis aos livros e aos computadores senão a partir da invenção da
linguagem duplamente articulada (oral e alfabética) e da matemática. Ora, do
ponto de vista neurológico, essas linguagens são suplementares, elas inscrevem-se
na rede sináptica dos “cérebro” s humanos, que nas outras espéceies vertebradas
já tinha funções de inteligência, aquelas para as quais os “cérebro” s foram
inventados pela evolução da vida terrestre. Dito de outro modo, se se dá a
‘pensamento’ o sentido corrente na nossa civilização, aquele que pode valer
também para os livros e para os computadores, não se pode dizer que ele seja
uma função essencial dos “cérebro” s animais em geral, nem ainda que, no que
respeita aos humanos, se trata de uma função hierarquicamente superior em
relação às outras funções cerebrais. Dizer que o pensamento humano é histórico,
implica pois que ele tenha sido também ‘inventado’, que ele tenha qualquer
coisa de ‘artificial’, que não se possam opor os três dispositivos em termos de
‘natural / artificial’. Trata-se de algo de positivo para a nossa comparação,
que deveria poder ajustar melhor as pretensões dos engenheiros da Inteligência
Artificial às dos psicólogos e dos filósofos que lhes opõem limites. É que
também é positivo para o debate que se delimite o que é verdadeiramente
comparável entre tudo o que um “cérebro” pode realizar[24].
Porque enfim, é positivo que um computador ou um robot não comecem a sonhar,
nem a terem depressões ou orgasmos. Digamos que tentaremos aqui privilegiar as
escritas e as suas operações sintáctico-semânticas, a sua aprendizagem e a sua
memória.
27. Por outro lado, e é o que
justifica os interesses filosóficos dos seus engenheiros, o computador está do
lado do “cérebro” em oposição ao
livro, pelo facto de trabalhar, enquanto que o papel se oferece à impressão e
não ‘mexe’: fica para ser lido. O computador vai mais longe do que o cinema,
onde as imagens estão em movimento por meio de uma máquina mas não se alteram
desde que o filme esteja terminado, enquanto que ele faz verdadeiras operações,
umas que já se faziam antes da sua invenção mas que ele realiza muito mais
depressa, outras, tal como certas simulações, que os humanos não estão em
condições de fazerem por eles mesmos.
28. Tratar-se-á de analisar as
diferentes maneiras de os dispositivos se relacionarem com as respectivas
inscrições, diferentes também segundo o tipo de linguagem ou escrita utilizada.
A inscrição no papel
29. Comecemos pelo livro. A sua
matéria de empréstimo, o papel, é uma superfície susceptível de inscrição do
tipo tinta, assegurando quer o contraste das cores (negro sobre branco), quer a
duração do material. Ela tem assim uma muito grande disponibilidade face à inscrição,
no sentido dos limites impostos: qualquer tipo de alfabeto ou de outra escrita
– ideográfica, matemática, desenho, fotografia, notação musical, etc. – pode
ser inscrita num livro. Uma tal disponibilidade não existe do mesmo modo nos
dois outros dispositivos (que exigem, um a lenta aprendizagem, o outro um software
adequado), mas tem uma contrapartida, uma vez a superfície escrita não se pode
mais inscrever nenhuma outra, ou seja, não há palimpsestos: nestes, ou se lê
um, ou o outro texto, não os dois.
30. Um livro, numa estante, nada
mais faz do que ficar entre duas leituras, é uma coisa, não é um dispositivo de
linguagem. Para o ser, exige um sistema P-C-M humano que o leia. O que é
ler? Não é ‘ver’: eu posso ver com detalhe um livro escrito em russo sem
poder entender uma só palavra. Mas ler também não é seguir uma palavra após a
outra: é uma operação de apreensão, de compreensão das diferenças (entre
letras, sintáctico-semânticas, códigos textuais, efeitos de ritmo) entre as
palavras e entre as frases, das regras (a língua) que organizam o texto,
incluindo palavras que não estão escritas. Quando leio a palavra ‘bem’ num
texto, devo saber que é um termo mais ou menos oposto a ‘mal’, mesmo se essa
palavra não figura lá. Ora, as diferenças ‘lidas’, que implicam pois também
ausências, não se ‘vêem’. Além disso, ler implica, por um lado, a memória do
que já se leu em páginas anteriores (sem o quê não se entende nada), mas esta
memória permanece de algum modo em retiro, nem ‘presente’ nem ‘ausente’,
esquecida e memorizada: não retenho de cor tudo o que já li, esqueço o detalhe,
mas se volto duas páginas atrás, sei que as li, reconheço-as. E por outro lado,
antecipo o que ainda não li, como que em ‘suspense’, na expectativa, no desejo
de saber que me faz continuar a ler. E o que lerei ligar-se-á ao que já li:
retenho os jogos das diferenças já lidas, adio ou difiro as ainda não lidas. E
depois da leitura terminada, uma certa memória permanece inscrita no meu
“cérebro” (possibilidade de
conversar sobre o que li, de lhe fazer um resumo, escrever uma recensão, etc.),
memória essa que poderá durar mais ou menos tempo durante a minha vida
posterior, permanecer esquecida durante muito tempo e voltar-me um dia por
associação com um outro livro do mesmo autor, por exemplo. Relidos ou não, há
livros que jamais se esquecem completamente, mas posso também relê-los alguns
anos mais tarde, com uma outra compreensão, ou então compreendê-los mal, etc.
Em suma, não há livro sem leitura, sem “cérebro” de leitor.
31. Os livros permitem também
escrever outros livros. Não posso escrever isto que estou a escrever, com maior
ou menor competência, senão pela razão de já ter lido muitos livros na minha
vida. Os “cérebro” s dos autores dos livros que li, alguns já mortos há muito
tempo, são pois condição essencial das minhas leituras-escritas, os Mortos que
me habitam, as suas obras inscritas duradouramente na minha memória.
A inscrição na rede neurológica
32. Já comecei portanto a falar do
dispositivo cerebral. Ora, o “cérebro”
não funciona sozinho, ele está sempre engatado, enxertado numa situação
dada num território ecológico. Por exemplo, os usos da casa em que habito, o
seu espaço e calendário, os seus humanos e os seus objectos, inscrevem-se no
meu “cérebro” , traçam na sua rede sináptica o que Changeux designa por grafos. Enquanto que os discursos orais
produzidos nessa habitação, tanto os dos outros como os meus, se esquecem, as
suas repetições inscrevem-se duradouramente no tempo como grafos, como memória.
Por exemplo, a da minha língua materna, com as suas regras linguísticas, tanto as
mais gerais como as mais subtis, tais que elas são essenciais para que eu
compreenda o que me dizem e o que eu próprio digo. Essas regras, pude
aprendê-las no liceu: mas já lá estavam, inscritas (como jogos de diferenças)
no uso dos discursos concretos que eu ouvira / lera / dissera / escrevera
desde a minha infância, os quais discursos concretos esqueci completamente. Não
é um espanto ouvir uma criança de três ou quarto anos a falar, usando correctamente
regras linguísticas complexas e relacionadas entre si que nunca aprendeu
enquanto tais? Ora bem, a questão mais difícil, e que é decisiva no debate
sobre os computadores, é que são os grafos que são percorridos pelos fluxos
nervosos dos (novos) discursos que ouço (ou leio), sem esses grafos não
compreenderia nada, por um lado; mas, por outro lado, esses grafos são memória
esquecida, em retiro (não presentes mas também não ausentes, já que tendo
efeitos de compreensão) relativamente ao fluxo empírico que os percorre.
Retomemos o livro: inscrito no papel, o texto, embora não ‘mexa’, não é
‘passivo’ à leitura, como se crê muitas vezes, trata-se outra vez da diferença
entre ‘ver’ e ‘ler’: circulando como fluxo nervoso, as suas regras e palavras
trabalham no “cérebro” , são reconhecidas pelos grafos, os quais portanto
também trabalham. Quer dizer que aquilo que, como fluxo ‘actual’ do texto no
dispositivo cerebral, é susceptível de ser reconhecido num
electro-encéfalograma como rasto de frequências eléctricas, não é senão uma
parte, digamos, do que (se) está a passar no “cérebro” ; a memória inscrita
antes como grafo, relevando provavelmente da química (se não, como teria ela
estabilidade?), deixará os seus rastos no e.e.g.?
33. Sendo um conceito teórico
necessário, precioso (é o efeito retrospectivo da repetição dos percursos dos
fluxos que permite reconhecê-los), os grafos talvez não sejam acessíveis à
observação neurológica senão em simultâneo com o fluxo actual que o percorre.
Fazendo embora parte essencial da matéria de empréstimo cerebral, no coração do
enigma humano, ele resistiria à oposição entre ele próprio e a inscrição
actual. Já que a rede sináptica não serve para nada sem que grafos aí se
inscrevam Tendo em conta E. Kandel, (aprender é criar sinapses), estes resultam
da repetição dos fluxos, é como se os grafos fossem a matéria de empréstimo
(entre as redes sinápticas, eles são aquelas que são facilmente percorridas),
sem serem por outro lado isoláveis do fluxo actual. É sem dúvida por isso que
os neurologistas confessam tanta dificuldade em ‘apanhar’ a memória. E é talvez
também a razão pela qual o “cérebro”
é, à nascença, susceptível de ser inscrito por qualquer língua do mundo,
mas esta disponibilidade reduz-se à medida que uma entre elas (e depois duas ou
três estrangeiras) se inscreve duradouramente (ainda que os grafos possam
apagar-se por falta de uso). Ora, o neurologista, com as suas máquinas
enxertadas num “cérebro” a pensar,
por exemplo, também não pode, através do seu aparelho, saber o que é que ele
está a pensar, nem sequer em que língua ele pensa (M. Jouvet, estudando gente a
dormir, tem de cada vez de os acordar para saber se eles sonham ou não, e o que
eles sonham). E aí estamos no coração de um outro aspecto do debate actual que
opõe neurologistas e psicólogos (ou linguistas, analistas do discurso, psicanalistas,
etc.): os primeiros não têm acesso específico ao material dos segundos, Damásio
chamou ‘mente’ ao acesso exclusivo do próprio ao que se passa nos seus
neurónios.
34. Tudo isto permanece igualmente
válido para um “cérebro” que esteja
a ler ou a escrever um texto em escrita alfabética, ou então a resolver
exercícios de matemática. Nesses casos, a situação do território ecológico em
que o “cérebro” está engatado,
enxertado, está fortemente concentrada no papel e nos traços, na mão que a
vista segue. Tal como não há linguagem oral sem território humano habitado, sem
a inscrição dos seus usos sociais, não há tão pouco escrita no sentido corrente
sem linguagem oral, nem papel escrito, livros, cadernos escolares, etc. Também
a matemática, vimo-lo mais acima, só existe no “cérebro” porque existe escrita também no papel:
um “cérebro” não faz matemática
senão com papel e lápis (ou seus equivalentes), esses dispositivos são-lhe essenciais,
ela é irredutivelmente escrita, não há matemática puramente cerebral.
A inscrição nos circuitos electrónicos
35. Chegamos ao computador. Deixando
de lado a ficção científica, os computadores têm necessidade, como os livros,
de “cérebro” s humanos para funcionar. Mas é o seu funcionamento como
dispositivo electrónico que trabalha em autonomia que nos interessa aqui. O que
é um computador? Digamos primeiro que é um hardware de cabos de electrónica, em
circuitos labirínticos construídos tendo em vista certas operações, estas
fazendo-se segundo um percurso entre uma entrada de dados, um teclado, por
exemplo (ou um leitor de cartões perfurados, bandas magnéticas), e uma saída de
resultados, uma impressora, de que o écran oferece uma pré-visualização (ou
ainda bandas magnéticas, cartões perfurados, etc.). Entre os dois[25],
programas de software variados de que se escolhe um, oferecem sintaxes de
operações sucessivas a fazer sobre os dados, regulam os percursos no labirinto,
os quais exigem muitas vezes a intervenção do operador.
36. Trabalhando à electricidade (§ 24
c), esta só conhece duas possibilidades elementares: passar ou não passar,
portanto 1 e 0. O que tem logo uma consequência bem conhecida: o hardware
ignora até a distinção entre um número e uma letra. Ele apenas recebe do
teclado 256 possibilidades, correspondendo aos octetos (bytes), combinações de
oito impulsos eléctricos simultâneos de 0/1[26].
É com esses octetos (0 1 2 . , a b c A B C + - etc., o intervalo entre as
palavras inclusive) que o software tem que fazer jogar as sintaxes
operacionais, a transposição fazendo-se por três operações elementares do sistema
lógico (‘e’, ‘ou’, ‘não’), inscritas no hardware. Os números da aritmética
estão aí inscritos, não no sistema decimal que todos conhecemos (1, 2, 3, 4,
10, 100, etc), mas num sistema binário que só conhece 1 e 0[27].
Por outro lado, é necessário que todas as operações matemáticas que o hardware
tem que operar estejam, ou inscritas na própria rede electrónica, ou traduzidas
anteriormente nas que estão lá inscritas. Se ele tem que adicionar dois números,
o + do software deve estar convertido na indicação desta operação no hardware[28].
A minha presunção é a de que o computador, no que respeita à matemática, não
faz senão isso, e que é essa a sua positividade, a razão do seu enorme sucesso.
Posto isto, os números são susceptíveis de verdadeiras operações de cálculo, a
uma velocidade inaudita; mas não as letras das equações, que são apenas
transpostas entre os seus dois membros, segundo as regras matemáticas, até ao
momento em que sejam substituídas por números, o cálculo prosseguindo depois
somente com estes. É justamente o que o matemático também faz na sua matemática
de lápis e papel. Ainda aqui, não se trata de um defeito dos computadores, mas
da sua positividade essencial.
37. Quer isto dizer que o hardware é
radicalmente inapto para ‘calcular’ com a linguagem alfabética: as sua únicas
operações – muito úteis, cada um de nós o sabe pelo seu P. C. – são as de
receber ‘representações’ de letras, acentos, vírgulas, etc. e espaços brancos
separando as palavras, o que lhe permite ter também ‘representações de
palavras’ (e de sintagmas mais ou menos prolongados) como sequências de
representações de letras. O que quer dizer que, por razões intrínsecas ao
hardware, o computador ignora a dupla articulação da linguagem (§ 9) e os seus
diferentes níveis de regras, as quais no entanto se jogam ao nível do software,
enquanto texto capaz de ser lido e escrito por um “cérebro” humano. Encontramos aqui um contraste
fundamental em relação ao dispositivo neuronal: o próprio software do
computador não ‘lê’ as diferenças (§ 30), ele apenas ‘vê’ letras, números,
sinais das operações. Quando por vezes se distingue a letra O do algarismo O,
cortando este com uma diagonal, é para evitar o risco de desatenção do operador
perante uma mistura de letras e números, enquanto que esse risco não existe normalmente
para o “cérebro” , que lê a elipse O como letra se rodeada de letras (jogo de
diferenças) ou como número se rodeado de números (idem). Aquilo a que chamei
‘representação de palavra’ implica a inexistência de diferença entre
‘significante’ e ‘signifié’ (no sentido de Saussure) – ora, esta diferença não
existe na escrita matemática, sem o que ela não seria exacta. Se o hardware do
computador, que só conhece 0 / 1, é cego perante a diferença letra / número,
muito mais cego será em relação à polissemia (§§ 4-6). A polissemia não é uma
fluidez da linguagem mas algo que resulta de regras linguístico-textuais muito
subtis e precisas. Não é pois senão ao nível exclusivo do software que estas
regras, ou operações, devem ser fornecidas, explicitamente, ao computador, como quem lhe ensina
as regras elementares da gramática, uma a uma, como aliás os linguistas o vão
fazendo com bons resultados[29],
como se pode ver, por exemplo, numa teradução dum texto ingles para português
que não seja de tipo literário.
Memórias?
38. Encontramo-nos aqui perante um
caso de polissemia, o da utilização da palavra ‘memória’ nos contextos da
informática e da neurologia; é necessário dizer uma palavra sobre o contraste
entre estes dois sentidos (não exactamente ‘dois’). O que se escreveu mais
acima sobre o electro-encéfalograma (§§ 32-33) pode ser transposto para os
computadores. Com efeito, um engenheiro electrónico, com os seus aparelhos de
reparação do hardware engatados num computador, pode analisá-lo quando um
programa de software está em marcha, mas não pode saber através desses
aparelhos que tipo de linguagem informática esse programa utiliza (no caso de
admitir várias). Tal e qual como os neurologistas, pois. Em ambos os casos, o
conceito de matéria de empréstimo é o de uma rede ‘material’ (neuronal num
caso, elementos eléctricos no outro), capaz de ser inscrita por escritas ou
linguagens diversas; dum ponto de vista filosófico, dir-se-á que essas linguagens
ou escritas são imotivadas em relação à matéria de empréstimo em que são inscritas,
não lhe exigindo mais do que uma disponibilidade à inscrição[30].
São as suas regras sintácticas que trabalham nessas matérias de empréstimo. Mas
de maneira completamente diferente, porque, num dos casos, a memória é inscrita
por aprendizagem e permanece como inscrição (química)[31]
essencial às operações da leitura textual, onde ela trabalha também em retiro.
Pelo contrário, faz parte da positividade dos computadores enquanto tecnologia
electrónica, que os seus fios não sejam afectados, modificados, inscritos
duradouramente, pelo software após a sua passagem (o que seria um ruído infernal,
em linguagem da teoria da informação). Se quiséssemos falar aqui de
grafos, seriam os circuitos (chips?) construídos em pormenor pelo engenheiro do
hardware. Um dos aspectos desta positividade, é que um computador, desde que
adaptado aos alfabetos respectivos (latino, grego, cirilico, árabe, hebraico,
etc.) pode receber e tratar indefinidamente qualquer escrita alfabética, sem a
aprender, sem ter memória dela, o que um “cérebro” humano não consegue, é evidente. O computador não lê os
textos, só vê letras,
mas a que velocidade!
39. A autonomia do computador
resulta das regras que lhe são dadas pelo software (heteronomia), mas esta
heteronomia não é apagada, como na memória humana[32],
ela permanece explícita como condição das operações a prosseguir. É por isso
que parece difícil falar de ‘memória’ ao nível do hardware (RAM). É o software
que conseguer armazenar memória, em discos, bandas magnéticas, etc., portanto
sempre separada do software ‘actual’ (à maneira das bibliotecas, “toda a
memória do mundo”: trata-se de um verdadeiro armazém, o que justamente a
memória cerebral, jogando de forma química retirada, não é de forma nenhuma),
ainda que se trate de ‘representação’ de sintagmas ou de operações
sintácticas determinadas; mas neste último caso tudo tem que ser rigorosamente
explicitado pelos linguistas, com os limites actuais destas disciplinas, no que
respeita à relação teórica e prática entre frase e texto. Enquanto que nós
lemos e escrevemos sem sabermos linguística nem semiótica. Desta autonomia tão
nova do computador, poder-se-ia dizer que se trata de uma ‘autonomia
programada’. Há aí aleatório? Sem dúvida, senão não seria autonomia, não seria
operatório; mas é um aleatório ‘programado’ no software de modo a que os
‘dados’ sobre os quais as operações serão feitas possam tornar-se adequados às
‘regras’ do programa, de modo a que isso não falhe. Já que ele tem que fazer o
que o operador pretende, não o que ele, computador, quisesse.
O computador escuta mal
40. Ponhamos enfim uma última questão, a que
indicámos como d) no § 25. Até hoje, no esforço para imitar os sistemas
neurológicos, os computadores ‘trabalham’, mas não conseguem ‘escutar’: as nossas
mãos pressionam os teclados, os nossos olhos lêem écrans e impressoras, mas
eles não conseguem, apesar dos esforços neste sentido desde há numerosos anos,
compreender as nossas vozes: seria preciso que os fonemas das nossas vozes
tocassem directamente os octetos correspondentes, como fazem os toques dos dedos
nos teclados. A dificuldade reside essencialmente em que as nossas vozes não
produzem fonemas (‘iguais’ em todas as bocas), mas sons que mudam segundo os
nossos timbres e humores: é que os fonemas não são senão as diferenças entre os
diferentes sons das nossas vozes, são essas diferenças que são as ‘mesmas’,
‘iguais’, em cada uma das vozes duma mesma língua (é a grande lição da
linguística saussuriana). Há aliás uma dificuldade semelhante com os scanners
ao passarem as diferentes tipografias e nomeadamente as nossas diferentes
‘letras’, quando escrevemos com caneta. Enquanto que os nossos “cérebro” s
aprenderam a distinguir os fonemas nas vozes empiricamente diferentes que os
traçaram, nas diversas letras que as mãos grafaram: é isto a que Saussure chama
‘significante’, essas diferenças que se repetem, como condição necessária de
entendimento social. Ora, a única maneira de um computador electrónico escutar
(§ 24 b) é em alta fidelidade: os aparelhos acústicos telefónicos e de música
(ou os scanners) – ao contrário dos teclados que são indiferentes aos dedos que
possam tocá-los, a impulsão eléctrica sendo sempre a mesma – restituem todas as
particularidades ou singularidades das vozes e timbres de cada um (ou das
escritas à mão), sem que seja fácil destacar um núcleo empírico ‘comum’ a
todos, porque este comum não é justamente empírico, segundo a leitura
husserliana que Derrida fez, não identificável portanto pela corrente
eléctrica. Com efeito, as diferenças entre os sons (empíricos) ou entre as
grafias (empíricas) não são nem sonoras nem visíveis. É aí, parece-me que se
joga, hélas!, a resistência aos esforços dos engenheiros electrónicos para conseguirem
que os computadores compreendam directamente a voz dos useiros (ou então a sua escrita
pessoal, ou ainda toda e qualquer tipografia).
[1] Trata-se da adaptação de um extracto de “Aristóteles e a classificação das semióticas estéticas”, comunicação ao Colóquio de 26-28/5/86 da Faculdade de Letras sobre
semiótica, em torno de Greimas. A primeira parte foi publicada com o título “Artes e media: um ensaio de classificação” em Jornal de Letras, ano VII, nº 267, 17-8-1987.
[2] P. Somville, Essai sur la Poétique d’Aristote, J. Vrin, 1975,
p.46, citando R. Mac. Keon, Critics and Criticism: Ancient and Modern, Chicago, 1952, pp.
152 ss. (reenviando ao cap. VII do “Système des beaux-arts” de Alain, vol. II
das suas Oeuvres Complètes, Pléiade, pp. 237-240).
[4] O que não pode dizer-se sem mais em relação aos “cérebro” s humanos, já
que estas inscrições não são as únicas a serem recebidas por eles, mediante
transformação em electricidade e química: as pessoas e as coisas são captáveis
(visual, auditiva e tactilmente) ‘em directo’, pela sua ‘face’, aquilo a que os
gregos chamavm eidos, o que é visto, visado (§ 13).
[5] Tal como os provérbios, por exemplo, os poemas anteriores à escrita eram
‘inscrições’ orais, quer dizer, textos fixados no seu ritmo de modo a serem
repetidos tal e qual nos diferentes contextos (à semelhança do escrito). Eram
civilizações com técnicas de memória muito desenvolvidas, que não se devem pois
opor sem mais às sociedades com escrita. As definições e outros enunciados de
teoremas, por exemplo, funcionam da mesma maneira: são também para repetir tal
e qual, para evitar que mudem quando muda o contexto.
[7] O que nem o fonema nem a letra possuem: eles não significam nada por
eles mesmos, retirados do campo da significação e da comunicação.
[8] “= é ‘igual a’ ” , “+ é ‘a
operação de adição cujas regras são tais e tais’ ”, etc. Para os algarismos: “3
é ‘três’ ”, adjectivo numeral polissémico como por exemplo, em 1) três maçãs
que vou comer, 2) três dos meus amigos, 3) três sonhos que tive, 4) três filmes
que vi, 5) três países com políticas convergentes, 6) as três pessoas da Santa
Trindade, e assim por diante, em que parece que ‘três’ não tem sempre o
mesmo sentido, nem que se trata tão pouco de ‘seis sentidos separados entre
eles’, que não é susceptível de uma operação de multiplicação ‘três vezes
seis’, dando ‘dezoito entes’, ‘entidades’, ‘coisas’ (exemplo adaptado de C.
Castoriadis, “ Science moderne et interrogation philosophique”, Enc.
Universalis, vol.17, p.71).
[9] Este não é senão um entre os numerosos sistemas possíveis; um outro é o
sistema binário dos computadores, jogando apenas com 1 e 0 (§ 36n).
[10] Para os exemplos simples que dou; não creio que estes raciocínios sejam
infirmados pelas matemáticas modernas, que ignoro.
[11] E aí está a condição para que essas ciências sejam susceptíveis de
técnica, o que não é o caso se a matemática utilizada for de tipo estatístico.
[12] Sem dúvida, a Física desenvolveu-se ao encontrar equações mais gerais
permitindo unir campos antes isolados na clausura das equações. Isto não me
parece infirmar a demonstração que estou a tentar. Poder-se-ia aliás dizer-se
que o princípio de discernimento das etapas da história da física é, por um
lado, o do estabelecimento de novas equações e portanto de novas regiões
físicas, e por outro lado, o do estabelecimento de equações mais gerais integrando
e unificando algumas regiões físicas cujas equações se revelam ser casos
particulares daquelas que se acabam de descobrir (Newton em relação a Einstein,
por exemplo célebre).
[16] A articulação do cinema e da banda desenhada é paralela à das
narrativas em sequências e capítulos, a que eu chamaria narratividade, já do
nível do discurso, acima do da frase
[19] Bernard Stiegler, “L’image discrète”, in J. Derrida e B. Stiegler, Écographies,
de la télévision, Galilée-INA, 1996, p. 168, que cita A. Bazin (“a objectividade
do objectivo” da fotografia) e R. Barthes (“isto sucedeu”, noema intencional da
fotografia). Já não é o caso da imagem numérica, que, tornando-se, por assim
dizer, fotografia desenhada, retorna à tradição com que a química da luz tinha
rompido
[20] O que pode ser verdade inclusive da matemática: uma barragem, uma ponte,
serão tanto mais belas quanto o seu cálculo tiver sido matematicamente
económico. Se bem me lembro, e me fôr permitido, tive uma verdadeira emoção
estética numa aula sobre estruturas das pontes, como a sua linha de influência
(curva matemática dos momentos das forças às quais serão submetidas) coincide
com a sua flecha, a curva da deformação elástica do seu eixo.
[22] Em certo sentido pode-se dizer que o leitor é ‘inscrito’ pelo texto que
lê, tal como pelas falas dos outros. O que aliás também vale para o cinema e
outras obras de arte.
[23] É pois sobretudo o organismo inteiro que é uma máquina (com regras que
jogam para fazer face ao aleatório), e não o “cérebro” sozinho. Por isso as aspas em
“cérebro”.
[24] O que se deixa aqui de lado, por razões de economia do próprio debate,
terá no entanto relação com as dificuldades que se encontrarão mais adiante.
[26] Um pouco como os sinais de Morse; eram esses octetos que se inscreviam
nos cartões perfurados na época dos antigos computadores.
[27] 2 é 1+1=10, 3=11, 4=100, 8=1000, 32=100000; quer dizer, 2n=1
seguido de n zeros. Em seguida, 33=100001, 34=100010, 35=100011, etc.
[29] Penso nomeadamente nos grandes quadros de distribuições sintáctico-semânticas
elaborados pela equipa de Maurice Gross.
[30] Quer dizer, e isto tem relação com o conceito de máquina proposto logo
no início, que nem a biologia do “cérebro” nem a rede electrónica do computador determinam (no sentido
da causalidade mecânica clássica) os fluxos que os percorrem. É a importância
do motivo da inscrição: esta vem de fora, impede a oposição entre interior e
exterior no funcionamento dos ‘dispositivos’, cerebrais ou electrónicos.
[31] A electricidade neuronal é feita de iões de sódio e potássio, o que a
presta a reacções químicas nas sinapses, ao contrário da electricidade
industrial, feita de electrões.
[32] A memória da nossa língua só nos serve porque as vozes dos outros que
no-la ensinaram se apagaram, como condição da autonomia da nossa fala.
Sem comentários:
Enviar um comentário