[01. Este texto foi redigido em resposta a um
‘call for papers’ da Revista Portuguesa de Filosofia, da Faculdade de Filosofia de Braga, para um
número sobre Filosofia e Ciência (recordo com gratidão que, em tempos de João Vila-Chã director, este me
convidou para escrever um texto para o número sobre A herança de Heidegger, que está neste mesmo blogue). Aqui procurei
expor com cuidado uma visão de conjunto da minha proposta fenomenológica. Os
dois árbitros a quem ele foi submetido acharam o texto “confuso” e a revista
recusou publicá-lo. Obviamente que a ‘confusão’ depende de, como o próprio
título assinala na sua invulgaridade, se tratar dum novo paradigma, relevando
da desconstrução pela gramatologia derridiana, e de os peritos, competentes no
“paradigma normal” (Kuhn) – hoje em filosofia das ciências, maioritariamente
‘analítico’ – não compreenderem a argumentação. Sempre pensei que este par de
árbitros é um mecanismo normalizador, evitando textos realmente inéditos,
‘revoluções paradigmáticas’.
02. Uma maneira de dizer a diferença de
paradigmas: enquanto que, desde Platão, se argumenta sobre ‘categorias’,
‘essências’, ‘conceitos’, temas resultantes da definição, a gramatologia tem
antes demais em conta o gesto de escrita que isolou esses temas, retirando-os do respectivo contexto, a saber, a
operação de definição filosófica e o laboratório científico, gestos históricos da escrita dos textos que impõem fronteiras aos
temas filosóficos e científicos que eles tratam, sobre os quais argumentam. É
numa paisagem totalmente modificada que os gestos das várias ciências se dão a
uma leitura filosófica que termina com a suspensão kantiana e permitem
perceber, tendo em conta o contexto fora do laboratório, os duplos laços dos fenómenos de que elas se
ocupam, entre fenómenos expostos e (não-)fenómenos, retirados. Mas há que
acrescentar que nos dois casos, um de Biologia outro de Física, em que
cientistas reagiram a textos meus, também não entenderam a argumentação. Como,
por outro lado, não são legião os fenomenólogos gramatologistas conhecedores
minimamente dos cinco paradigmas científicos e dada a minha provecta idade, não
posso ter nenhuma esperança de reconhecimento desta proposta.
03. Exemplos de ‘gestos’ em filosofia: o ‘sei que
nada sei’ socrático e a dúvida metódica cartesiana; com a definição, a
instituição da Academia e do Liceu; a Physica como filosofia com ciências; o plurilinguismo helenista, donde o
motivo do ‘signo’, abrindo uma brecha no ‘mesmo’ de Parménides, que tinha
continuado em Platão e Aristóteles; a maneira como o platonismo se apoderou do
discurso cristão em Orígenes; a teologia cristão levando no seu bojo a
filosofia para a Europa; a recepção dela pelas universidades medievais;
Aristóteles substitui Platão no tomismo; transformação nominalista; papel de
Newton na critica de Kant; a redução husserliana e a doação com retiro heideggeriana;
a questão da escrita posta à filosofia por um herdeiro de ambos, permitindo entender
não apenas o que os pensadores ‘pensam’ (logocentrismo), mas também o que eles
‘fazem’ escrevendo historicamente (desconstrução). Neste mesmo blogue, o Manifesto
é uma visão de conjunto da proposta.
04. A primeira vez que esta dificuldade se me apresentou
institucionalmente foi na minha tese de doutoramento sobre a epistemologia da
semântica saussuriana, editada pela Gulbenkian, que o arguente Vítor Manuel
Aguiar e Silva, professor de Teoria da Literatura na Universidade do Minho, me
disse ter sido “uma honra” tê-la arguido. Dito de forma sucinta, ela resolvia,
com argumentação gramatológica, a discussão em torno do signo que dominou o estruturalismo nos anos 60 e que
ficara sem solução: foi esta tese que despoletou esta “filosofia com ciências”. Ora, o filósofo e meu amigo Fernando
Gil, que fez parte do júri, explicou ao prof. Lindley Cintra que o convidara
que não conseguia argui-la porque não entendia a argumentação. Percebi que
nunca poderia ter tido um júri de filósofos: com efeito, sou doutor em
Linguística e não em Filosofia, em que apenas tenho como referencial académico
o concurso para Professor Associado na Faculdade de Letras, departamento de
Filosofia, onde ensinei Filosofia da linguagem durante 28 anos]
O retorno às próprias coisas
As invenções da definição filosófica e do laboratório científico
Ontoteologia (Heidegger) e logocentrismo (Derrida)
Husserl e a redução
Heidegger e a (pro)dução
Derrida e a re(pro)dução
Retornar à ‘realidade’ após o laboratório
Definição de sociedade
O ‘dentro’ construído a partir de ‘fora’
A desconstrução: mesmo e não-idêntico, indissociável e inconciliável
Ousia e duplo
laço
Os princípios dos dois tipos de matéria: o átomo e a célula
Os duplos laços
compostos
A cena do conhecimento: tribal e cosmopolita
A liberdade como enigma
Bibliografia
O retorno às próprias coisas
1. O “retorno às próprias coisas” foi o sonho que Husserl não
conseguiu realizar mas que a obra de Heidegger – o “ser no mundo” (1927)[1]
e a “doação retirada de tempo e ser pelo Ereignis” (1962)[2]
– e a de Derrida – a gramatologia (1967)[3]
e os “duplos laços” (1974[4],
1980[5])
– tornaram possível um século mais tarde, tendo em conta as grandes descobertas
científicas entretanto ocorridas. Houve com efeito um equívoco em Husserl, pretender
volver aos fenómenos por um lado e considerar por outro como ciências aliadas a
matemática e a lógica que, não carecendo de laboratório, não têm relação às
coisas; esse equívoco manifesta-se no tipo de exemplos de percepção de inertes
de que partem as suas análises, ignorando que faz parte intrínseca das
‘coisas’, ou fenómenos, o seu movimento, o seu tempo além do seu lugar no espaço; não admira assim que na sua Origem
da geometria[6] seja o iniciador da física moderna, Galileu, quem
perturba a linearidade da sua leitura da história da geometria, o laboratório
seria o obstáculo. A dissidência de Heidegger recuperou o tempo para os humanos
e as mãos também, que cuidam das coisas, colocando-os como seres no mundo de todos os dias, donde a definição filosófica e
a ‘alma’ de outrora os tinham desalojado. Voltou todavia as costas às ciências,
também para ele teria sido o obstáculo o laboratório – “a ciência não pensa”
significa ‘o laboratório mede e calcula’ –, laboratório que se acrescentara no
século XVII à antiga definição grega; no final da sua vida, colocou a doação
retirada de “tempo e ser” às
coisas pelo Ereignis. Dissidente
de Heidegger por sua vez, Derrida retomou a redução fenomenológica de Husserl para permitir que a escrita, enquanto inscrição e trabalho, motivos ignorados
da filosofia tradicional, esclarecesse o jogo de diferenças da linguística saussuriana como 1) espaçamento-temporalização,
quer dos textos, quer das coisas e dos vivos e 2) relação estrutural ao Outro
social, donde vem 3) a inscrição que ensina a falar, a célebre e incompreendida
precedência da escrita como origem da fala. Embora não fosse aí que situava os
seus interesses, a sua gramatologia tornou possível o retorno às coisas, tal
como as dizemos e pensamos, assim como a reconsideração das ciências sociais e
humanas, com o que elas comportam de experimentação (arquivos, estatísticas),
mormente quando recolheu do psicólogo americano G. Bateson o motivo de duplo
laço para esclarecer gramatologicamente
certos textos de Hegel[7]
e de Freud[8].
Foi esse motivo, que ele usou sobretudo em textos de preocupação ética e
política dos anos 80 e 90, que veio a revelar a fecundidade inestimável da sua
gramatologia para reformular a fenomenologia como campo dos fenómenos de que
se ocupam as ciências: colocar
num certo vis a vis as cinco principais descobertas científicas do século XX,
discernindo os respectivos “duplos laços” como retorno ao movimento das coisas[9].
A saber: : a teoria do átomo e da molécula, a biologia molecular, as “estruturas
elementares do parentesco” como teoria do social de Lévi-Strauss[10],
a “dupla articulação da linguagem” de Saussure[11]
e Martinet[12] e a teoria
psicanalítica das pulsões. Com uma vantagem, apreciável nesta época de
relativismos e de fragmentação do conhecimento, a desta reformulação ser uma articulação
sistemática dos saberes, em que
cada ente, mesmo os inertes mas mormente os vivos, são estruturalmente
indeterminados, o que nos humanos
chega ao que se pode chamar o enigma estrutural de cada um, a sua liberdade.
As invenções da definição filosófica e do laboratório científico
2. Há dois momentos de viragem no
pensamento greco-europeu, os das invenções da definição filosófica pela escola socrática e do laboratório científico no sec. XVII. É inerente a ambas o
gesto de retirar o fenómeno a ser estudado do seu contexto particular, buscando
ou essências filosóficas ou leis científicas referentes ao que é assim isolado.
Inventada por Sócrates, a definição forneceu os Eidê (formas ideais) celestes de Platão (Parménides 135c, Metafísica 1078b18-3)
de que as coisas terrestres são cópias. Foi todavia Aristóteles quem generalizou
o uso da definição, a sua crítica do platonismo sendo um primeiro “retorno às
coisas” ao definir a ousia
delas – nas Categorias[13], a “primeira” (‘substância’, em latim) coincidindo
com a “segunda” (‘essência’, em latim) – que permite conhecer o seu movimento,
mormente aquele que é o mais surpreendente, o dos vivos que crescem, se alteram e deslocam por si
próprios (kath’autôn).
Categoria primacial da Physica[14], que foi a primeira ‘filosofia com ciências’: com efeito, a ousia é a operadora definitória em As partes dos
animais[15], Sobre a geração e a corrupção[16], Da alma[17], além doutros, e ainda na Poética[18]. Foi a tradução em latim dos dois sentidos de ousia que tornou possível a querela nominalista que os
separou para a Europa, a ‘substância’ deixada às coisas individuais, a
‘essência’ retida apenas nos “nomes” mentais, abrindo o espaço do dualismo
europeu ideias / coisas em que foi possível a invenção do laboratório
científico que veio desfazer vinte séculos mais tarde a ‘filosofia com
ciências’ aristotélica, ao introduzir no conhecimento gnosiológico o ‘labor’
que, em contraste com a vida, produz e mede movimentos a que as coisas inertes podem ser sujeitas: é assim que Galileu introduz
o tempo na geometria e Newton lhe acrescenta a mecânica das forças. Que ao seu
grande tratado de Física, aliando a geometria e a mecânica, Newton tenha dado o
título de Princípios matemáticos de filosofia natural[19], o cientista reclamando-se como filósofo, eis o
que não será possível após o newtoniano Kant ter deduzido da ruptura da relação
aristotélica a separação entre os conceitos do entendimento para as ciências
(em seus juízos sintéticos a priori) e as ideias da razão pura (sem apoio da experiência) para a filosofia,
permitindo àquelas autonomizarem-se nos dois séculos que se seguiram. É esta epochê
da dimensão filosófica das
ciências que parece hoje esgotada, tão vasto é o actual panorama da diversidade
das ciências e das suas inúmeras regiões e especialidades, perdida a unidade do
saber que os nossos antepassados tanto tinham saboreado e hoje nos falta de
forma lancinante. É do que vai ser questão aqui.
Ontoteologia (Heidegger) e logocentrismo (Derrida)
3. O retorno de Heidegger aos
pensadores de antes da definição, que detestava que fossem chamados
pré-socráticos, a sua busca de compreensão filosófica de palavras históricas
dos textos gregos e do alemão medieval, permitiu-lhe uma interpretação da história
do Ser (continuação do seu Ser e Tempo[20]) que ele como que resumiu no motivo de ontoteologia, cujo primeiro gesto se encontra na relação
platónica entre os Eidê
celestes e as coisas correspondentes, gesto que o cristianismo de Orígenes de
Alexandria e de Agostinho de Hipona reforçará com a relação Criador / criatura,
ser celeste / ente terrestre[21].
Mas talvez se possa pensar um alcance subversivo neste motivo heideggeriano,
dele não ter apenas visado o discurso teológico e o Deus filosófico, as “ideias
inatas” cartesianas e as “mónadas” leibnizianas, mas a ontoteologia ter-se
mantido como estrutura metafísica do par pós-teológico sujeito / objecto e a
sua ignorância do movimento, da história e do mundo, ou seja, do contexto a que
a definição arrancara os definidos. A ontoteologia – primado do ser do ente
como essência intemporal, sem contexto nem origem dos entes particulares – será
então filha metafísica da definição: é abandonando-as que se afirma o ser no
mundo. Mas ao negar o pensamento
ao laboratório, Heidegger não se deu conta de que este des-substancializara os
fenómenos que media, como se dirá adiante (§ 12), de que se pode restituir aí o
gesto des-ontoteológico que ele herdará indirectamente. E se ele não deu por
isso, foi por ter ficado ainda sujeito ao diagnóstico feito por sua vez por Derrida
da história dos textos ocidentais: o que chamou logocentrismo resulta da ‘auto-evidência’ de quem pensa a
respeito dos ‘seus’ pensamentos à maneira cartesiana, coincidência do pensamento
e da voz calada na intimidade, esta privilegiada como o mais precioso bem, que
esteve na base das invocações da divindade, da inspiração, da inteligível
inteligência, da consciência de si; o logos – seja pensamento da alma consigo mesma, seja
discurso em voz alta (Sofista
263e), gerado pela alma do que pensa (Teeteto 150c-d) – é pensado como o centro que organiza conscienciosamente os textos, na
ignorância do trabalho de escrita que os tece (textil) pelo jogo de diferenças linguísticas e não só,
pois que jogo eminentemente social. E sobretudo ignora que é esse jogo vindo do
‘exterior’, aprendido e incessantemente repetido, que tece o próprio logos na sua ‘interioridade’. À diferença de Heidegger,
Derrida que, além dos dois mestres alemães, também herda de Marx, de Freud, de
Nietzsche, de Saussure, de Blanchot, de várias ciências sociais e de numerosos
textos literários, Derrida, cujos textos são sempre trabalho minucioso de leitura
de outros pensadores, sabe que, desde a importância da geometria na Academia de
Platão, sempre a ciência – figuras e caracteres de tipo matemático nomeadamente[22]
– impediu a filosofia de ser radicalmente logocêntrica. Esquadrinhador das
oposições mais subtis, ele nunca opôs filosofia e ciências, como hoje (quase)
toda a gente faz, ao invés de Newton. Há um paradoxo nestes dois diagnósticos:
sem definições para construir as suas teorias, isto é, sem ontoteologia nem
logocentrismo, não haveria ciência, mas esta resistiu-lhes, abrindo a
desconstrução, quer de uma, quer do outro.
Husserl e a redução
4. Tentemos mostrar com exemplos
simples de fenomenologia e ciência, tanto quanto um leigo o pode fazer, a nova
relação de ‘filosofia com
ciências’, partindo de Husserl que refaz o retorno às próprias coisas que fora
já o de Aristóteles, crítico das Formas ideais de Platão, trazendo estas como
‘essências’ às ‘substâncias’ respectivas: a redução repete o gesto da definição, arrancar o ente ao
seu contexto, fazendo dele objecto, e compará-lo com outros do mesmo eidos que pode assim ser definido (é a crítica que
Heidegger fará: o ‘objecto’ percepcionado é apofântico, resulta duma
abs-tracção do seu ‘mundo’). Mas ao fazê-lo, e à diferença de Kant, a
intencionalidade da consciência na coisa percebida implica que ele abandone o
laboratório em que a filosofia europeia se tinha alojado, regressando à maneira
grega de filosofar; fenomenólogo, ele reflecte sobre o seu gesto e exibe a
descontextualização que a definição opera, tem em conta a tradição substancialista
europeia sobre o objecto (res
extensa) e sobre o sujeito (res cogitans): a intencionalidade é a suspensão da consciência como
substância, ela não ser senão a
coisa intencionada, assim como também suspende, reduz a coisa aparecendo para não reter senão a sua fenomenalidade, o seu aparecer estrutural, comum a outras coisas do mesmo eidos (final § 20). A sua descoberta essencial, a
diferença entre a empiricidade aparecendo reduzida e o aparecer fenomenal
retido, é a diferença fenomenológica, por exemplo, entre o redondo duma roda ou dum prato e a circunferência
geométrica. Que não é já a diferença entre a ‘substância’ e a ‘essência’
aristotélicas, de vivos entre dunamis e energeia; os seus
objectos percepcionados são de substâncias inertes, nem moscas nem cavalos, tal
como a física de Newton que os media mas deles só retinha as medidas, não as
‘qualidades’. Esta des-substancialização dos físicos que Kant retomou e agora
Husserl, tem o nome heideggeriano de desontologização: inerente à
intencionalidade e à redução, ela é característica da fenomenologia
husserliana, como o será do pensamento de Heidegger e de Derrida, que vão
todavia além dela.
Heidegger e a (pro)dução
5. Pode-se dizer que Heidegger
prossegue o caminho da intencionalidade husserliana mas, em vez de o inverter
para a idealidade constituída pela consciência transcendental, prossegue para o
Ser, para o que, do lado do contexto do objecto dado, o dava mas permanecia retirado do olhar fenomenológico. Este é questionado,
abandonada a essencialidade do seu sujeito que é temporalizado, ser no mundo, na sua existência pro-jectada nas suas
possibilidades, Dasein pondo a
questão do sentido do seu ser. O II Heidegger vai mais além do contexto em que
são dados os entes, busca a
historicidade do Ser que os dá furtando-se, doação retirada fenomenologicamente. Deixa cair a redução para retomar o que a tinha
pedido, suspendendo a preocupação husserliana das idealidades e das ciências,
vem agora aquém da definição, ao cuidado quotidiano da habitação, à linguagem
onde se põe a questão do ser, à temporalidade que a definição suspendera, à
mortalidade ou finitude reduzida pela alma platónica e cristã. A
desontologização, retorno a Parménides, visa agora a historicidade substancial
do Ser, que é o mesmo que o
dizer e o pensar, não é pois
‘ente’, mas Nada de ser que dá os entes, diferença ontológica.
Esta opera, como redução, a destruição da Metafísica (da oposição entre o
inteligível e o sensível), da Ontoteologia desligando substância e ser, a
relação do Criador à criatura (rebatida pelos Europeus sobre o par sujeito /
objecto) que desvaloriza o contexto histórico e privilegia o ‘presente’[23].
O passo que Heidegger não deu seria o do ser no mundo humano ser dado nas economias da alimentação (biologia) e da
aprendizagem (neurologia), a sua ‘interioridade’ dada pela ‘exterioridade’ do
mundo em que o Dasein é
(antropologia). Resumamos este passo: lendo a Physica de Aristóteles, o pensador sublinha o poder (archê) doador da phusis de pro-dução, dum fruto, por exemplo – de guiar
(-dução) avante (pro-) –, isto é, o poder de o fazer vir à presença; o motivo do retiro, lido em Heraclito (§ 123), será o índice da
redução des-substancializante: a retracção desse poder enquanto deixar vir à presença. Pode-se
grafar (pro)dução: o ‘fazer’ como ‘pro’ e o ‘deixar’ nos parênteses que o escondem.
6. Na conferência Ser e tempo de 1962[24],
Heidegger substitui o Ser por Ereignis (‘acontecimento’ em alemão), o qual agora faz doação aos entes e lhes deixa
ser e tempo, colocados enfim estes dois como par, como também sugere que ambos
sejam essenciais no motivo de ‘acontecimento’, que permite reler a fórmula da
diferença ontológica do Ereignis como Nada de acontecimento dá e deixa ser os acontecimentos. Com efeito, na dita realidade, só há
acontecimentos, tudo no ente – nascimento, alimento, morte, fabrico,
utilização, estrago – releva deles, incluindo o grau zero da rotina, tudo o que
o faz ele próprio, no seu
indeterminismo temporal. Ora, pode-se mostrar com o exemplo simples dum cavalo
como há simultaneamente retorno a Aristóteles e a sua ultrapassagem. A sua ousia é o movimento da substância que é ‘este’ cavalo (ousia
primeira) vindo à presença, movimento
esse que é o ‘mesmo’ do que o dos outros cavalos e éguas da mesma essência (ousia segunda), mas este movimento, durante toda a sua
vida de cavalo, do nascimento à morte, é vivido de maneira singular, ‘própria’,
diferente dos outros cavalos, segundo os seus acidentes, os seus acontecimentos
ônticos, excluídos da essência, como ‘presença’ intemporal privilegiada sobre o
tempo dos acidentes. No Ereignis, o movimento é a ousia
dada, ser e tempo dados duma vez (a palavra ‘vez’ designando um acontecimento,
‘era uma vez’), movimento ôntico, particular, este cavalo que acaba de nascer
da sua égua materna, de ser (pro)duzido, vindo à presença e que no tempo
crescerá, comerá e dormirá, se reproduzirá. Nada disto é ‘acidental’ no sentido
de secundário, derivado, mas é essencial ao acontecimento ôntico, à existência singular deste cavalo: desapareceu a diferença
primeira / segunda da ousia
(como já acontecera para o Dasein em Ser e tempo[25]). E o que é o acontecimento ontológico? É a
espécie cavalar que dá o cavalo e outros cavalos e éguas. Uma espécie biológica
não é nenhum dos seus indivíduos (não sendo ‘nada’ sem eles), já que eles
nascem e morrem e a espécie continua a reproduzir-se nos seus descendentes. Não
é nenhum ‘ente’, é ‘Nada’ que tem a fecundidade, o poder de doação dissimulado
de se reproduzir como o Mesmo em entes individuais diferentes, nunca ‘idênticos’
entre si, Nada de acontecimento que dá potros, cavalos e éguas em suas temporalidades.
Ousia deixou de ter oposição
hierárquica a acidentes, já
que as regras biológicas são relativas ao aleatório das vidas animais. Como
‘acontecimento’ e ‘acidente’, um com conotação positiva e o outro negativa, têm
o mesmo sentido de algo de inesperado que implica vários, vê-se como Heidegger
retorna ao aristotelismo para o transformar: a oposição entre ser e tempo
foi enfim ultrapassada.
Provavelmente sem dar por isso, permitiu assim chegar às coisas e às ciências
que delas se ocupam, a cujo laboratório tinha virado as costas. A diferença ontológica
(entre os animais empíricos e a sua espécie) é próxima da fenomenológica (entre
rodas e circunferências) – introduziu nela o tempo –, a ‘espécie’,
‘constituída’, pode-se dizer, pelo saber dos que se ocupam dos animais, sendo mais
adequada ao que se mexe do que a percepção husserliana. Mas não deixou de ter
limites, não esclarece porque é que um cavalo é vivo, como não foi capaz, em Ser
e Tempo, de desenvolver a relação
ao outro, o Mitsein.
Derrida e a re(pro)dução
7. Trata-se agora de ver como Derrida
é o dissidente destes dois pensadores alemães, retomando a temporalidade do Ereignis para a introduzir na redução, na operação da diferença fenomenológica, ao
recorrer a ela para aclarar a diferença saussuriana entre os sons empíricos
(que, por exemplo meu, uma criança in-fans ouve) e as diferenças entre esses sons, não substanciais, o “significante”
da língua. Que “é o ouvido [l’entendu]:
não o som ouvido mas o ser-ouvido do som. O ser-ouvido é estruturalmente
fenomenal e pertence a uma ordem radicalmente heterogénea à do som real no
mundo. Não se pode recortar [découper]
esta heterogeneidade subtil mas absolutamente decisiva senão por uma redução
fenomenológica”[26]. Os ‘sons’
são o que se ouve, o que ‘aparece’ (ao ouvido, não ao olhar, no caso; não será
por acaso esta diferença de órgãos perceptivos nas duas filosofias), enquanto
que os ‘significantes’ são as diferenças entre os sons, o ser-ouvido
deles, o seu ‘aparecer’, ou
seja a língua de Saussure que
é indissociável da fala (parole)[27].
Como é que a criança aprende a falar a partir destes sons ouvidos? Retendo as
suas diferenças, enquanto que os sons dos outros, dos doadores da fala, se retiram, reduzidos, a fim de que uma voz inédita seja (pro)duzida, em
seu ‘ser e tempo’. A “diferença” (fenomenológica) torna-se “différance”
(gramatológica), não apenas ‘espacial’ mas espácio-temporal, como diz o a mudo do diferir que ‘adia’, que também reenvia
para o outro, o que foi ouvido, para a alteridade, comunicação e conflito. Este
“movimento” do jogo de diferenças, do que fala para o que escuta, suscitando
voz, é uma ex-pressão do que
fala, uma escrita gerando uma im-pressão no que escuta: a escrita, diz Derrida, como origem da fala. Esta différance ou rasto (trace) sintetiza a redução e a (pro)dução: re(pro)dução. O enigma desta aprendizagem é que não se trata de duas operações mas duma apenas
com duplo efeito, pois que não se podem distinguir dois momentos, um
husserliano e outro heideggeriano: o apagamento (que des-substancializa os sons
ouvidos) que deixa ser a nova
fala (pro)duzida (voz-discurso) é o efeito da redução. Ora, se privilegiei a
aprendizagem neste processo, o que Derrida não explicita, tenho que acrescentar
que o processo se efectua constantemente em todas as falas ouvidas e em todas
as escritas lidas, justificando a noção de que ganhamos experiência a vida
toda, aprendemos sempre mais saber.
8. O que é surpreendente, e já este
exemplo da aprendizagem o mostra, por isso o acrescentei, é que este motivo da
re(pro)dução seja mais do que uma operação de pensamento fenomenológico, se
revele ser uma verdadeira operação ôntica, se se pode dizer, que opera constantemente na chamada realidade: no
exemplo da biologia, corresponde à operação celular da reprodução dos cavalos
além da morte dos seus progenitores. Seja a divisão do “pro-grama[28] genético” nos cromossomas celulares em gâmetas
com metade dos genes, um fêmea a que um macho se vem unir para formar o programa
genético dum novo vivo, diferente de cada um dos progenitores, de cujos rastos
é constituído: desde que este novo ADN do ovo comece a regular a síntese das
proteínas, pode-se dizer que foram apagados, reduzidos, aqueles de que é o
rasto. Ora, o que é esta divisão do programa genético? É primeiro a redução da metade dos genes nos progenitores para formar
os gâmetas sexuais, a redução dum ‘mesmo’ em vista da sua repetição numa
‘substância’ empiricamente outra, numa célula não ‘idêntica’. Em seguida, a (pro)dução duma nova célula, o ovo, é o que resulta da união
das duas metades que faz vir á presença (concepção, futuro nascimento) e que a redução dos outros deixa vir à
presença. Como na aprendizagem da
fala, trata-se duma dupla operação, da différance biológica, do pro-grama genético, em que a (pro)dução heideggeriana só é
possível pela redução husserliana: esta dupla operação ôntica é a reprodução celular. O que os filósofos
pensaram a nível fenomenológico (com redução do empírico do ‘ôntico’) ou
ontológico diferente do ôntico, revela-se simultaneamente nas duas faces, a da
escrita gramatológica e a do processo ôntico da biologia. Grafando re(pro)dução, marca-se fora dos parênteses o que releva de
Husserl e a simultaneidade do fazer / deixar vir à presença de Heidegger no
‘pro’ e nos parênteses que o escondem. Poder-se-ia mostrar como a transcrição
do ADN no ARNm e a tradução deste na estrutura da proteína sintetizada obedecem
ao mesmo processo (§12), sempre as mesmas diferenças passando duma ‘substância’ empírica a outra, reduzindo a primeira
e (pro)duzindo a segunda. Consegue-se assim explicitar a intenção manifestada
por Derrida desde 1967, de que o seu motivo da trace (rasto) seja referido ao campo científico da
biologia[29].
Retornar à ‘realidade’ após
o laboratório
9. Permanece algo de Kant: o
filósofo, porque não mede, é leigo em relação ao laboratório científico, só se
pode ocupar do que a teoria do paradigma tem de ‘filosófico’ assim como dos
gestos do cientista: retirar o fenómeno do seu contexto e restituí-lo após a
análise. Acontece que as filosofias das ciências actuais parece não terem reflectido
sobre este duplo gesto e portanto sobre as razões pelas quais o laboratório
lhes é necessário[30]
(Belo, 2/12/2013): ele cria condições de análise duma determinada dimensão e suspende
outras possibilidades de causa e efeito a jogarem na complexidade do contexto,
donde que haja em seguida que saber apreciar as incidências do retorno fora do
laboratório das suas descobertas laboratoriais, tendo em conta também a
dimensão fragmentária das suas experiências que há que compor com outras na
elaboração teórica. Fora do laboratório é o reino do particular que escapa à
ciência, tanto à aristotélica, já que os ‘acidentes’ impedem de conhecer a
‘substância, como à newtoniana[31],
que o prudente Kant crismou de “númenos”. É no entanto possível usar o que se
aprendeu no laboratório para saber algo de geral – filosofia com ciências –
sobre essa ‘realidade’ exterior a ele. Por exemplo, a lei que resulta da bioquímica
das moléculas celulares (excepto as de água) serem compostas à base de átomos
de carbono e da sua aquisição pelo mecanismo da alimentação, supõe a
fotossíntese em que as plantas recebem do anidrido carbónico (CO2)
atmosférico o açúcar glicose (C6H12O6) que tem esses átomos; em seguida, os herbívoros
alimentam-se de plantas para terem acesso a essas moléculas preciosas que no
fim os carnívoros vão ter comendo herbívoros. Pode-se chamar a este ciclo
biológico do carbono[32]
lei da selva, verificando-se
que as anatomias das espécies animais com e sem vértebras, bem diferentes entre
si, são todas determinadas por essa lei que os biólogos parecem ignorar[33]
mas que interessa ao fenomenólogo que encontra aí, nos músculos dos combates de
predação e nas astúcias para os vencer ou lhes escapar, a origem do problema da
violência e do mal, que faz parte da herança que os humanos recebemos da
evolução teorizada por Darwin.
Definição de sociedade
10. Para apreciarmos essa herança,
sublinhe-se a contribuição notável das Estruturas elementares do parentesco de Lévi-Strauss[34]
para a teoria de sociedade, relacionando o interdito do incesto, universal de
todas as sociedades humanas, com a exogamia, a troca de mulheres entre
linhagens diferentes em alianças entre elas que são a rede elementar constitutiva das sociedades[35],
apesar das grandes diferenças entre as lógicas da estruturação dos sistemas de
parentescos. Sem dúvida que a complexidade das sociedades contemporâneas é um
tremendo desafio para as ciências das sociedades entenderem os seus laços, mas
o fenomenólogo pode desconfiar de que a maneira como desde os séculos clássicos
se pensou o social pelo “contrato” entre indivíduos possa ter algo a ver com a
dificuldade de se encontrar uma definição geral de sociedade[36].
Pode-se pôr a questão assim: se passados uns 50 anos, a população dum país não
é a mesma devido às mortes e nascimentos ocorridos entretanto, como é que se
pode pretender que é a mesma
sociedade? A resposta pode passar por uma outra questão simples: como é que a
população de há 50 anos respondeu a essa pergunta? Preocupando-se extremamente
– e isto é verdade de todas as sociedades conhecidas, qualquer que seja a sua
complexidade – em que as crianças nascidas aprendam os usos dela, de maneira a que a sociedade possa
reproduzir-se como até aí. Então o que se pode chamar o paradigma da unidade social (família, emprego), o sistema
de usos que se repetem, segundo calendários variáveis, alicerçados na garantia
da alimentação quotidiana e do repouso nocturno e respectiva defesa, será
esse sistema de usos incluindo
a linguagem que define
sociedade. A vantagem desta
definição é que a noção de ‘uso’ – que inclui o que o usa, ao contrário da de
‘acção’ (ou ‘prática’, ‘comportamento’), que supõe um ‘sujeito’ que lhe é
exterior, que ela não altera – implica a de aprendizagem que transforma o
‘sujeito’, o faz passar do não-saber ao saber-fazer espontâneo mais ou menos
hábil. Então, a força muscular e a astúcia (final do § 8) vão poder sobrepor-se
à aliança e criar rivalidades, em ordem a ser-se reconhecido como o melhor, o
mais forte ou hábil, a conquistar o primeiro lugar, e por aí fora. Esta
rivalidade parece também ela ser uma espécie de universal humano, desde o nível
da família[37] e do bairro
ao das tribos e nações, à concorrência económica e à organização desportiva,
ser a raiz do que se pode chamar a lei da guerra, que se sobrepõe à das alianças e trocas e que
religiões, direito e razão buscam controlar.
O ‘dentro’ construído a partir de ‘fora’
11. Se os respectivos cientistas não
dão o passo que interessa sobremaneira ao fenomenólogo, o da complexidade da
dita realidade extra-laboratorial que o laboratório permite conhecer, deixam
também o campo livre para a compreensão das articulações das várias ciências
para o entendimento do fenómeno humano: a biologia fornece a questão da
alimentação e o primado da fome como problema social, a antropologia a da
sexualidade como excesso a ser contido no coração do social desde o interdito
do incesto, e ainda a da aprendizagem como o mecanismo social por excelência e
a disciplina das pulsões anárquicas que ele implica. Ora, quer o mecanismo da
alimentação quer o da aprendizagem têm como finalidade criar regras de
autonomia, orgânica a primeira,
pessoal-social a segunda, que são susceptíveis de serem iluminadas pelo
pensamento heideggeriano de ser no mundo, que permite compreender que essas regras de autonomia são doadas pela cena social enquanto heteronomia cuja dissimulação deixa ser a autonomia. A alimentação tem como consequência
que todas as moléculas do nosso organismo foram antes moléculas de plantas ou
doutros animais e o programa genético é, por assim dizer, o que faz o guião
fisiológico dos diversos órgãos; a aprendizagem faz essa coisa corriqueira de
grande espanto que é passar de não saber um uso a um saber espontâneo e
hábil dele, que até se pode o
usar quase sem lhe prestar atenção, o que recebe esse saber exterior sendo os
neurónios que vão ganhando sinapses ao aprender. Coisa de grande espanto: que
a nossa preciosa acima de tudo ‘interioridade’ seja incessantemente doada pela
cena ‘exterior’, eis algo a que o
próprio Heidegger não acedeu, que diz bem o alcance da revolução filosófica que
se deve à gramatologia de Derrida, o grande alcance do motivo da différance como jogo, “unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim”[38]
: por exemplo, que todo o movimento supõe regras em situação aleatória.
A desconstrução: mesmo e não-idêntico, indissociável e inconciliável
12. Com efeito, o que está em jogo
nestas questões é o que o pensador francês chamou desconstrução. Trata-se de clarificar as grandes oposições
metafísicas do pensamento ocidental, buscar um movimento que lhes seja prévio e
que permita entender o como e o porquê dessas oposições. Se atendermos ao que
fizeram os físicos do sec XVII, verificamos por exemplo que Galileu mediu o
tempo na experiência do plano inclinado com água escorrendo durante o movimento
e depois pesando-a, explicando que o que contava eram “as diferenças e
proporções”[39], que
meçamos segundos ou gramas de água pouco importa. Como Newton, a deixar de fora
a “qualidade”, isto é a substância, para reter apenas a “quantidade”, isto é,
as medidas cujos resultados são as variáveis das equações físicas. A
experimentação laboratorial em física consiste na medição de movimentos de
coisas, nas diferenças
matemáticas operadas, quaisquer que sejam as ‘substâncias’, que eram o cerne da
ousia na Physica de
Aristóteles. Mas estas ‘diferenças’ são indissociáveis dos movimentos e a
fortiori das ‘substâncias’ que se
movem, o saber físico é desconstrutivo, aplicando-se também a “massas” e a
“forças”, permitindo vir à teoria do átomo e da molécula como constitutivos
últimos das coisas substanciais, sem nunca saber da ‘substância’, como se esta
tivesse como único papel o ser a objecção (do dito objecto) a esse mesmo saber (do dito sujeito). Atendendo agora à
economia celular, encontramos um jogo de diferenças entre moléculas do ADN que
é transcrito tal e qual nas moléculas do ARNm, o qual por sua vez será
igualmente traduzido nas moléculas da proteína sintetizada: o jogo de
diferenças entre substâncias moleculares é sempre o mesmo, as substâncias moleculares empíricas é que são
outras, nos três casos indissociáveis do jogo de diferenças. Aqui foram decisivas as descobertas de F. Jacob[40]
e de J. Monod[41]. Este par
indissociável das mesmas diferenças e das respectivas substâncias moleculares
corresponde ao par espécie / indivíduo: a mesma espécie em
indivíduos não-idênticos. O
paradigma dos usos que cada indígena aprende, uma parte deles comuns, outros
especializados, é igualmente um jogo de receitas que a linguagem diz e que são
as mesmas para cada uso, que transforma cada um em sua substância individual;
sendo indissociáveis, a
receita do uso e o seu exercício caso por caso, o que corresponde ao par sociedade
/ indivíduo: aqui é a mesma sociedade em indivíduos não-idênticos.
13. A linguagem põe problemas, por
assim dizer, mais específicos à filosofia que, desde que saída da Grécia
clássica monolinguística para o helenismo plurilinguístico, não se entendeu
mais com ela. É que, duplamente articulada, a linguagem tem dois níveis de
diferenças: dos sons elementares de cada voz (fonemas, letras) articulados em
palavras, fazendo o par significante (fonema) / som da voz individual, aonde se
está ao nível do uso social aprendido; das palavras articuladas nas frases do
discurso, fazendo o par significante (palavra) / sentido, ao nível do
pensamento individual. Ambos os pares são indissociáveis, entre diferenças e as
respectivas ‘substâncias’ sonoras (embora o ‘som’ não seja propriamente uma
‘substância’), ambos relevam do par linguístico língua / fala, a mesma língua em falas não-idênticas, seja nas vozes de indivíduos diversos, seja nos discursos (ou textos) do
mesmo indivíduo variando as ocasiões. Um teste que diferencia estes dois pares
é o da tradução: o par língua / voz é radicalmente substituído pelo par
equivalente da língua em que se traduz, enquanto que a fidelidade da tradução é
a de procurar em palavras e outras regras linguísticas diferentes restituir o
mesmo texto, o que é tanto mais
difícil quanto o for o carácter poético, literário, do texto. A mesmidade do discurso
ou texto é o seu pensamento, o qual é feito das diferenças linguísticas das
palavras e frases e portanto das diferenças sonoras ou gráficas, e foi nesse
ponto que, por via do debate nominalista, a filosofia europeia privilegiou o
pensamento e a razão, subordinando-lhes a língua como ‘instrumento’, como que
em eco ao organon
aristotélico. Decisão num indecidível, que provinha já da herança de Platão e
Aristóteles, da oposição entre o “inteligível” e o “sensível”, aquele sendo
proposto como o que não depende deste, justamente o que a linguagem impede,
como Derrida mostrou[42]
(1972, p. 5): a diferença entre dois sons não é sonora, não é sensível, mas não
é senão entre sensíveis.
14. Mas porque é que se forjaram estas
oposições, porquê o pensamento de tão grandes pensadores lhes cedeu, porquê a
desconstrução é necessária historicamente e tão difícil? Citemos Derrida lendo
Freud. “Tocamos aqui no ponto da maior obscuridade, no próprio enigma da différance, no que lhe divide justamente o conceito por uma
estranha partilha. Não se deve apressar-se para decidir. Como pensar ao mesmo
tempo a différance como desvio
económico que, no elemento do mesmo, visa sempre reencontrar o prazer ou a
presença diferida por cálculo (consciente ou inconsciente) e por outro lado a différance como relação à presença impossível, como despesa
sem reserva, como perca irreparável da presença, usura irreversível da energia,
ou até como pulsão de morte e relação ao totalmente outro que interrompe em
aparência toda a economia? É evidente – é a própria evidência – que não se pode
pensar em conjunto o económico e o não económico, o mesmo e o totalmente outro,
etc. Se a différance é este
impensável...” [43]. Impensável:
a espécie e o indivíduo, a sociedade e o indivíduo, a língua e a fala. Estes
pares indissociáveis que encontrámos são de dois parceiros antagónicos,
re(pro)duzidos por différance
como temporais, isto é, moventes no meio de outros moventes: é a noção mesma de
movimento que implica
indeterminação na cena onde outros não-idênticos circulam igualmente, ou seja
implica autonomia, excesso em
relação à mesmidade heteronómica, cujas diferenças doadas são regras, por assim
dizer que ‘disciplinam’ os movimentos para que eles sejam autónomos, indeterminados,
mas mantendo-se na mesma espécie, sociedade ou língua, consoante. Os pares
indissociáveis são inconciliáveis: as autonomias só podem ser se, não-idênticas, objectarem aos outros em geral, à mesmidade doadora que o
substancial empírico excede, enquanto capaz por essa mesma doação de movimento
alternativo.
Ousia e duplo
laço
15. O que foi aqui proposto releva do
movimento histórico ocidental que pensou o movimento, entre a Physica e a Física. A primeira propunha o motivo de ousia para compreender o movimento dos vivos, dos que
se movem por eles mesmos, crescem e se alteram, e também se deslocam; a segunda
limitou-se ao deslocamento como movimento dos inertes porque ele é susceptível
de ser medido, mas deixou as ‘coisas’, os fenómenos, nomeadamente os vivos,
fora do alcance do seu laboratório. Assim como a ousia aristotélica serviu para organizar o discurso de
várias ciências de observação e definição, também a mecânica newtoniana
fomentou outros laboratórios com outras maneiras de observar ‘mecânicamente’ os
fenómenos vivos e sociais que a Física e a Química não alcançavam. A separação
entre ciências exactas (da exactidão que lhes confere a matemática[44]
sem a polissemia que é inerente à economia das línguas humanas) e outras
ciências (adjectivadas de sociais e humanas com algum pejorativo) manteve-se
até hoje como desafio à unidade do saber, que desapareceu com a metafísica. Se
é verdade que o que chamamos ciências se ocupa do conhecimento de fenómenos, de
operar o que Husserl chamou “retorno às coisas”, e se for certo o que aqui se
pretendeu, lendo os dois grandes dissidentes do fenomenólogo alemão, como
conjunção entre essas dissidências e algumas das grandes descobertas
científicas suas contemporâneas no século passado, poderemos pretender que esta
unificação do saber se realiza a um nível fenomenológico, embora fortemente
alterado em relação a Husserl já pelas duas dissidências. Propus o motivo de duplo
laço que Derrida retomou de
Bateson como o que, digamos assim, substitui a ousia da antiga Physica nesta maneira de pensar o movimento: tratar-se-á
então, para terminar, de detalhar um pouco esse motivo em confronto com ela.
16. O que sobra à ousia substancial, os acidentes, é o que liga cada uma
ao contexto particular aonde tem origem, que lhe dá pois o que podíamos chamar
o seu aparato sensível enquanto fenómeno, visível aos olhos, audível aos
ouvidos, tacteável pelas mãos. Que ela se altere mudando de eidos e mantendo a mesma hulê, o que justifica que a ousia possa ter sido tratada também na Metafísica, é a vertente substancialista do quarteto, o que
foi desconstruído desde Galileu e Newton. Muito mais interessante é o seu outro
par, o kinoun que lhe dá
movimento e o telos dele, o
‘motor’ e o ‘sentido’ desse movimento, que poderão ser apreciados, pelo menos
no caso simples dos deslocamentos, como o dos carros, mas tratando-se dos vivos
pedem, não uma archê da phusis, como Heidegger leu no livro da Physica[45] (1968), mas uma extensão além do organismo e da
sua pele. Para salientar desde
o início o contraste, tomar-se-á um modelo relativamente simples para
apresentar o duplo laço, que
tem a vantagem de estar no coração das sociedades contemporâneas, o duma máquina, o automóvel a gasolina sendo a que nos é mais
familiar. Não sendo viva, o par eidos / hulê desta máquina não implica nenhum movimento de
crescimento ou alteração, mas pelo contrário o par motor / sentido é crucial
para a caracterizar: o motor
consiste nos cilindros onde se faz a explosão do combustível, que têm que ser
hermeticamente fechados, inacessíveis em funcionamento a qualquer mão, retirados de todo o resto do carro, daquilo que se pode
chamar o aparelho, que contém
as peças necessárias à condução na estrada, desde a embraiagem até aos veios
das rodas, mais o volante, os lugares de passageiros (ou mercadorias), etc. O
conjunto das peças do motor é constituído por um laço, o do aparelho por outro
laço: nenhum deles foi inventado sem o outro, só há movimento porque o motor o
dá e o aparelho o guia, não são pois dois laços, mas – indissociáveis – um duplo laço. Esta unidade
é a do fenómeno, da coisa enquanto tal, isto é, enquanto capaz de se mover.
Motor e aparelho ligam as respectivas peças segundo leis diferentes e inconciliáveis: a lei da termodinâmica dos gases que rege a
explosão no motor (‘retirado’ por isso), a lei do tráfego que rege o aparelho
enquanto regulador do sentido
do movimento, que tem de ser capaz de travar ou acelerar, virar à direita ou à
esquerda, recuar, ter iluminação, etc., consoante o aleatório do tráfego. Se compararmos a máquina, invenção
capital das sociedades contemporâneas, com a ousia dos vivos, podemos dizer que: a) liga a propriedade
dos vivos – ter o movimento por si – com a dos inertes, concilia a Physica e a Física; sendo viável em ambos os casos, o duplo laço poderá ser susceptível de
conciliar as ciências exactas e as ciências dos vivos; b) a cena do tráfego,
que faz a doação dos carros[46],
o contexto do movimento, é parte do duplo laço, não lhe fica de fora (como o da
ousia, por definição); os
engenheiros no laboratório têm os olhos fora, na cena, donde que tudo o que,
visível, audível, tacteável, é peça do carro tratada laboratorialmente, não é
‘acidental’; c) a relação entre as regras rigorosas com que os
duplos laços são constituídos em suas peças contrasta, de uma forma que suscita
o espanto filosófico, com o aleatório essencial a que o funcionamento delas é destinado. É o determinismo (motivo substancialista) que é posto em questão,
quando se percebe que as regras científicas, descobertas fragmentariamente em
laboratório, uma a uma, se jogam ao nível teórico do engenheiro, da globalidade
do movimento do fenómeno, em cenas aleatórias fora do laboratório: regra (ou
lei) faz parceria com aleatório,
aonde joga (motivo derridiano, §11 final) necessariamente a finalidade que o
laboratório proscreveu: a re(pro)dução, que é a regra geral dos vivos, implica
nela mesma uma finalidade iterativa, sempre sujeita a ser alterada devido a
acontecimentos.
Os princípios dos dois tipos de matéria: o átomo e a célula
17. Para terminar, tratar-se-á duma
breve exposição dos principais duplos laços, que se enlaçam sucessivamente uns
nos outros na evolução da vida e da história a partir da matéria inerte astral,
supondo (moléculas de) átomos constituídos a partir dum núcleo de protões e
neutrões, primeiro laço devido a forças nucleares, ligados a electrões, segundo
laço devido a forças electromagnéticas. O primeiro é irredutível, nas condições
terrestres de pressão e temperatura, à força da gravidade e à transformação química,
garante assim a impenetrabilidade dos átomos de todos os graves, inclusive
gasosos; os electrões, ao contrário, são susceptíveis de se ligarem a outros
electrões, formando moléculas simples ou compostas (forças intra-moleculares) e
depois graves (forças extra-moleculares) como rochas, mares, atmosferas, os
quais são ligados nas suas posições pela força da gravidade do planeta. Tudo o
que merece o nome de ente em
filosofia, de ‘coisa’ em fenomenologia, releva primariamente destes duplos
laços definindo a matéria, desde os átomos aos astros. A mecânica quântica
ocupa-se de infra-matéria, de partículas aparentemente não susceptíveis de fenomenologia.
18. Houve na terra a primeira grande
novidade com a invenção da célula. O que nesta chamo duplo laço foi descoberto
nos anos 50 do século passado: ao núcleo das células eucariotas, ocupado pelo
ADN em cromossomas, corresponde o primeiro laço, ao metabolismo – com seus
ribossoides[47] – no
citoplasma que uma membrana delimita corresponde o segundo laço. A importância
de se perceber que se trata dum duplo laço é a do papel do ADN ser limitado à
regulação do metabolismo, sem o qual ele não existe[48].
A diferença morfológica do átomo e da célula[49]
pode ser dita assim. Os graves que aparecem ao nível da observação são
constituídos por moléculas homogéneas, cujo núcleo atómico garante a inércia como a sua autonomia possível: ‘resistência’ do
impenetrável à desagregação e ‘disponibilidade’ dos electrões a ligações
químicas com outros em proximidade conveniente; enquanto que nos organismos
vivos, que aparecem ao nível da observação, as células são compostas de
moléculas diferentes e especializadas nas suas funções, o que permite nos
vertebrados a existência de cerca de duas centenas de células de tecidos
diferenciados e a extraordinária diversidade das espécies, vegetais como animais.
O mundo dos átomos é o que garante a empiricidade radical de cada ente, irredutivelmente
não idêntico a outro qualquer;
o programa genético é o que torna possível a reprodução, a ‘espécie’ biológica
como um nível inédito do mesmo de indivíduos não idênticos, tal como a ‘sociedade’ humana e a ‘língua’. A
différance de Derrida joga-se
a partir da vida, antes a diferença estabelece-se entre campos de forças e
graves ou astros.
Os duplos laços
compostos
19. No que diz respeito ao que
chamamos história, haverá em termos de duplos laços três novidades principais a
partir da evolução dos vivos: a história das sociedades humanas em suas
unidades locais de habitação e suas invenções[50],
a da escrita alfabética e a da máquina. O critério fenomenológico que decide do
que é novidade, consiste nos respectivos laços ‘retirados’ que conhecerão, tal
como o átomo e a célula[51],
desenvolvimentos mais complexos e especializados de duplos laços compostos, com
a ressalva de que a escrita alfabética supõe as línguas prévias e a máquina
beneficiará fortemente da invenção da electricidade, que nela mesma – corrente
de electrões – não parece relevar de duplo laço. O que é interessante nesta
sucessão de evoluções históricas é que as fronteiras das diversas ciências não
intervêm nelas, continuam-se umas às outras deixando ver que os ‘cortes’
relevam das reduções científicas inerentes aos laboratórios.
20. Enquanto que as plantas, que
nunca estudei, parecem ter um único sistema, o da alimentação de todas as suas
células a partir da fotossíntese, os animais, além do esqueleto e da
sexualidade, têm um duplo sistema, o da alimentação e o da mobilidade. O
primeiro forma um duplo laço entre as células e a circulação do sangue que as
alimenta, mas por sua vez constitui o primeiro laço (sistemas digestivo,
respiratório, circulatório, etc) de que o sistema da mobilidade é o segundo, o
cérebro neuronal (e seu equivalente nos invertebrados) articulando-os a ambos,
no cuidado da homeostasia sanguínea e no desencadear da caça, espicaçado pela
hormona da fome. Neste novo duplo laço, o sistema de alimentação, retirado da
cena ecológica, dá o movimento; o da mobilidade, dos órgãos periféricos de
sensibilidade aos músculos pelo sistema dos nervos e do cérebro, regula as
buscas de comer e beber, respiração e repouso de maneira protegida. A formação
dum neo-cortex cerebral nas aves, alguns répteis e mamíferos, deixa ao
paleo-cortex as funções endócrinas e abre um espaço para maior complexidade das
funções estratégicas na cena ecológica. Se a pele é o limite do organismo, é
óbvio todavia que qualquer animal é um ser no mundo (com pouco mundo, dizia Heidegger) onde busca
alimento e protege-se de ser alimento de outrem. Ora, é neste neo-cortex que se
vão inscrever por aprendizagem os grafos dos usos sociais, criando-se assim um
novo duplo laço de ordem social: ora, estes grafos cerebrais feitos a partir do
que se aprende dão neurologicamente conta da intencionalidade husserliana, já
que a consciência vai à coisa porque já a tem, porque aprendeu a usá-la.
21. O paradigma de usos liga e regula
os indígenas – pela aprendizagem – na sua unidade social, esses usos colectivos
devendo garantir prioritariamente o movimento de reprodução de cada um: alimentação
e protecção, que é por onde eles são ‘atractivos’, na definição de Kuhn[52],
generalizável fenomenologicamente a qualquer unidade social. A linguagem tribal
faz parte do paradigma, diz as receitas dos usos e as regras dos costumes, usos
e costumes sendo equivalentes nas diversas unidades duma mesma tribo, que um
laço político entre todas unifica, fazendo duplo laço com os paradigmas
reguladores das unidades (que fazem duplo laço com os usos indígenas que dão o
movimento à unidade). São estas unidades sociais que dão o movimento quotidiano
da tribo, seu laço ‘kinoun’
enlaçado com o sistema do parentesco que, digamos a nível ‘político’, regula
conflitos eventuais entre unidades de habitação e actividades de conjunto
(festas, caças, pescas...), nomeadamente as guerras. A linguagem, que é
decisiva nestes duplos laços sociais, introduz um tipo novo de duplo laço,
retendo um sistema de fonemas acordado às capacidades de fonação, laço que dá a
voz de cada um e que se desdobra num segundo laço de frases com palavras,
‘aparelho’ regulador do sentido dos sons produzidos pela voz, retirada na
intimidade de cada um.
22. As transformações das sociedades
fazem-se pelas transformações dos paradigmas dos usos que unem as unidades
sociais, as quais terão o papel de ‘motor’ social, sendo que a invenção da
agricultura trouxe o princípio da especialização de unidades – casas, unindo parentesco e actividade económica –, a
maioria sendo de agricultores e nas cidades de artesãos; foram as casas de
guerreiros nobres que, devido à generalização da lei da guerra e à consequente
escravatura, ganharam a função do laço político, com proeminência da casa real;
enfim, os templos religiosos, correlativos da incerteza dos humanos sobre as
fecundidades dos campos, dos rebanhos e das mulheres, sobre as saúdes e os
resultados das guerras, garantiam a relação ancestral que dá sentido ao
conjunto.
A cena do conhecimento: tribal e cosmopolita
23. Ora, a invenção da escrita alfabética trouxe
uma novidade baseada no sistema de letras correspondentes aos fonemas das
línguas orais: a criação de unidades sociais em torno da escrita e leitura de
textos gnosiológicos com definição e argumentos sobre essências intemporais, as escolas gregas[53],
a Academia e o Liceu tendo estado na origem duma história escolar que, após uma
longa aliança teológica com a igreja medieval, deu origem, juntamente com o
direito romano, à instituição das universidades. A indústria da impressão de
livros, o desenvolvimento escolar, o laboratório científico, resultam no aflorar duma linha histórica de
escritos filosóficos e científicos cujos duplos laços (letras, palavras,
frases, textos) se enxertarão em indígenas alfabetizados das casas e tornarão
possível, quer a invenção da máquina a vapor e depois da electricidade que
dividirá as ‘casas’ de antanho entre instituições de empregos e famílias, quer
as revoluções políticas subsequentes, quer a escolarização generalizada das
populações, quer ainda o prolongamento dos livros e jornais por médias[54] sonoros e de imagens. Como é que os livros (com a
escola) se enxertam nos duplos laços do conhecimento dos indígenas
contemporâneos? Cada um conhece bem, sem lugar a cepticismos, aquilo que
aprende na sua tribo que, hoje em dia, consiste na família, escola ou emprego,
além dos seus prolongamentos em gente conhecida, a quem se aperta a mão ou diz
‘bom dia!’, que é o ‘mundo’ em que se é ‘ser no mundo’; conhece bem, aprendendo
sempre, porque se trata de coisas que se vêem, ouvem nomear e em que se mexe
habitualmente, mais ou menos espontaneamente. Nos empregos, hoje praticamente
sempre especializados, faz parte desse conhecimento tribal que os livros e
revistas que se lêem são trabalhados em função das tarefas a que dizem respeito, seja em dados numéricos, seja
em argumentos, e pertencem pois, em princípio, ao conhecimento relativamente
seguro que se tem. Fora destes casos, os médias em geral incluindo os livros,
jogam na esfera do lazer, sem resposta das mãos nem da voz dos indígenas, o seu
enxerto no conhecimento do mundo de forma genérica, extra tribal, pode ser contrastado
com o conhecimento tribal pelo termo cosmopolita, de forma mais sujeita a enganos, quer da parte
dos indígenas, quer dos próprios médias. É esta a zona mais propícia a dúvidas
e a controvérsias, embora a sua distinção em relação à cena tribal do
conhecimento não seja simples, consoante a proximidade das questões. Mas o que
vem como cosmopolita ganha força, no sentido do que chamamos ‘uma pessoa
culta’, do próprio valor do conhecimento tribal, do que há nele de
‘trabalhado’. Observação esta que, em tempos de relativismo dominante, nos
permite uma indicação sumaríssima sobre a questão da verdade, para um cientista
e para um filósofo. Para o primeiro, a verdade joga-se na relação teoria /
experiência, adentro do paradigma, é pois da ordem do laboratorial. Fora deste,
é reconhecível, até para os leigos, pelas suas incidências nos contextos quotidianos:
assim as técnicas obviamente, diminuídas apenas pelas poluições que não sabem
evitar. Para o segundo, a falta de experimentação torna a coisa mais complicada,
já que os efeitos que o discurso filosófico pode ter em seus leitores – hoje
quase sempre de especialistas para especialistas – são da ordem da comunidade
que os argumentos conseguem criar como ‘escol’, como sempre foi ao longo da sua
história[55]. Foi assim
desde Platão que teve como discípulo um crítico dissidente, como ele próprio
assinalou no Parménides
(135c): a oscilação entre ambos na história do Ocidente mostra bem que não
houve um critério de verdade imanente à filosofia saída da definição. Pode ser
todavia que este embrião de filosofia com ciências receba destas algo como uma unificação filosófica sistemática na
compreensão das coisas do universo que mereça o tão difícil epíteto de ‘verdadeiro’.
A liberdade como enigma
15. Esta sistematização assenta na
indeterminação geral dos entes, de tudo o que se move – por si nos vivos,
provocado nos inertes –, a qual se torna cada vez mais indeterminada com a
respectiva complexidade anatómica. Nos humanos, convergem os jogos das diferentes
cenas científicas, biológico e neurológico, antropológico e linguístico,
especializado e cosmopolita, que o que se chama psicologia teria o propósito,
cientificamente impossível, de abarcar e unificar. A psicanálise criou o seu
laboratório no divã, em que se deve suspender todo o mecanismo de pertinência
(bom senso e decência) e dissimulação como defesa social, para a análise da
auto-biografia escondida ao próprio sujeito, que por via da interpretação dos
sonhos acede ao que, retirado da consciência, Freud apelidou de “inconsciente”
em suas facetas (id, ego, superego)[56]
– indissociáveis e inconciliáveis com – dão o movimento ao saber “consciente”
que governa, regula como pode, as relações com os outros humanos na cena
social. Ela é assim entre as disciplinas psicológicas aquela que oferece a
coerência fenomenológica dum duplo laço, que se adequou à crescente
complexidade da indeterminação de cada um nas sociedades hodiernas, globalizadas
em mecanismos cosmopolitas e redes sem fim, mas já na mais simplória das tribos
se pode reconhecer em cada indígena a tão complexa indeterminação dos humanos
como enigma, aquele que merece
o belo nome de liberdade:
nunca se sabe o que o outro vai dizer, vai querer fazer. Em política, a esta
indeterminação enigmática só pode corresponder a democracia, o regime da razão
e do respeito de todos por essa liberdade, inédita de cada vez nas suas mais
humildes manifestações.
Bibliografia
Aristote. Physique, ed. bilingue, traduzido por H. Carteron, Paris. Les Belles Lettres,
1952-56
Aristote. Sur la
génération et la corruption, traduzido por Ch. Mugler,
Paris. Les Belles Lettres, 1966
Aristote. Les
Parties des Animaux, ed. bilingue, traduzido por P.
Louis, Paris. Les Belles Lettres, 1956
Aristote. Catégories, tradução e notas J.
Tricot, Paris. J. Vrin, 1977
Aristote. Poétique,
ed. bilingue, trad. et com. R. Dupont-Roc et J. Lallot,
Paris. Seuil, 1980
Barbieri, Marcello.
Teoria Semântica da Evolução, traduzido por Mª. L.
Pinheiro, Lisboa. Fragmentos, 1987
Belo, Fernando. Le
Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (2 vol.), Paris. L’Harmattan, 2007
Belo, Fernando.
“Manifesto duma Fenomenologia sistemática e indeterminista, relativa e verdadeira”,
no blogue Filosofia com Ciências, 19/2/2008 (30
mensagens)
Belo, Fernando. Natureza
e técnica, e.book, ed. de autor, 2013
Belo, Fernando.
“Porque é que as ciências precisam de laboratório ?” no blogue filosofia
mais ciências 2, 2/12/2013
Belo, Fernando. “A
evolução entre biologia e bioquímica, entre Darwin e M. Barbieri”, idem,
6/8/2017
Benveniste,
Émile. Problèmes de Linguistique générale, Paris.
Gallimard, 1966
Changeux,
Jean-Pierre. L'homme neuronal, Paris. Fayard, 1983
Clastres, Pierre. La
Société contre l'État, Recherches d'Anthropologie politique, Paris. Minuit, 1974
Clastres, Pierre.
‘Arqueologia da violência : a guerra nas sociedades primitivas’, traduzido por
J. A. Santos. In Guerra, religião, poder, editado
por P. Clastres, M. Gauchet, A. Adler, J. Lizot, 11-45. Lisboa. Edições 70,
1980
Damásio, António. L'erreur
de Descartes, La raison des émotions, traduzido por M.
Blanc, Paris. Odile Jacob, 1995
Damásio, António. O
livro da consciência, tradução de L. Oliveira Santos,
Lisboa. Temas e debates, 2010
Darwin, Charles. A
origem das espécies por meio da selecção natural ou a luta pela existência na
natureza, traduzido por Joaquim Dá Mesquita Paul,
Estarreja. Mel editores, 2009
Derrida, Jacques. De
la Grammatologie, Paris. Minuit, 1967
Derrida, Jacques. Marges,
de la Philosophie, Paris. Minuit, 1972
Derrida, Jacques. Glas, Que reste-t-il du savoir absolu ?, Paris. Galilée, 1974
Derrida, Jacques. La
Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, Paris. Flammarion,1980
Dubet, François et
Martucelli, Danilo. Dans quelle société vivons-nous?, Paris. Seuil, 1998
Elias, Norbert. La
civilisation des mœurs, traduzido P. Kamnitzer, Paris.
1973
Elias, Norbert
La dynamique de l’Occident, traduzido P. Kamnitzer,
Paris. Calmann-Lévy, 1975
Favret-Saada,
Jeanne. Les mots, la mort, les sorts. Enquête sur la sorcellerie dans le Bocage, Paris. Gallimard, 1977
Feynman,
Richard. Seis lições sobre os fundamentos da Física,
traduzido por M. T. Escoval, Lisboa. Presença, 2000
Freud,
Sigmund. [1900], Traumdeutung /La interpretacion de
los sueños, 3 vol., traduzido por L. Lopez-Ballesteros y de Torres, revista por
Freud, Madrid. Alianza, 1966
Freud,
Sigmund. [1905], Trois essais sur la théorie de la sexualité, traduzido por B. Reverchon-Jouve, revista por Laplanche e Pontalis,
Paris. Gallimard, 1962
Freud,
Sigmund. "Pulsions et destins des pulsions", "Le
refoulement", "L'inconscient", [1915], in Métapsychologie, traduzido por Laplanche et Pontalis, Paris. Gallimard, 1968a
Freud,
Sigmund. "Au-delà du principe de plaisir" [1920], "Le moi et le
ça", [1923], in Essais de Psychanalyse,
traduzido por S. Jankélévitch, Paris. Payot, 1968b
Galilée, Galileo. Discours
et démonstrations mathématiques concernant deux sciences nouvelles, introd., traduzido por e notas de M. Clavelin, Paris. A. Colin, 1970
Gil, José. Métamorphoses du corps, La
Différence, Paris. 1985
Gilson, Étienne. Le
Thomisme, Introduction à la philosophie de Saint Thomas d’Aquin, J. Vrin, 19475 [ cours de 1913-4]
Gros, François. Les secrets du gène, Odile
Jacob, Paris. 19912
Gross,
Maurice. Méthodes en syntaxe : régime des constructions complétives, Paris. Hermann, 1975
Heidegger,
Martin. Être et Temps, [1927], traduzido por E.
Martineau. Edição fora do comércio, 1985
Heidegger, Martin.
"Ce qu'est et comment se détermine la Physis", [1940] in Questions II, traduzido por F. Fédier, Paris. Gallimard, 1968
Heidegger, Martin.
"Temps et être" [1962, 1969], Questions IV, traduzido por F. Fédier, Paris. Gallimard, 1976
Husserl, Edmund. L’origine de la Géométrie,
com ‘introduction’ de J. Derrida, Paris. P. U. F., 1962
Jacob, François. La
logique du vivant, une histoire de l’hérédité, Paris.
Gallimard, 1970
Kandel, Eric. À la recherche de la mémoire. Une nouvelle théorie de l'esprit, traduzido por M. Filoche, Paris. Odile Jacob, 2007
Kuhn, Thomas. La
structure des révolutions scientifiques, traduzido por
L. Meyer, Paris. Flammarion, 1983
Laplanche,
Jean et Pontalis, Jean-Baptiste. Vocabulaire de la Psychanalyse , Paris. P. U. F., 1967
Lévi-Strauss,
Claude. Les Structures élémentaires de la parenté, Paris. P.U.F., 1949
Lévi-Strauss,
Claude. Anthropologie Structurale, Paris. Plon,
19582
Lévi-Strauss,
Claude. Mythologiques (4 vol.) Paris. Plon, 1964-71
Martinet,
André. Éléments de Linguistique générale, Paris.
Armand Colin, 1967
Mateus, Maria
Carmo e Martins, Maria Rosário. Física-Química, unidade 1, Como são e como
se comportam os átomos, CNED, Marinha, Lisboa, 1998
Mateus, Maria
Carmo e Martins, Maria Rosário. Física-Química, unidade 2, Como os átomos
constituem a matéria, Marinha CNED, Lisboa, 1998
Monod, Jacques. Le
hasard et la nécessité. Essai sur la philosophie naturelle de la biologie
moderne, Paris. Seuil, 1970
Newton,
Isaac. Principes mathématiques de la Philosophie naturelle, traduzido por Mme Châtelet, edição fac-simile de A. Blanchard, Paris.
1966
Paisana, João. Fenomenologia
e Hermenêutica, A Relação entre as Filosofias de Husserl e Heidegger, Lisboa. Presença, 1992
Platon. République, traduzido por R.
Baccou, Paris. Garnier-Flammarion, 1966
Platon. Parménide, Sophiste, Théétète, traduzidos por E. Chambry,
Paris. Garnier-Flammarion, 1967, 1969
Prochiantz, Alain. Les stratégies de l'embryon, Paris. P.U.F., 1988
Prochiantz, Alain. La
construction du cerveau, Hachette, Paris. 1989
Ruffié, Jacques. Tratado
do Ser Vivo, traduzido por J. V. de Lima, Lisboa. Fragmentos,
1988
Saussure,
Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale, ed.
critique T. de Mauro, Paris. Payot, 1972
Vincent, Jean-Didier. Biologie des passions,
Paris. Odile Jacob, 1986
[1] Martin Heidegger, Être
et Temps, [1927], traduzido
por E. Martineau. Edição fora do comércio, 1985
[2] Martin Heidegger,
"Temps et être" [1962, 1969], Questions IV, traduzido por F. Fédier, Paris. Gallimard,
1976
[9] O critério de
discernimento é o do doador retirado do movimento, respectivamente : o
núcleo do átomo, o ADN, o interdito do incesto nas unidades sociais, o sistema
dos fonemas (letras) duma língua e o inconsciente.
[11] Ferdinand de Saussure, Cours
de Linguistique Générale, ed.
critique T. de Mauro, Paris. Payot, 1972
[14] Aristote, Physique, ed. bilingue, traduzido por H. Carteron,
Paris. Les Belles Lettres, 1952-56
[15] Aristote, Les Parties
des Animaux, ed. bilingue,
traduzido por P. Louis, Paris. Les Belles Lettres, 1956
[16] Aristote, Sur la
génération et la corruption,
traduzido por Ch. Mugler, Paris. Les Belles Lettres, 1966
[18] Aristote, Poétique, ed. bilingue, trad. et com. R. Dupont-Roc et
J. Lallot, Paris. Seuil, 1980, que define no seu
cap. 6 a ousia da tragédia.
[19] Isaac Newton, Principes
mathématiques de la Philosophie naturelle, traduzido por Mme Châtelet, edição fac-simile de A.
Blanchard, Paris. 1966
[20] Martin Heidegger, Être
et Temps, [1927], traduzido
por E. Martineau. Edição fora do comércio, 1985
[21] Se se pode
pensar que a Physica de Aristóteles é uma crítica incipiente dessa dualidade ontoteológica,
haverá que admitir que o tomismo, ao recuperar o pensamento do Estagirita,
entendeu a substância / essência de forma metafísica, com o movimento como acidente (Gilson, Étienne. Le Thomisme, Introduction
à la philosophie de Saint Thomas d’Aquin, J. Vrin, 19475 [ cours de 1913-4]: 47). Residirá aí possivelmente
que, movimento e história sendo secundarizados face às idealidades
gnosiológicas, o ‘tempo’ tenha vindo a isolar-se do movimento (de que era a
medida segundo o anterior e o posterior na Physica) e a fazer na Física par com o
‘espaço’ (o qual, por sua vez enquanto medida, substitui o ‘lugar’ das coisas
dos Gregos), par que apenas alcança o movimento como deslocamento.
[23] Era já, à
sua maneira biológica, a lógica da demonstração de Charles Darwin, A origem das espécies por meio da
selecção natural ou a luta pela existência na natureza, traduzido por Joaquim Dá Mesquita Paul, Estarreja.
Mel editores, 2009
[24] Martin Heidegger,
"Temps et être", Questions IV, traduzido por F. Fédier, Paris. Gallimard, 1976
[25] Heidegger, Martin. Être
et Temps, [1927], traduzido
por E. Martineau. Edição fora do comércio, 1985
[27] Ferdinand de Saussure, Cours
de Linguistique Générale, ed.
critique T. de Mauro, Paris. Payot, 1972
[30] Fernando Belo, “Porque é
que as ciências precisam de laboratório ?” no blogue filosofia mais ciências
2, 2/12/2013
[31] Os efeitos
secundários dos medicamentos, a poluição, são o resultado fora do laboratório
dos limites deste, efeitos que não foram, não podiam ser analisados.
[33] Fernando Belo, “A
evolução entre biologia e bioquímica, entre Darwin e M. Barbieri”, no blogue filosofia
mais ciências 2, 6/8/2017
[35] As
sociedades industrializadas acrescentaram uma outra rede, a das instituições de
trabalho, cujo peso veio a provocar a crise das famílias dos anos 60 e 70.
[36] Que não se conseguiu,
segundo François Dubet et Danilo Martucelli, Dans quelle société vivons-nous?, Paris. Seuil, 1998 : 21-23
[37] Caução da Bíblia em Gn 4 (Cain e Abel), de Aristóteles, Poética 1453a17-22 (as tragédias acontecem nas casas
nobres), de Sigmund Freud,
[1900], Traumdeutung / La
interpretacion de los sueños, traduzido por L. Lopez-Ballesteros y de Torres,
revista por Freud, Madrid. Alianza, 1966, 2º volume : 93-96 (os sonhos de
irmãos são de rivais).
[39] Galilée, Galileo. Discours
et démonstrations mathématiques concernant deux sciences nouvelles, introd., traduzido por e notas de M. Clavelin,
Paris. A. Colin, 1970 : 144
[41] Jacques Monod, Le hasard
et la nécessité. Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne, Paris.
Seuil, 1970
[44] A
estatística não é uma matemática exacta em seus cálculos, que supõem operações
aritméticas mas não equações algébricas aplicáveis aos seus dados, como sucede
em física e em química.
[45] Martin Heidegger, "Ce
qu'est et comment se détermine la Physis", [1940] in Questions II,
traduzido por F. Fédier, Paris. Gallimard, 1968
[46] A cena do tráfego implica, além das
estradas e dos outros carros, fábricas, oficinas, stands de venda, sistema de
abastecimento, seguros, banca, código da estrada, polícia...
[47] Marcello Barbieri, Teoria
Semântica da Evolução,
traduzido por Mª. L. Pinheiro, Lisboa. Fragmentos, 1987 : 113
[49] Além das
dimensões, obviamente, mas ambos a nível microscópico (critério ‘biológico’), salvas algumas células excepcionalmente
grandes.
[51] No átomo e
na célula não se pode falar em ‘motor’, os respectivos primeiros laços não dão
movimento por si sós.
[52] Thomas Kuhn, La
structure des révolutions scientifiques, traduzido por L. Meyer, Paris. Flammarion,
1983 : 30-31
[54] Que é como se deve dizer
em línguas latinas, ‘média’ é americano, língua que não forma o plural com s.
[55] Ao invés do
discurso teológico cristão que, aquém da sua conceptualidade filosófica grega,
tem da origem narrativa judaica um critério de experimentação decisivo, o da
exigência do amor do próximo como a si mesmo (no tribal pois), a coisa mais
difícil que há no mundo.
[56] Sigmund Freud,
"Au-delà du principe de plaisir" [1920], "Le moi et le ça",
[1923], in Essais de Psychanalyse, traduzido por S. Jankélévitch, Paris. Payot, 1968
Sem comentários:
Enviar um comentário