“A Física de Aristóteles é, em retracção,
e por essa razão nunca suficientemente
atravessado pelo pensamento,
o livro de fundo da filosofia ocidental”
(Heidegger)[1]
O duplo gesto em volta da definição
filosófica: separação e retorno às
coisas
A ousia:
compreender o movimento dos vivos
A ousia e o tempo
Física: filosofia-com-ciências
Aristóteles não é aristotélico
Bibliografia
O duplo gesto em volta da definição
filosófica: separação e retorno às
coisas
1.
Platão recebeu a definição de Sócrates; foi este o seu inventor, diz Aristóteles na Metafísica, mas “só para
as coisas éticas e não
[como fez ele mesmo] para as que têm relação com a phusis no seu
conjunto” (A, 6, 987b1-2). A definição é uma operação de escrita, uma operação violenta. Ela consiste na
de-limitação do significado duma
palavra, na de-cisão de excluir dela a polissemia, a sua variabilidade contextual: o seu
efeito seria o de querer fazer coincidir o significado com o significante (em categorias saussurianas), como
sucede na convencio-nalidade da escrita matemática;
trata-se em certo sentido de querer anular a articulação
literal
da linguagem, de só lhe deixar a articulação
sintáctica[2]. É claro que
não chega uma decisão-definição, é preciso que haja em simultâneo uma intervenção, igualmente violenta, sobre o contexto: eliminar-lhe os verbos e a sua rica morfologia de adequação aos detalhes e jeitos da chamada
‘realidade’ que os textos contam, não deixando, no lugar focal das suas frases,
senão a cópula (é / são)[3] e os seus
equivalentes. É esta textualidade gnosiológica - em torno das definições
de essências e dos argumentos sobre elas - que foi a invenção da escola socrática de filosofia, de que se pode encontrar a caracterização nos textos de Benveniste sobre a
frase nominal e os auxiliares ‘être’ e ‘avoir’, que veio, sem ele dar por isso,
completar as que ele tinha explicitado sobre o
discursivo (em torno do
‘eu / tu’, do ‘aqui / agora’ e do presente dos verbos) e o narrativo (sem estes índices de enunciação, em torno do aoristo dos verbos)[4]. O nome
corrente desta violência da operação de definição
é a abstracção: foi assim que, vinda das grandes oposições míticas em
torno da que há entre o céu e a terra, se instituiu até aos dias de hoje a separação entre o
texto gnosiológico - filosofia, lógica, ciências
- dizendo respeito a um saber
intemporal, sem lugar e tempo,
descontextualizado, por um
lado, e por outro os textos discursivos
e narrativos das receitas, mitos, epopeias e tragédias, da
literatura sobre o concreto, o chamado
quotidiano, acidentes e acontecimentos, a vida das casas e os seus ciclos sempre a recomeçarem entre nascimento e
morte[5].
2.
A intervenção da definição e do texto gnosiológico no quadro da oposição de
inspiração mítica que Platão recebeu de Parménides entre o ser e o não-ser teve
como efeito recortar no céu os Eidê e cá em baixo os
entes que os reproduzem por mimêsis, desenhando a
primeira figura da ontoteologia segundo Heidegger: esta ruptura entre o eterno inteligível e o temporal sensível submetido à geração e à corrupção permitiu retomar a oposição pitagórica entre a alma e o corpo. A verdade de cada
ente daqui está num Eidos celeste eterno
que o gera e que ele reproduz melhor ou pior, independentemente dos seus progenitores (também cópias do mesmo Eidos). Este gesto
de Sócrates-Platão manifesta-se na sua
radicalidade parmenidiana segundo
uma tripla dimensão: a) “eu sei que não sei nada”, que diz
a ruptura com o saber tradicional permitindo a erecção dum saber
totalmente novo (de definições de essências e de argumentação sobre elas), gesto moderno por excelência, constitutivo da filosofia, ruptura inclusiva com os filósofos da phusis precedentes;
b) aliança da filosofia com a geometria pitagórica e a astronomia,
a qual c) se manifesta
na separação (parmenidiana) entre o
eidos
eterno (a que a alma se reporta, inteligível ou ‘divina’) e os entes que ele
gera: sensíveis, gerados e corruptíveis, temporais; separação portanto
entre os eidê e a phusis e os seus ciclos. Foi o próprio Aristóteles quem estabeleceu a relação entre b) e
c): “O matemático [...] separa [as figuras que ele estuda dos
corpos naturais de que elas são os limites] porque pelo pensamento elas são
separáveis do movimento, sem
fazer diferença e sem que resulte algum erro dessa separação. Sem darem por isso, os partidários
das Ideias fazem o mesmo:
separam os entes naturais que são menos separáveis do que os entes matemáticos”
(Física,
II, 2, 193b32-194a2, seg. trad. Stevens).
3.
A crítica que Aristóteles opera do seu mestre inverte as três componentes desse
gesto: a) ele começa as suas demonstrações
pelo inquérito crítico dos seus predecessores filósofos, incluindo Platão (Física I e Metafísica A),
assinalando as suas aporias para as
resolver[6]; b) ao
retomar a consideração da phusis, as ciências com as quais se aliará de preferência são
as que dizem respeito aos animais e às plantas, o que nós chamamos ‘biologia’
(um terço das suas obras são lhes consagradas, dizem os especialistas); c) o
lado mais espec-tacular desta crítica é sem dúvida a maneira como ele
regressa às coisas, isto é traz de novo o eidos ao ente (com o
argumento de que eles não poderiam estar separados, nem um gerar o outro,
porque a ideia só gera ideias e os vivos só geram outros vivos da mesma
espécie), a maneira como anula a separação parmenidiana, contestando a imortalidade da
alma e fazendo dela a ‘forma’ do corpo (guardando portanto a diferença inteligível / sensível). Tratar-se-á aqui deste
retorno às coisas de Aristóteles, elaborado nomeadamente na sua Física.
A ousia:
compreender o movimento dos vivos
4.
Submetida ao devir sem dúvida alguma, a phusis tem nela todavia
ciclos temporais, quer dizer que ela muda segundo repetições, razão pela qual
Aristóteles poderá encontrar um saber a respeito desse movimento, de que
distingue quatro tipos: por um lado as gerações e as corrupções, por outro as
mudanças, a saber, alteração
das qualidades, crescimento ou diminuição da quantidade, deslocamento segundo o
lugar. O motivo da ousia está no centro deste estudo sobre o devir
físico: para que haja movimento, a ousia tem que estar
sujeita a três princípios, número que, no primeiro livro da Física, ele deduz
justamente do inquérito sobre as respostas dadas pelo seus predecessores a esta questão (como sublinha a introdução notável de L.
Couloubaritsis). De passagem, ele argumenta que “o
ente diz-se
de várias maneiras” (I, 185a22)[7],
isto é que a palavra ‘ente/ser’ é polissémica: cada ente que muda pode ser
dito / pensado segundo dimensões várias, que não devem no entanto serem
pensadas como partes físicas constitutivas[8]
(à maneira dos quatro elementos, fogo, ar, água, terra). Porque, neste ponto,
as categorias de Aristóteles permanecem, tanto quanto as de Platão, fieis,
cito Derrida, à “configuração de noein, legein e einai [pensar,
dizer e ser] e desta estranha mesmidade de noein e de einai de que fala o
poema de Parménides”[9]:
o que se poderia chamar o dizer-(que)-pensa-o-ser[10].
5.
Para que servem estes três princípios (archai)? São necessários para
dizer e pensar o movimento ou mudança de tal ente, na sua
irredutibilidade de ente, digamos. Expô-los-emos através dois exemplos: o ovo
de que nasce um pintaínho, o bronze de que se faz uma estátua. É preciso, por
um lado, 1) um “sub-jeito” ou “sub-estrato” (hupokeimenon) que seja
garante da unidade e da individualidade do ente antes e depois duma mudança[11];
do ponto de vista deste princípio, a ousia é dita hulê (‘bosque’,
literalmente, ‘madeira de construção’; ‘matéria’ em latim e em português): o
bronze antes e depois da escultura, o que deste ovo permanece neste pintaínho
(outros ovos darão outros pintaínhos). Por outro lado, a mudança implica dois
contrários: 2) um que dá um eidos segundo o logos, uma
‘especificidade’ que permitirá nomear, ou mesmo definir o ente (o pintaínho e
a estátua tais como se ‘vêem’[12]),
3) o outro que era a sua ausência ou privação (sterêsis) antes da
mudança (o ‘não-pintaínho’ no ovo, a informidade do bronze). O que permite
talvez compreender o imperfeito da literalidade duma expressão aristotélica
traduzida “quidditas” pelos Medievais, to ti ên einai, ‘algo [que]
era (vinha) [ao] ser’[13]:
equivalente a eidos (e à diferença de morphê), esta expressão
diria o próprio movimento desse ente, a sua “vinda à presença”, na língua de
Heidegger. Sterêsis diria portanto a ousia ‘antes’ do
movimento, o ir-se embora do (outro) eidos cessante, enquanto
que eidos
diria o novo rosto da ousia - o que é ‘visto’ do ente e permite nomeá-lo,
o que lhe é específico, por definição da sua espécie (galos
e galinhas, estátuas) - que conseguiu o movimento, a mudança, e que
subsistirá estavelmente enquanto morphê, esta dizendo tal
ente, individualizado nos seus acidentes (este pintaínho, esta estátua).
6.
Estes dois tipos de exemplos são distinguidos nitidamente no início do livro II
(192b8-23): os entes que o são “por natureza”, cujo movimento se faz por
“eles-mesmos” (kath’auto) - são os animais e as plantas, as suas
partes e os quatro elementos - e todos os outros, nomeadamente os objectos
técnicos, cuja mudança é devida a outros, sucede-lhes “por acidente” (kata
sumbebêkos).
Esta distinção é capital, porque a phusis define-se justamente
por ter o movimento e o repouso por si mesma, ser o princípio dela e a ‘causa’
(aition),
que se traduzirá talvez melhor por ‘motivo’[14].
Desenvolvido neste livro II, ‘motivo’ é dito também em sentidos diferentes, e
nomeadamente segundo os princípios deslindados anteriormente: em vez de quatro
motivos, o motivo em quatro sentidos[15].
O primeiro, o “a partir donde” (donde o ente vem), no qual ele é gerado
principialmente (o bronze donde a estátua), é dito motivo segundo a hulê; o segundo é
dito segundo a especificidade, eidos, o logos (a definição)
do ‘algo [que] vinha [ao] ser’; a terceira maneira de dizer o motivo, que
reenvia ao “primeiro princípio da mudança ou do repouso” (aquele que tomou uma
decisão ou o pai duma criança)[16]
e que merece ser dito ‘causa’, é kinoun (o movente ou
motor); enfim, o motivo em-vista-do-qual, segundo o telos (a meta, o
fim, o cabo), como um passeio em vista da saúde. É nas coisas produzidas pela
arte (technê) dos humanos que é mais fácil discernir estes quatro
sentidos (respectivamente: o bronze informe, uma imagem a esculpir, a arte do
escultor, a estátua a ser colocada em tal lugar para ser admirada), enquanto
que para os vivos os motivos eidos e telos parecem coincidir mais
ou menos. Por outro lado, a
‘causa’ ou motor introduz uma exterioridade problemática na concepção do
movimento dos vivos, definido como imanente ou por phusis.
7.
Para compreender como se faz a passagem dum eidos que desaparece a um
outro no mesmo ente, Aristóteles tem que acrescentar a esta quádrupla doação
um outro par de motivos: dunamis[17], o ente
enquanto podendo tornar-se tal, capaz de mudar para tal, e entelecheia, o vir ao cabo
(telos)
dessa possibilidade, a qual entelecheia é dita três vezes ser o movimento
(III. 201a10-11, 27-29, 201b4-5)[18].
Logo de seguida (201b5-15), o exemplo do acto de construção duma casa é dito energeia (em-obra,
efectuado), matiz de sentido em relação a entelecheia, que eu seria
tentado a aproximar da que haverá entre eidos e morphê (§ 5)[19].
Ora, no princípio do mesmo parágrafo, diz-se que “ser movido acontece a”, o
verbo ‘acontecer’ (sumbainei) sendo a raiz de “acidente” (sumbebêkos)[20]:
há acidentes, porque há movimento imprevisível, portanto todos os entes
sublunares os têm, mas os que existem pela arte dos humanos são inteiramente
por acidente, ao invés dos entes por phusis (§ 6), aos quais o
movimento é imanente, kath’auto. Está aqui o que toca no essencial da
física aristotélica: ela busca compreender o movimento dos vivos e é isso que
a inércia de Galileu e de Newton excluirá, por sua vez por razões essenciais
à física deles[21].
A ousia e o tempo
8.
Que a ousia se diga em vários sentidos, implica que este pensador que
tanto se serviu da definição inventada por Sócrates o tenha feito todavia de
maneira muito matizada (em relação aos seus herdeiros ocidentais), aqui mais
pela circunscrição da polissemia do que pela sua exclusão (§ 1): ele deu de ousia uma espécie
de definição em constelação polissémica, segundo as diversas maneiras em que
ela se aproxima de tal ou tal outro motivo, sem ter sentido necessidade de
multiplicar os termos para estas distinções[22].
Isso é notável no livro das Categorias. Estas obrigaram-no a
marcar bem a distinção entre dois dos sentidos de ousia, tendo ele
todavia guardado a mesma palavra: a astúcia consistiu em, por um lado, adjectivar
a ousia
no sentido do ente individual, a ousia como hulê-morphê, digamos
(“este homem ou este cavalo”), como prôtôs (primeiro) e, por
outro lado, adjectivar como deuterai (segundas) as
espécies (eidê) e os géneros (genei) “nos quais as ousiai tomadas no
sentido primeiro estão contidas” (5, 2a10-16, seg. trad. Tricot). O género e a
espécie (ou diferença específica) sendo as duas componentes da definição do eidos, esta ousia segunda
corresponde claramente ao que os latinos traduziram por ‘essência’, enquanto
que a primeira corresponde à latina ‘substância’[23].
Que Aristóteles tenha guardado o mesmo nome[24],
é um índice da sua fidelidade à mesmidade parmenidiana do dizer-(que)-pensa-o-ser
(§ 4).
9.
Que esta tradução em dois nomes se tenha imposto no mundo latino não deixou de
ter consequências na compreensão do lugar do tempo no pensamento do Estagirita.
Duplamente. Por um lado, o tempo diz respeito ao devir, ao movimento, de que
ele é o número[25]:
a ousia,
ao mesmo tempo substância e essência, implica portanto o tempo por ela mesma,
essencialmente, é caso para dizer, visto que ela é pensamento da geração -
da vinda de cada ente à presença, ou seja ao tempo presente aonde ela durará
até à sua corrupção, ao seu desaparecimento - e também pensamento da mudança,
alteração, crescimento e diminuição, deslocamento, tudo motivos essencialmente
temporais. Ora, foi justamente a temporalidade que impediu Platão de a pensar,
fazendo dela um Eidos eterno, uma essência fora-do-tempo, que a
definição e o texto gnosiológico tinham arrancado ao seu contexto empírico. Por
outro lado, é no acidente - categoria particular dum sujeito, que ele tem mas
poderia não ter[26],
que, como o seu próprio nome indica claramente, é um atributo estável de tal
ente que lhe provém de algo que lhe ‘sucedeu’ - que será marcada a condição
temporal da ousia-substância a que ele aconteceu. Ora, estes
acidentes, sempre singulares, que as narrativas e os discursos contam, são
subtraídos por eles mesmos ao conhecimento filosófico ou científico, segundo
os princípios ou os motivos: é que eles relevam do contexto que a definição
largou. O motivo do acidente é assim a ‘junta’ possível, instituída por
Aristóteles, do texto gnosiológico às narrativas e aos discursos: se os
acidentes são acidentais, não há todavia ousiai sublunares sem
acidentes, a acidentalidade é essencial à ousia. Há pois em
Aristóteles retorno às coisas, mas tais como elas foram definidas, sem
retorno ao contexto a que a definição as arranca. Mas este retorno apagar-se-á
em parte na tradição latina, onde, quer como substância, oposta a acidentes,
quer como essência, a ousia se tornará intemporal , cúmplice do
eidos
de Platão.
Física: filosofia-com-ciências
10.
As ‘ciências’ (no sentido grego) são os discursos que tentam conhecer as
espécies diferentes dum mesmo domínio ou género (animal, por exemplo) e a
‘filosofia’ o discurso que tenta encontrar a unidade possível desses
discursos, portanto acima deles, acima dos diferentes géneros. Qual é então o
estatuto do discurso do físico Aristóteles, em relação aos seus outros textos,
uns científicos e outros filosóficos ou metafísicos? O que é que é para ele
uma ‘ciência’? Comecemos pelo seu tratado As Partes dos Animais. O seu
primeiro livro, usando as palavras theôria, methodos e epistêmê
tou pragmatos
(saber da coisa) para dizer o que se propõe fazer, põe a questão de saber se se
deve atacar cada espécie de animais (humano, cavalo, boi) isoladamente ou
reunir primeiramente uma exposição dos traços que lhes são comuns; fazendo
desta maneira, evitar-se-á repetir as mesmas coisas a respeito do sono, da
respiração, do crescimento e diminuição, a morte, etc. (I, 1, 639a1-30).
Tratar-se-á portanto primeiramente - é o próprio gesto de qualquer pensamento,
filosófico ou científico - duma economia de razão permitindo compreender com
grande poupança a imensa variedade dos vivos e das coisas. Como proceder?
Perto do final do mesmo capítulo: “é portanto preciso em primeiro lugar, determinar
por análise, a respeito de cada género[27],
os caracteres que são apresentados essencialmente por todos os animais, e de
seguida tentar descobrir os seus motivos” (I, 5, 645b1-3, trad. seg. Le Blond).
Esses motivos serão sobretudo aqueles em função dos quais existe tal ou tal
órgão, e sua respectiva “acção”[28],
sendo que este “motivo final”, nos vivos, coincide com o do eidos ou da definição
da espécie. Ora bem, o início do capítulo seguinte diz que a tarefa de
descrição das partes dos animais[29]
foi assegurada pelo seu outro tratado A História dos Animais (nove livros
grandes, mais um apócrifo)[30],
enquanto que “agora se trata de examinar de que motivos cada parte tem tal carácter
próprio, tomando cada uma das partes descritas na História de cada vez”
(II, 1, 646a8-12). Ora, como o livro I assenta de forma muito clara, é este
exame segundo os motivos que faz intervir as categorias elaboradas na Física, prolongando
o estudo, digamos empírico, da História, que
consistia na descrição e numa primeira classificação do que se poderia chamar
anatomia comparada: é esta que tem que encontrar agora a sua razão
‘científica’, de que na História carecia. Vimos que o movimento se fazia
segundo a ousia ou segundo a qualidade, quantidade e o lugar (§ 4); o
primeiro ocupa um nível especial: um outro tratado ocupa-se, na sequência das
Partes dos Animais, das partes que dizem respeito a este movimento segundo
a ousia,
isto é, à reprodução sexual (A Geração dos Animais). Além destes dois
tratados, também faz parte do corpus zoológico um dos mais célebres textos de
Aristóteles, que se ocupa Da Alma - que trata do “princípio dos animais”
(A, 1, 402a6-7), que “tem o princípio do movimento” (Metafísica, Q, 2,
1046b17), que é “sempre o movimento de fugir ou de perseguir algo” (Da alma, G, 9,
432b28-9)[31],
com três funções principais: nutritiva (nutrição e geração), comum às plantas
e animais, sensitiva, de todos animais, e intelectiva, apenas dos humanos[32]
-, assim como outros textos mais pequenos sobre a locomoção, o sono e os sonhos,
a memória, a respiração.
11.
Um terço da sua obra releva deste corpus zoológico, como se disse, mas há mais
coisas com matéria ‘científica’ nos textos do Estagirita. “Filosofia segunda”
(Metafísica, E, 1), depois da teologia ou filosofia primeira, a Física, diz P.
Aubenque, é “a introdução teórica a um vasto programa de investigações cosmológicas,
meteorológicas e biológicas” (1974, vol. 2, 399c). O tratado de astronomia Do
Céu
ocupa-se nos seus dois primeiros livros do movimento circular perfeito dos
corpos celestes e das suas esferas[33],
do kosmos
inengendrado e incorruptível (portanto não ‘natural’) e do mundo sublunar
ou natural nos outros dois. É isso que Da Geração e da Corrupção retoma,
tratando de maneira geral (à maneira ‘filosófica’ que é a da Física) a questão,
em termos heideggerianos, da “vinda à presença” e a do perecer das coisas sublunares,
como se se tratasse da continuação da Física, ao mesmo tempo que
sublinha o privilégio do movimento segundo a ousia em relação aos outros
já tratados (Física, V, 1)[34].
Um terceiro tratado, Meteorológicas, estuda os fenómenos
físicos do mundo sublunar ou entre-os-dois que são mais desordenados e que
parecem não ter finalidade: chuvas, ventos, nevoeiro, neve, sismos, Via
Láctea, cometas.
12.
Por outro lado, pode por-se a questão do estatuto dos motivos da Física noutros
domínios, como o da Poética, estudo da tragédia, já que o seu capítulo
central desdobra a “definição da ousia” da tragédia em
quatro segmentos que, adjectivando a reprodução (mimêsis), correspondem
implicitamente[35]
aos quatro sentidos de aition (Poética, 6, 1449b22-28): respectivamente
o do eidos
(o muthos),
da hulê
(a lexis),
do motor causal (a cena) e o da finalidade (a katharsis). Também se
pode verificar que a ousia, nos seus diversos sentidos e motivos,
trabalha os textos aristotélicos em ética, retórica e política, a respeito
das virtudes, das paixões, da praxis humanas, das unidades
sociais - naturais! - que são a casa (oichos), a aldeia (kômê) e a cidade (polis).
13.
O estatuto da Física seria portanto, com excepção de dunamis / energeia[36], o da elaboração
dos motivos gerais das diversas ‘ciências’ (no sentido grego), motivos que
organizam filosoficamente os seus textos; porque é na Física que são
elaborados os grandes motivos do pensamento filosófico de Aristóteles e mais
tarde da Europa[37]. Juntamente
com a matemática e com a filosofia primeira ou teologia, trata-se duma
“ciência teorética que se ocupa do ente que se pode mover, e da ousia [...] não separável”,
precisa ele (Metafísica, E, 1, 1025b26-27), ciência teorética essa
que tem como finalidade tornar possíveis as outras diversas ciências, oferecendo-lhes
as categorias ou motivos.
14.
‘Metafísica’ significa “obra que se deve ler depois da Física”[38]:
com efeito, são os motivos que foram tratados nesta que dão os critérios dos
debates mais claramente filosóficos destes 14 textos: eles retomam os grandes
motivos ou categorias da Física para considerar já não o ente
enquanto phusis, tendo em si o princípio do movimento e do
repouso, mas o ente enquanto ente; Aristóteles discute então ‘filosoficamente’
os motivos da ousia (G, D, Z), dunamis / energeia (Q, D), dos
motivos (A), etc. É assim que ele presta contas da sua crítica de Platão (A, M,
N) por ter separado o ente e o seu eidos (ou ousia). Talvez se
possa acrescentar que as discussões dos especialistas relevam também da
maneira como eles próprios lêem a Física; se eles opõem, por exemplo, os dois
sentidos de ousia (substância e essência), terão tendência a
encontrar contradições entre os livros Z e M, a crer que a essência é um
‘conceito’ ou uma ‘abstracção’ como ‘um’, ‘ser’, ‘género’, oposto ao
individual. Depende-se assim da história posterior, que muitas vezes os
especialistas projectam sobre o texto de Aristóteles[39].
Ora, uma das razões mais fortes que este teve para escrever estes textos de
filosofia (considerando a ousia e os motivos gerais de ‘ser’, ‘um’,
‘género’, etc., como se pudesse separá-los dos entes sensíveis, à maneira das
matemáticas) foi justamente a necessidade de esclarecer a sua ruptura com
Platão: se se lê a Metafísica sem a Física (antes dela), é fácil encontrar os
dois grandes filósofos confundidos em diversos lugares. Está aqui a minha
pretensão, sem entrar num debate imenso para o qual me falta competência, que a
Física está tanto no coração teórico das diversas ciências como o está no
da ontologia ou metafísica: não se pode separá-las, não há uma fronteira
nítida entre umas e a outra. Investigação dos princípios a respeito do ente enquanto
tendo em si o princípio do movimento e do repouso, a Física é
filosofia-com-ciências: ela é excedida, é claro, pela investigação metafísica
dos princípios a respeito do ente enquanto ente, mas sem fronteiras nítidas
entre ambas.
Aristóteles não é aristotélico
15.
A Europa recebeu a filosofia grega através da teologia cristã, a qual se
instituiu como texto gnosiológico na viragem do II para o III século, com o
trabalho dos alexandrinos platónicos Clemente e sobretudo Orígenes e, dois
séculos mais tarde, na zona latina do império romano, de Agostinho de Hipona.
No século XIII, Alberto Magno e sobretudo Tomás de Aquino reelaboraram teologicamente
o que, por via árabe, receberam da obra aristotélica. Pode-se perceber aí como
a Física sai da primeira linha e ganha o estatuto de retraída ou retirada de
que fala a exergue de Heidegger, como se tornará o livro de fundo da filosofia
ocidental sem que se dê por tal. Contra o neoplatonismo dominante na teologia
augustiniana, Aquino opera, à maneira daquele a que chama O Filósofo, um
retorno ao terrestre e ao temporal (§ 3 (c)), às questões da autonomia
intelectual e moral que serão muito fecundas na futura Europa[40].
A phusis
e a sua causalidade (as chamadas ‘causas segundas’, em contraste com a que diz
respeito à relação divina de criação) recuperam um papel na argumentação que a
teologia cristã até aí desconsiderara. Segundo Gilson, esta causalidade
criadora será pensada como a outorga do ‘acto’[41]
da existência (esse) às essências das várias espécies, que se
colocam agora do lado da ‘potência’[42],
a um outro nível metafísico (digamos ‘vertical’), e não físico (o das tais
causas segundas, ‘horizontais’). Pode-se discernir na leitura de Gilson[43]
- “a essência é o que a definição diz que a substância é” (p. 45, eu
subl.) - que os dois sentidos de ousia, traduzidos por duas
palavras diferentes, são além disso partilhadas entre o discurso e o ser:
parece que, aonde Aristóteles pensava como físico a questão do movimento do
ente pela palavra-categoria ousia (tanto a ‘substância’ como a
‘essência’ o eram), terá sido esta partilha - entre o dizer-(que)-pensa e o ser
- que introduz um problema metafísico[44]
ligado ao motivo monoteista da criação[45].
Esta fenda entre os dois sentidos da ousia grega, a substância
e a essência ‘horizontais’, contribui, digamos, para singularisar o ente existente por criação
divina, e, poder-se-á dizer, promove a ‘material’ substância e os seus acidentes
(com o benefício da palavra do livro 1 do Génesis: “Deus criou [...]
isso era bom”): esta existência tornar-se-á o ‘singular’ dos nominalistas, só
eles existindo (“não há senão singulares”, dirão eles), que farão assim um
‘retorno às coisas’, de que se reclamarão mais tarde os Empiristas.
16.
Por outro lado, Occam alargou a fenda aberta, vindo a negar as “essências in
re” - separa portanto os dois sentidos da ousia das Categorias: o movimento
desaparece definitivamente - e reenviando-as à alma dos conhecedores como
“nomes mentais” (donde a designação de ‘nominalismo’), separação assim entre o
dizer e o pensar[46],
entre os nomes das línguas (variáveis segundo os povos) e o ‘mental’, e aí é a
separação platónica que se instalará no futuro como a separação entre
sujeito e objecto[47].
O jogo entre Platão e Aristóteles tornar-se-á bem mais complexo, a mesmidade
do dizer-(que)-pensa-o-ser ficando rompida numa espécie de separação triangular:
1) ‘pensar’ como ‘nome mental’ no sujeito, 2) ‘ser’ como o objecto a conhecer,
3) ‘dizer’ que se tornará o instrumento sonoro (exterior)[48]
do pensamento (separado, interior); um tal triângulo será a matriz da representação
mental do século XVII, que, em vez do discurso, faz a ponte entre o objecto
(exterior) e o sujeito (interior), num primeiro tempo, pelo papel de Deus na
intimidade (augustiniana, depois luterana, depois cartesiana, leibniziana) do
sujeito, depois despedindo-o (Kant).
17.
Toda esta lenta história filosófica europeia desembocando na modernidade
fez-se a partir de Aristóteles, cujos textos dominaram as escolas
europeias até ao século XVIII, tendo ele sido o mestre-escola de todos os
grandes sábios europeus, e contra Aristóteles, já que todos esses
sábios o denunciarão. Uma parte importante do labor de pensamento de Heidegger
foi escavar sob a textualidade medieval e europeia (a sua tese de doutoramento
foi sobre um autor do século XIV) até conseguir arrancar Aristóteles ao
aristotelismo: restituir a física como prévia e essencial à compreensão da
metafísica. À minha tosca maneira, foi o que aqui tentei sugerir como
necessidade de o ler segundo a mesmidade parmenidiana do dizer-(que)-pensa-o-ser,
que a história posterior (platonicamente) separou. Não se trata de nostalgia,
nem de achar que esta separação teria sido ‘má’ para o pensamento, que o
aristotelismo ter-nos-ia sido prejudicial e que o Aristóteles ‘tal e qual’ é
que era bom. É claro que nunca houve nenhum Aristóteles ‘tal e qual’, apenas
textos dados à leitura, que a história dessas leituras foi o que foi, sem ela
não haveria modernidade: ser ‘contra’ ela, não creio que tenha muito sentido.
Mas se for certo que a modernidade nos faz ‘doer’ em certos pontos - dualismos,
determinismos, reducionismos e relativismos são sintomas da ‘doença’ moderna,
no que diz respeito à nossa compreensão das ciências actuais; foi essa
compreensão forte de pensador que moveu Heidegger, que não era ‘contra’ a
modernidade nem ‘contra’ as ciências -, faz parte das tarefas do pensamento
filosófico a de recuperar energias de pensamento que estavam recobertas e
que creio poderem ser fecundas no movimento iniciado por Prigogine e Stengers,
abrindo a possibilidade de reatar uma nova aliança entre filosofia e
ciências[49],
herdeira da que constituiu a Física de Aristóteles e que
durou cerca de vinte séculos, até Galileu, Newton e Lavoisier, de que Kant
sancionou o fim, abrindo criticamente o espaço de autonomia das ciências
europeias, o seu florescimento espantoso ao longo dos séculos XIX e XX.
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I
[1] 1968, p. 183
[2] As linguagens humanas,
por um lado articulam as suas palavras a partir de fonemas (articulação
fonemática ou literal), por outro articulam-nas em frases (articulação
sintáctica): esta dupla articulação é uma das grandes descobertas científicas
do século XX, devida a André Martinet, da escola de F. de Saussure. É a
articulação literal que é a razão de fundo das diferenças entre as línguas,
enquanto que no Ocidente apenas temos uma tradição de sintaxe, que é
aristotélica, que nos serve para traduzirmos textos, isto é para mudarmos da
articulação literal duma língua para a da outra.
[3] Marcando apenas o número
(que releva dos nomes, não dos verbos), a cópula em rigor não seria um
‘verbo’ para Aristóteles: com efeito, ele define o nome e o verbo pelo mesmo
traço (“voz composta significante de que nenhuma parte é por si só
significante”), com esta única diferença entre eles: o verbo “indica o tempo” (meta
chronou), não
o nome (aneu chronou)
(Poética,
20, 1457a10-16). Belo, 1994, §
S191.
[4] O que ajuda a compreender
a tese filosófica (Aristóteles e Kant) da impossibilidade dum conhecimento
científico ou filosófico das coisas singulares: destas só falam as
narrativas e os discursos quotidianos. Sobre esta tripla tipologia
benvenistiana, discursivo, narrativo e gnosiológico, ver Belo, 1991, §§
E151-E174.
[5] Que Platão, o primeiro
escritor da definição e do texto gnosiológico, tenha condenado a escrita no Fedro (ver Derrida, “La pharmacie de
Platon”, in La Dissémination, Seuil, 1972), diria que ele sabia de antemão que os seus
escritos
lhe escaparão como ‘intemporais’, mas diria também a sua rebelião, o seu
pro-testo
contra isso, testemunhando desde o início a favor da contingência do
lugar-momento
desta escrita que se arranca aos lugares-momentos.
[6] “Poder-se-á dizer que a
ciência aristotélica do ser enquanto ser não é senão o sistema geral da solução
das aporias” (Aubenque, 1962, p. 159).
[7] “Pollachôs legetai to
on”, contra
Parménides, que “considera que o ente se diz absolutamente (haplôs)” (186a25). Quatro tipos de
distinções de sentidos do ente são possíveis: por si e por acidente; ser
verdadeiro e não-ser falso; as categorias; ser em potência e em acto (ver Metafísica, E, 2, 1026a33-1026b2).
Notar-se-á que também há polissemia a respeito da categoria principal, a ousia, assim como o aition (“motivo”). Segundo Metafísica, Q, 10, 1051b24-25, ser
verdadeiro e não-ser falso diria respeito ao discurso (phasis) e não à proposição lógica (kataphasis): o motivo da alêtheia que Heidegger sublinhou só é
plausível segundo a mesmidade parmenidiana de que será questão já de
seguida.
[8] São distinções
filosóficas, como se verá.
[9] Derrida, “Le supplément
de copule. La philosophie devant la linguistique”, in Derrida, 1972, p. 218.
Em Platão: "pensamento (dianoia) e discurso (logos) são uma mesma coisa, salvo que o discurso
interior
que a alma tem em silêncio consigo mesma recebeu o nome
especial de pensamento" (Sophiste, 263e, seg. trad. Chambry); também
mesmidade entre o discurso e o que ele diz: “o discours,
desde que exista, é forçosamente um discurso sobre qualquer coisa; que ele seja sobre
nada, é impossível” (idem, 262e).
[10] Já que cada leitor de
Parménides só o pode ler segunda a sua própria filosofia (pós-socrática) e as suas
questões, proponho a seguinte hipótese a partir das minhas questões sobre
Platão e Aristóteles. O mundo sublunar, das coisas que são geradas e que
perecem, das paixões e das opiniões, mundo do não-ser, diz ele (da
acidentalidade em Aristóteles, dos númenos em Kant), não é susceptível de
pensamento em sentido forte. Dizer-pensar o ser, o inteligível, é
pensar o Um que dura sempre em tudo, o Mesmo eterno. Esta separação laicizaria, depois de Hesíodo
momeadamente, a separação mítica entre o Céu e a Terra, entre os deuses e os
humanos. A invenção da definição (em ordem ao ensino das
virtudes) por Sócrates permite a Platão (em ordem ao ensino dos guardas da
cidade) multiplicar as Ideias eternas (à maneira dos astros) como seres
inteligíveis, sem mistura entre elas, de que as coisas sensíveis são reproduções
imperfeitas. Mas face às escolas dos Sofistas que endoutrinavam os
jovens, os futuros cidadãos, de maneira ‘falsa’, esta posição permanecia
sem defesa, deixando-lhes livre todo o campo do não-ser, o Crátilo já tendo desconsiderado os
nomes para a conhecimento das coisas e o Ménon a aprendizagem. Foi assim a questão do
discurso verdadeiro
que conduziu ao parricídio de Parménides no Sofista: trata-se da descoberta de
como a alteridade
torna possível a mistura entre as Ideias e entre as coisas, na sequência
da discussão crítica das posições de Parménides (aonde figura um homónimo de Aristóteles
que assinalaria o papel das discussões com esse seu discípulo nesta evolução do
pensamento de Platão). É essa alteridade que abre o caminho da crítica
aristotélica, do pensamento da ousia e dos seus acidentes, caminho guiado,
segundo P. Aubenque, pela questão da busca duma ontologia compatível com o
discurso verdadeiro. Parménides teria portanto caucionado quer a separação, de que vai ser aqui evocado o
início oscilante entre as repetições de Platão e de Aristóteles, quer a mesmidade do dizer-(que)-pensa-o-ser,
esta tendo sido recoberta por aquela até Heidegger.
[11] A geração e o perecimento são
excepção aos outros movimentos: neles um ente, uma ousia, começa a ser (portanto outra,
a semente dum ser vivo, por exemplo, deixa de ser) ou deixa de ser (e outro
começará). O Da geração e da corrupção ocupa-se especialmente destes
movimentos dos sublunares.
[12] O verbo grego idein, ver, donde eidos, o rosto visto; lembro a bela
tradução
que J. Coelho da Rosa, antigo docente desta casa, propunha para eidos: ‘o ‘viso’.
[13] “O que era ser”, tradução
literal segundo Couloubaritsis e Stevens (p. 72, n. 2). Menos literal, a minha
proposta é mais heideggeriana. Segundo Aubenque, trata-se d’ “a essência
individual concreta” com “valor interrogativo pleno” (1962, p. 462)
[quem é Sócrates? um sábio feliz], em contraposição com a questão geral “ti
esti” (o que é?) da definição socrática [quem é Sócrates? um homem].
[14] “A ‘causa’ não é algo que
produz um efeito, mas aquilo cuja busca nos dirige para aquilo a partir do qual
um ser é dado,
[...] um princípio traduzido num ponto de vista” (J.-L. Poirier,
1990, p. 19, eu subl.). Tendo em conta as concepções modernas de ‘causa’, mais vale
guardar uma outra tradução para o grego ‘aition’ e para o
seu sentido de ‘doação de movimento’, geração ou alterações ou
outras mudanças das coisas vivas: entre as diversas palavras latinas dadas
pelos dicionários (causa, princípio, origem, razão, ocasião, motivo), o último - o que dá o
movimento, o motus
- parece-me o mais indicado, com a vantagem de poder servir para dizer quer o
movimento
dos entes quer o discurso da ‘razão’ (“ratio sive causa”)
que o pensa, a vantagem de dar a compreender que as categorias da Física de
Aristóteles, duma ou doutra maneira, dizem sempre respeito ao
movimento.
[15] “Num sentido (tropon) o aition é dito [...], doutra maneira
[...], além disso [...], além disso [...]” (II, 3, 194b23-32). A palavra grega
‘trope’ (também em Z, 3, 1029a2, para a ousia) diz justamente o sentido ou direcção
dum movimento
(dos astros, dos negócios, das palavras ou frases, dos ventos, das modas,
etc).
[16] E não a mãe! A razão parece
estar na ignorância dos mecanismos da concepção. Uma vez que não se
trata de geração espontânea, é preciso um motivo segundo a hulê, que Aristóteles (e
provavelmente os homens do seu tempo) encontra na analogia (mesmo nome na
língua) do esperma macho dos animais com a semente (sperma) donde saem as plantas: ele
julga que é esta semente masculina sozinha na ‘terra’ feminina que é a origem
dos bébés.
[17] Da família semântica de dunaton, possível: o que se pode, o
poder como ser capaz de, a força (dinâmica) de poder-devir-outro (tradução latina
por ‘potência’).
[18] As duas primeiras vezes, hê
tou dunamei ontos entelecheia
[...] kinêsis estin (a
entelecheia do ente enquanto capacidade de [...] é o movimento); na terceira
vez, é a “entelecheia
do que se pode enquanto se pode” que “é o movimento”.
[19] Entelecheia (à maneira de eidos) estaria do lado do movimento,
da sua ‘finalidade’, enquanto que energeia (à maneira de morphê) estaria mais do lado do ente
enquanto obra (artesanal) que resultou dele. A tradução latina por ‘acto’
ignorou esta diferença.
[20] De bainô, colocar os pés, andar: com sun- diz literalmente pés que se
juntam, pés que se encontram diante de outros pés, um encontro casual de dois
humanos, de que algo possa acontecer, um acordo por exemplo, ou então uma
desgraça,
acontecer-com; sun-
com o perfeito bebêka indica o que sucedeu a mais do que um
em conjunto, o que nós dizemos aleatoriamente, acidentalmente.
[21] Daí o mal-entendido da
refutação de Aristóteles pela nova ciência europeia, que se manifesta
nomeadamente na manutenção do nome de ‘física’ para uma ciência completamente
diferente, como se pode observar pelo uso, legítimo, do mesmo nome na
disciplina médica de Fisiologia (os médicos eram tradicionalmente chamados
‘físicos’). O que é ‘movimento’ para Galileu e Newton é apenas um dos
casos do movimento que Aristóteles decifrou (§ 4), o de menor importância (é o
único que as plantas não têm). Só a Biologia molecular chegou à
compreensão científica, em termos modernos, do que interessou sobremaneira o
Estagirita e que elucidou com validade para vinte séculos.
[22] No entanto, ele diz que “não
significar uma coisa única, é não significar nada [...] porque não se pode
pensar se não se pensa uma só coisa” (Metafísica, IV, 1006b7-10). Mas justamente ele
tinha precisado
anteriormente,
como se pensasse na ousia
e no aition,
que “é indiferente que se atribuam vários sentidos à mesma palavra, se forem em
número limitado, pois que a cada definição poderia ser assignado um nome diferente”
(1006a30-b2, seg. trad. Tricot, cit. por Derrida, “La mythologie blanche. La
métaphore dans le texte philosophique”, in Derrida, 1972, pp. 295-6).
[23] No grego corrente, ousia eram as terras, os rebanhos, a
residência, o que numa casa era transmitido em herança, de geração em geração:
era portanto
o que permanecia o ‘mesmo’ da casa, enquanto as gerações mudavam. Foi sem
dúvida por isso que Aristóteles a tecnicizou para dizer a ‘substância’ (o que
permanece o mesmo dum animal ou dum humano no decurso das suas vidas) ou a
essência (o que tem em comum com os da sua espécie, que são assim definidos,
tal como ele).
[24] É o que se perde na tradução, é
por isso que prefiro guardar ousia, assim como também logos, termos que não se podem traduzir sem
perca grave. Couloubaritsis e Stevens - “o termo ousia sendo polissémico e podendo
significar
ora a primeira
categoria de entes (ou a substância), ora a primeira categoria de predicados
(ou a essência) [...]” (1999, p. 70, n. 4) - traduziram par ‘étance’ (estância).
De forma bizarra, Aubenque traduz sempre por ‘essência’ (1962, p. 136, n. 2),
aonde justamente a sua tese essencial pareceria pedir, já que não
guardava ousia,
que em todo o caso não decidisse entre os dois sentidos latinos.
[25] Física, IV, 219b1. Antes de mais do
movimento dos astros celestes: “é de algo de contínuo, que o tempo é o número,
a saber do movimento circular” (Sobre a geração e a
corrupção, II,
337a24), isto é, os dias, os anos, as estações.
[26] “O que pode ser verdadeiramente
dito de qualquer coisa, mas não necessariamente nem habitualmente” (Metafísica, D, 30, 1025a14-15).
[27] Os géneros das animais são os
peixes, as aves, os cetáceos (todos ditos sanguíneos, e por nós vertebrados),
os crustáceos, insectos, cefalópodes (não-sanguíneos, invertebrados), depois
muitos outros que não são susceptíveis de “grandes géneros” (os
mamíferos não parecem formar um).
[28] Praxis: que tem a sua razão de ser
nos efeitos sobre si-mesmo, ao contrário da técnica ou arte, que
produz efeitos noutra coisa.
[29] Tecidos (sangue, carne, ossos,
etc.) e órgãos (cabeça, pescoço, tronco, 2 braços e 2 pernas, nos humanos,
depois a cabeça composta de crânio e face, esta com fronte, sobrancelhas,
olhos, etc.); de seguida as partes internas (cérebro, esófago, pulmão, estômago,
intestino, coração, etc.).
[30] « Quando se vê que o
segundo livro (das Homoia,
de Speusippe, sobrinho de Platão) e a História dos Animais de Aristóteles enumeram
frequentemente as mesmas classes, quase todas as mesmas espécies, não se pode
ingorar tudo o que estes exercícios dialécticos da Academia prepararam tanto em
matéria como em método à ciência aristotélica » (A. Diès) (cit. por E.
Chambry, introd. a Le Politique, GF, p. 157)
[31] É essencial aos animais, cuja
lei é a da alimentação, caçar presas e evitar ser caçado.
[32] “É por isso que pertence ao
físico tratar da alma”, I, 1, 403a27-28, seg. trad. Barbotin, mas noutro lado
diz “que ele não tem que tratar da alma toda; a alma não é toda natureza,
somente uma parte da alma” (Partes dos Animais, I, 1, 641b9-10, seg. trad. Le
Blond). Na História dos Animais, ele distinguia as espécies segundo “emitem sons”,
“são mudos”, “possuem voz; entre os últimos, uns têm linguagem articulada, os
outros não” (I, 1). Esta linguagem articulada (logos) dirá assim uma das diferenças
da espécie humana em relação às outras, mas neste contexto zoológico, há outras
diferenças; As Partes dos Animais contestam as dicotomias platónicas, dizendo que há que as
“determinar
por várias diferenças” (I, 5, 643b13-14), o que impediria as oposições exclusivas: “seja
impossível obter qualquer espécie individual por divisão do género em
dois, como alguns imaginam” (643b26-28, seg. seg. trad. Le Blond).
[33] A Terra sendo também esférica.
[34] Da mesma maneira que as partes
dos animais respeitantes à geração foram estudadas num tratado à
parte das outras Partes dos Animais.
[35] Cf. P. Ricœur, 1975, p. 55, que
cita O. B. Hardison. Ver Belo, 1994, §§ P89-S91 e respectiva nota 14.
[36] Mas tratando-se também de
motivos decisivos do movimento, eles são deles mesmos ‘físicos’, como tal
elaborados nos cinco primeiros capítulos do livro Q da Metafísica
(Heidegger, 1991).
[37] O que justifica a citação de
Heidegger posta em exergue.
[38] B. Dumoulin, p. 54.
[39] Por exemplo, a propósito da
definição
de 'universal' em De l'interpretatione, 7,17a39-40, A. de Libera, em La
querelle des universaux, De Platon à la fin du Moyen Age, 1996, Seuil, escreve:
"[...] um facto é claro: nenhum leitor sensato deveria, ao ler estas
linhas, retirar a impressão de que Aristóteles é aristotélico" (pp. 29-30); é ele que
sublinha, como se se tratasse duma incongruência.
[40] Na história da teologia cristã
parece relativamente fácil ler o jogo das oscilações entre posições
augustinianas (Lutero, por exemplo fundamental, calvinistas) e tomistas (o
catolicismo do concílio de Trento).
[44] É verdadeiramente notável que
tanto o dito capítulo de Gilson como o início do De ente et essentia de Tomás de Aquino introduzem
os motivos aristotélicos sem nenhuma referência ao movimento (que sucede ser
posto como um acidente pelo Aquino, em linha com a qualidade, citado por
Gilson, p. 47, n.), portanto de maneira puramente metafísica. Como se
Aristóteles fosse lido doravante com óculos platónicos, a sua ousia vindo a ser compreendida
à maneira dum eidos
intemporal.
[45] A questão da existência já fora
colocada, de outra maneira porventura, pelos filósofos árabes de Córdova e por
Maimonides (Gilson, 1947, pp. 55-57), portanto com tradução e criação.
[46] Separação tornada possível,
também ela, pela tradução latina do duplo sentido do logos aristotélico (segundo uma
oscilação polissémica semelhante à da ousia) por duas palavras, ratio (a razão, relevando do pensamento e
das matemáticas) e oratio
ou verbum (o
discurso, relevando da retórica e da gramática).
[47] ‘Mentalização’ da essência: os
futuros ‘conceito’, ‘ideia’, etc. da filosofia europeia clássica. A dificuldade
destas questões é elas passarem em grande parte pelos textos e pelas questões da
teologia medieval, cujos especialistas têm muitas vezes interesses teológicos
ou históricos: é raro que filósofos não-especialistas se refiram a estes
textos.
[49] Este texto é um extracto de Le
Jeu des Sciences avec Heidegger
et Derrida, início
do cap. 13, em procura desta “nova aliança”.
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