O que se procurou nessa leitura foi perceber como se desenvolveu o platonismo, apareceram as Formas ideais e a imortalidade da alma, dando atenção para se dar conta do carácter cronológico desse desenvolvimento, a certos aspectos da retórica de Platão (sonhos, sinais do deus, substituição de Sócrates por outro - Diotima, Parménides, Estrangeiro do Sofista, etc -)em que se assinala coisas que Platão acrescenta ao seu Mestre. Vem-se à descoberta, a partir do texto Parménides, de como o jovem Aristóteles chegado à Academia interferiu numa viragem do platonismo que lhe abrirá o caminho da sua Physica. Incrível!
Sócrates e Platão
A ruptura de Platão
Virtude e ciência, com fundo de erotismo
Os primeiros exercícios para o platonismo
A alma posta à prova pelo amor
O Sol filho do Bem
Que a alma é portanto imortal
A aporia da definição, operação de escrita
A viragem do platonismo
Sofrer a crítica de Parménides antes de o matar
O parteiro de almas
A ciência das coisas deste mundo
O retorno ao discurso e a descoberta da alteridade
Pensar a geração
A abertura do espaço para a Physica de Aristóteles
Platão e Sócrates
“[...] prestar uma atenção sistemática – o que
tanto quanto sabemos nunca foi feito – à permanência dum esquema platónico que
assigna a origem e o poder da palavra, precisamente do logos, à posição paterna. [...] o platonismo que
instala toda a metafísica ocidental na sua conceptualidade, não escapa à
generalidade deste constrangimento estrutural, ilustra-o mesmo com um brilho e
uma subtileza incomparáveis” (Derrida, “La pharmacie de Platon” in La Dissémination, p. 86).
“[…] este sentimento (pathos) que tu sentes, o espanto, pois a filosofia não tem absolutamente outra
origem” (Teeteto 155d)
Não se trata dum texto de especialista, mas dum ensaio de alguém que tendo
trabalhado em Filosofia da Linguagem e recorrido com alguma frequência a certos
textos de Platão, nomeadamente ao Crátilo e ao Sofista, teve a curiosidade
em final de vida de procurar saber como é que foram encontradas e compostas as
coisas do platonismo, as Formas ideais eternas e a alma imortal, como é que as
primeiras foram criticadas, que proximidade houve com Aristóteles, e por aí
fora, sem querer saber de estar ou não a forçar portas bem abertas. Foi por
ocasião dum ensaio de fenomenologia histórica sobre o cristianismo que a sua
proximidade com a carta de Paulo aos Gálatas precipitou a questão (de que a leitura posterior
de Romanos 1,4 beneficiou
esplendidamente). Talvez não seja de desprezar à partida uma curiosidade assim.
1. Tentou-se mostrar em Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida como a história do Ocidente releva de duas
linhagens de herança. Por um lado, a que define qualquer sociedade, entre pai e
filhos, pela phusis (natureza)
grega ou basar (carne)
hebraica: hereditariedade –
assegurada, sabemos hoje, graças a um mecanismo biológico, o programa genético
que implica nascimento e morte – e herança das casas que o pai, ao morrer, transmite, nessas sociedades ao seu filho
macho mais velho. Por outro lado, a transmissão de textos escritos entre mestre
e discípulo, por aprendizagem da leitura e da escrita por aqueles que abandonam
as suas casas para se devotarem, por ‘vocação’, como se diz, aos exercícios
espirituais e intelectuais da escola[1].
2. A escrita de Platão é um momento
privilegiado do lançar-se, da destinação (em termos heideggerianos) deste
movimento de tradição de textos na instituição escolar, que se revelou ter sido
decisivo para a civilização moderna. Este movimento desenvolveu-se na margem
das sociedades de casas (gregas, helenísticas, romanas, medievais, europeias).
Tratar-se-á de ler o pensamento de Platão como ensaio de pensar esta tradição
escolar através do único modelo de que ele dispunha, o da herança da filiação
das casas, modelo que aliás ele começa por recusar para o poder transformar e
assimilar.
Sócrates e Platão
3. Aristóteles caracteriza
assim o que Sócrates fez: “Sócrates, que se votou ao estudo das virtudes
éticas, foi o primeiro a procurar defini-las segundo o todo (horizesthai
katholou). [...] Enquanto que
Demócrito definiu o quente e o frio e os pitagóricos certas coisas
(oportunidade, justiça, casamento, que eles reduziam a números), Sócrates, pelo
contrário, procurava com razão to ti estin (literalmente, o
tal [que ele] é), já que ele tentava raciocinar por silogismos, cujo princípio
é o to ti estin; então, a habilidade dialéctica não era
suficiente para buscar os contrários, mesmo sem o to ti estin, nem se não há uma ciência dos contrários. Duas coisas se podem reconhecer
a Sócrates com justiça: a argumentação indutiva (t'
epaktikous logous) e a definição segundo o todo (to horizesthai katholou). Estas duas coisas têm efectivamente relação aos
princípios da ciência. Mas Sócrates não atribuía existência separada aos
‘segundo o todo’ e às definições (ta katholou ou
chôrista epoiei oude tous horismous). Os seus sucessores, pelo contrário, separaram-nos
e proclamaram ideas esses
entes, de maneira tal que tiveram que admitir, pelas mesmas razões, que havia ideas daquilo que se enuncia segundo o todo [...]” (Metafísica, XIII, 1078b18-34, ver também I, 987a9-988a18).
Esta citação oferece-nos um fio de leitura dos diálogos de Platão, discípulo de
Sócrates, permitindo seguir as rupturas com o seu mestre, morto em 399, mas
também compreender a fidelidade que ele lhe guarda.
4. Pode-se começar por propor, como
hipótese (minimalista) de leitura, que a maneira como Platão coloca o seu
mestre como ‘herói’ dos seus diálogos releva, em certo sentido, do fenómeno
antigo de pseudo-epigrafia (em princípio, um texto escrito por alguém duma
escola que o assina com o nome do seu fundador já falecido) que indica que ele
se pretende um seu herdeiro, que ele procura transmitir o pensamento que com
ele aprendeu: mesmo quando rompe em certos pontos, essas rupturas seriam
exigências de ‘fidelidade’. Mas ele assinala apesar de tudo essas rupturas,
deslocando Sócrates do seu papel de condutor do diálogo que devolve a
Parménides, a um estrangeiro de Eleia, ou a Diótima (um outro sintoma de
ruptura será proposto nos §§ 16 e 20). Acrescente-se uma outra hipótese que diz
respeito ao quadro dado aos diálogos. A maior parte deles, com efeito, são
diálogos entre Sócrates e um ou dois interlocutores, sem outras circunstâncias,
ou muito poucas. O que sublinha o contraste com o quadro de alguns – Protágoras,
Górgias, República e Banquete –
com assistência abundante, em casa dum rico anfitrião. Eles são aliás
relativamente contemporâneos uns dos outros. A minha hipótese parte de Chambry,
a propósito do Górgias e da
“violência dos seus ataques contra a retórica”: “Platão, escreve Chambry,
acabava de fundar a Academia. Renunciara desde então à politica activa para se
dedicar à filosofia. O Górgias foi o manifesto da nova escola. Tratava-se de atrair os jovens que a
retórica atraía sozinha” (p. 160). Juntemos a este ‘manifesto’ o Protágoras: à maneira polémica do Górgias de marcar o contraste entre a ‘démarche’
filosófica e a dos retóricos sofistas (uma visa o bem, a outra o prazer da
alma, em paralelo com a medicina e a cozinha para o bem e o prazer do corpo,
462d-465c), este novo dialogo, de maneira mais simpática mas igualmente
contrastada, apresenta a questão chave da nova instituição de ensino dos
jovens: pode-se, sim ou não, ensinar a virtude? O quadro destes quatro textos
diria assim a ruptura com o quadro e a maneira socrática de fazer politica (voltaremos
à questão a propósito da relaç~eo entre o I e o II livro da República): já não na agora, mas num espaço privado,
retirado, onde haverá todavia bastante público tomando parte nos diálogos do
mestre. Pois se a Academia deverá fazer concorrência a outros, como diz
Chambry, é porque ela é uma instituição de aprendizagem com fim politico: ela
deve ensinar jovens cidadãos que se tornarão homens políticos[2]. A questão socrática da aprendizagem da virtude
alargar-se-á em consequência: à geometria, por exemplo num texto da mesma
época, o Ménon. Mas este, como
o Crátilo e o Fedro, volta ao quadro antigo de um ou dois interlocutores,
como se se tratasse de textos de exercício de pensamento de certos pontos
particulares, seja em vista dos textos mais ambiciosos do ponto de vista da
composição da problemática – República e Banquete –, seja de retomar posteriormente as mesmas
questões com novos argumentos, ou mesmo de critica de respostas antes
asseguradas. Mas é também como se Platão redescobrisse a maneira socrática de
dialogar, devido à exigência do próprio exercício de pensar, como se, à maneira
do Teeteto, ele fosse levado a
tematizar a maiêutica.
5. A ponta da fidelidade de Platão ao
seu mestre seria a procurar no que Chambry diz a propósito do Hípias menor: “esta ideia fundamental do dialogo, que a
ciência e a virtude se confundem, Platão guardá-la-á toda a sua vida” (GF, p.
61), o objectivo socrático, “que se votou ao estudo das virtudes éticas”, dizia
Aristóteles, o seu discípulo não o renegou, nem mesmo quando a Academia o
orienta para as questões de geometria e de ontologia, digamos em terminologia
europeia. Pelo contrário, ver-se-á que são as questões de ética politica, as da
paideia, da educação dos
jovens, que o leva a alargar a problemática dos seus textos. Tudo se passa com
efeito como se os primeiros diálogos de Platão fossem ‘reportagens’ bastante
fieis da maneira de fazer de Sócrates, como se à noite, tendo voltado a casa, o
jovem discípulo estudioso escrevesse um memorando[3],
como sugere a Apologia, o Criton e o Fédon I[4]. Entre os primeiros textos ‘socráticos’ como se
lhes chama com razão, dois parecem relevar da maiêutica, o Primeiro
Alcibíades e o Cármides: vê-se o filósofo a conduzir o questionamento de maneira a que o jovem
interlocutor se desembarace das suas opiniões e confesse a sua ignorância, como
condição de poder em seguida procurar definir a virtude em questão (como mais
tarde com o escravo de Ménon), tornando-se depois discípulos de Sócrates
(enquanto que os dois interlocutores de Lísis são crianças ainda) pode-se pensar que o alvo da
definição da virtude era suscitar a atenção intelectual para ela, tornando-se
possível desenvolvê-la no discípulo quando este chega ele próprio a defini-la,
a sua alma tendo assim acordado para ela. Os outros textos, pelo contrário,
chamados anatrépicos (de anatropê, sublevação, destruição, ruína): diante adversários, por vezes sofistas,
sempre adultos demasiado seguros das suas opiniões para poderem desfazer-se
delas mesmo quando se confessam vencidos, o diálogo permanece na etapa preliminar,
a tentativa de destruição das opiniões recebidas, da doxa, saber espalhado na cidade[5];
estes diálogos seriam, para dizer como Aristóteles, exercícios “de argumentação
indutiva”, em que Sócrates “tentava raciocinar por silogismos”. Escritos
provavelmente antes da Academia, eles terão sido muito úteis nela do ponto de
vista pedagógico.
A ruptura de Platão
6. Platão tem 40 anos quando, em 388,
uma dúzia de anos após a morte de Sócrates, funda a Academia; entretanto viajou
muito – no Egipto e nas colónias gregas de África e Itália – e aprendeu noutras
fontes. A ruptura, que implicará outras, é antes de mais a do método, já que o
de Sócrates falhou: por um lado, é preciso muito tempo para educar jovens, não
bastam simples ‘rendez-vous’ mais ou menos ocasionais; por outro, põe-se a
questão da morte dos mestres, da continuidade da aprendizagem na geração
seguinte. Tendo sido discípulo, Platão está a tornar-se mestre. Trata-se da
questão da instituição da herança de Sócrates. Quando se sabe que a Academia, com um intervalo pelo meio, durou cerca de
dez séculos, quando se sabe também a importância crescente da escola no
Ocidente moderno, herdeira da Academia e do Liceu, percebe-se que não é uma
questão menor, nem meramente administrativa, mas a questão do futuro da
filosofia. Parece que ela constitui a trama da maior parte das problemáticas
dos textos platónicos; depois, Aristóteles tendo dado a volta às suas respostas
e desenvolvidos as suas questões de maneira a dar autonomia às diversas
problemáticas, dir-se-ia que a relação entre o que há que aprender e a
aprendizagem propriamente dita terá dissimulado a questão que esta representa,
tornada rotina talvez durante séculos, em todo o caso uma questão menor face à
nobreza das grandes questões do saber. Por exemplo, se a questão da
aprendizagem é a da historicidade do saber, da sua ‘imortalidade histórica’,
digamos, a questão da imortalidade da alma eclipsou-a. Em relação sem dúvida
com o eclipse da questão da escrita, pela qual Derrida fez a sua entrada
barulhenta em filosofia, na segunda metade dos anos 60.
7. A ruptura entre o antigo mestre e
o novo assinala-se em vários sítios do corpus textual relativo à época da
instituição da Academia, dois dentro deles sendo mais nítidos: a passagem do I
livro ao II da República, o
discurso de Diótima no Banquete (§ 19). Os dez livros da República, da mesma maneira que o Fédon e o Fedro segundo Colli
(mas sem que este o assinale), não foram escritos e publicados duma só vez. Com
efeito, desde que sejam procuradas, as marcas das rupturas são bem nítidas.
Entre I e II: por um lado, mudam os interlocutores[6],
por outro muda a problemática: passa-se da justiça enquanto virtude de cada um
(problemática típica dos diálogos socráticos, com a piedade, a coragem, a
sabedoria, a unidade das virtudes) à questão da cidade justa; e muda-se em consequência
de método: primeiro buscar a natureza da justiça nas cidades e em seguida nas
pessoas (II.369a)[7]. Estas
mudanças são assinalados pela comparação com a visão das letras que mudam de
escala, em que há que começar por ler as grandes antes das pequenas (368e). A
costura literária é a maneira como o novo interlocutor, Glauco, resume o
diálogo do livro I (II.368b-c), depois de Sócrates ter chamado “prelúdio” a esse
diálogo (354c). Ora, encontra-se um artifício literário equivalente nos inícios
do livro V e do livro VIII, num episódio em que o outro interlocutor, Adimanto
desta vez, interrompe Sócrates e o interroga sobre a comunidade das mulheres e
das crianças de que ele tinha falado bastante antes da interrupção (IV.449a-d),
episódio que é recordado no início do livro VIII, após o resumo dos livros
V-VII e da discussão que fora interrompida no final do livro IV
(VIII.543a-544b) [8].
8. Trata-se portanto na primeira
costura da passagem do questionamento socrático de ordem da ética, visando a
dimensão politica mas sem se ocupar dela directamente, a um questionamento
claramente politico, que se ocupa é certo também de ética e a visa em última
análise, mas propondo uma mudança da cidade que teria deixado Sócrates estupefacto.
Uma tal mudança parece ser o correlato da fundação da Academia. Tendo conhecido outras organizações sociais nas
suas viagens e podido compará-las, Platão, continuando a ser o discípulo de
Sócrates, mudou todavia de alvo: quer agora uma instituição capaz de mudar a
cidade, que seja capaz de a pensar, de criar um novo e revolucionário
paradigma, que talvez não exista senão no seu pensamento e dos seus discípulos[9].
Virtude e ciência, com fundo erótico
9. A Academia enquanto instituição de
ensino não deixa de ter aporia já que à questão da possibilidade do ensino da
virtude, Sócrates responde pela negativa. Para ser ensinada, ela tem que ser
definida: ele bem pode multiplicar as tentativas de argumentação em torno de
tal ou tal virtude, ou da sua unidade, sempre elas terminam pelo insucesso e
pelo adiamento do questionamento. Ou então por uma resposta ‘teológica’, como
na conclusão do Menon, segundo
a qual “é claro que é por um favor divino (theia moira) que a virtude vem aos que a possuem” (100b).
Ora, a instituição do ensino por Platão deve, sem dúvida nenhuma, poder
ultrapassar esta aporia socrática: será esse o alvo da sua ontologia das Formas
ideais, aonde leva a busca das definições, por um lado, mas também o
desvelamento do como do conhecimento (a aprendizagem sendo impotente) pela
reminiscência do que a alma soube outrora, quando pré-existia ao nascimento
corporal.
10, Sem que, tanto quanto eu saiba,
Platão tenha alguma vez assinalado, como Aristóteles o faz mais de uma vez, a
invenção da definição por Sócrates, esta (ou a sua busca) conduz sempre o seu
raciocínio, a sua demanda do epistêmê (saber, ciência); ora, que ele se aplique prioritariamente a definir
virtudes, sem que nenhuma outra disciplina, nem sequer a geometria, passe antes
delas, eis um índice muito claro do nó entre virtude e ciência em Platão, o que
virá confirmar o lugar singular e proeminente na República III da Forma ideal do Bem. Sócrates e Platão,
indissociáveis deste ponto de vista, são simultaneamente espirituais e
intelectuais, sem que se possa pôr nenhuma dessas buscas acima da outra, tão
separadas que elas são entre nós[10]. Mesmo se os textos onde transparece a critica do
platonismo (a partir do Parménides, como veremos) privilegiam o intelectual, deixando o espiritual na
penumbra.
11. Há todavia um outro aspecto em
que eles são surpreendentes em relação aos nossos costumes, tanto intelectuais
como espirituais: o quadro erótico dos debates pedagógicos, a respeito do amor
dos rapazes belos, é o ponto de partida das buscas, como o Banquete teoriza. Poder-se-ia dizer que esses debates são
o lugar do acordar dos desejos machos, ao começarem a tornar-se adultos, a
beleza masculina parecendo ter um lugar próximo do da beleza feminina entre
nós. São estes desejos – ‘sublimados’, digamos, no quadro do androceu – que
Sócrates quereria ajudar a re-sublimar para o Belo, o Bem, o Justo, a Coragem,
a Sabedoria, a Temperança. Mas ele não o saberia fazer com o seu saber, afirma
por vezes que ignora o como dessa caminhada: por um lado, haverá que os
definir, o Belo e as virtudes, para poder ensiná-los, mas por outro lado isso
não servira de nada se não for feito em diálogo de despertar, porque a virtude
deve nascer do jovem, é ele que deverá tornar-se virtuoso na sua alma. Se nos
dermos conta do exemplo da aprendizagem da geometria pelo escravo de Menon –
que compreenderá por si mesmo que o quadrado das quatro diagonais de quatro
quadrados iguais justapostos é o dobro da área de cada um deles, mas somente
após ter confessado a sua ignorância, após ter sido esvaziado das suas opiniões
espontâneas –, esta compreensão jorra dele a um dado momento, na sequência das
questões socráticas que lhe fornecem o saber necessário para chegar a essa
conclusão. O ponto, qualquer professor tem experiência disso, é que o mestre
nunca poderá estar seguro do que o seu discípulo aprenderá, compreenderá: frequentemente,
uns conseguem, outros não. Ora, se isso sucede em geometria, plano em que o
acordo posterior é fácil, bem mais difícil será no caso da virtude, aonde as
opiniões estão muitas vezes em desacordo (como Sócrates constata algures) e se
trata de suscitar a busca da virtude. Apesar do anacronismo, as nossas
sociedades sendo tão diferentes dessa Atenas de outrora[11], parece fácil compreender a enormidade da tarefa
de alguém que quer – de forma instituída, escolar – ensinar os jovens a tornarem-se ‘justos’, ou
mesmo ‘santos’, à base de argumentos de razão. Era no entanto o primeiro alvo da Academia de Platão, do discípulo de
Sócrates tornado mestre por sua vez.
12. O carácter desmedido da ambição
explica sem dúvida também o da solução: o corpo é colocado como o obstáculo
em que enlaçam todas as ‘vontades’ (envies) e todas as injustiças da cidade dos
humanos. Eis uma citação das
primeira redacção do Fédon,
escrita certamente muito antes da fundação da Academia, na mesma época que a Apologia[12]. “[...] para a aquisição da ciência [do saber], o corpo é um obstáculo, se
se o associa a esta busca [já que a visão e a audição não são exactos nem
seguros] [...] é raciocinando que a alma ganha, se alguma vez o ganha, algum
conhecimento das realidades [...] ele não raciocina nunca melhor do que quando
nada a perturba [...] mandando passear o corpo, ela rompe tanto quanto pode, todo
o comércio e todo o contacto com ele para tentar chegar ao real [...] há o
justo nele mesmo (ti dikaion auto) [...] o belo e o bom [...] já viste alguma coisa deste género com os teus
olhos? [...] a grandeza, a saúde, a força [...] abordar cada coisa, tanto quanto possível, só com
o pensamento, sem admitir na
sua reflexão nem a vista nem qualquer outro sentido [...] desembaraçado dos
seus olhos e orelhas e, se se pode dizer, do seu corpo inteiro porque ele perturba
a alma [...]” (Fédon I, 65
a-66 a); “[...] o corpo causa-nos mil dificuldades pela necessidade em
que estamos de o alimentar; que além disso, nos venham doenças, ficamos
entravados na nossa caça ao real. Ele enche-nos de amores, de desejos, de
medos, de quimeras de toda a espécie, de inumeráveis disparates [...] de
guerras, dissensões, batalhas, é só o corpo e os seus apetites que são a causa
deles; porque só se faz a guerra para ajuntar riquezas [...] sem lazer para consagrar
à filosofia [...] olhar só com a alma as próprias coisas [...] não teremos
[...] a sabedoria senão após a nossa morte [...]. Enquanto estivermos vivos, o
melhor meio, parece, para abordar o conhecimento, é não ter, enquanto possível,
nenhum comércio nem comunhão com o corpo, excepto em caso de necessidade
absoluta, não nos deixarmos contaminar com a sua natureza, e permanecer puros
dessas manchas, até que o deus nos livre delas. Quando formos purificados,
desembaraçando-nos da loucura do corpo, estaremos verosimilmente em contacto
com as coisas puras e conheceremos por nós mesmos tudo o que é sem mistura, e é
justamente nisso que consiste o verdadeiro; ao impuro, não é permitido atingir
o puro [...] libertar a alma, não é isso, segundo nós, a esse fim que os verdadeiros
filósofos, e só eles, aspiram ardente e constantemente[13], e não é justamente a esta libertação e a esta
separação da alma e do corpo que se exercem os filósofos? (66b-67e) [...] a
coragem, a temperança, a justiça, e em geral, a verdadeira virtude adquirem-se
com a sabedoria” (69b).
13. O espiritual junta-se ao
intelectual, a abstracção à santidade (grega). É a esta problemática
socrática que as Formas ideais e a alma imortal procuraram encontrar uma
solução, se se pode dizer, fornecer-lhe uma teoria susceptível de ser
transmitida na Academia, de geração em geração, de mestres em discípulos. E foi-o, de forma aporética é certo: no
helenismo primeiro, reformulado por Plotino e gerando a teologia cristã desde
Orígenes; mais tarde, após ter sido substituído por Aristóteles na teologia
tomista, foi a tradução dos textos de Platão em latim na segunda metade do
século XV, em plena assunção da Renascença, que tornou possível a critica clássica
do aristotelismo medieval. Ele abriu a modernidade (Lutero, Descartes, Galileu...),
somos seus longínquos herdeiros (como de Aristóteles também, é bem de ver).
Problemática socrática e teoria platónica, é esta continuidade que justifica a
pseudo-epigrafia dos textos de Platão, que ele tenha guardado o nome de
Sócrates como porta-voz de textos que modificavam a herança: ruptura dum discípulo
fiel.
Os primeiros exercícios para o platonismo
14. A descoberta desta teoria dos Eidê[14] eternos, das Formas ideias imutáveis, portanto
separadas, fez-se em pequenos passos nos textos que temos, os comentadores
costumem sublinhá-lo. O que importa ao propósito tido aqui, é estabelecer a
relação entre este motivo e a questão da demonstração da preexistência e
imortalidade da alma. Na longa citação feita há pouco, vê-se por um lado que
Sócrates busca o conhecimento das ‘coisas’ mais elevadas e desejáveis – o justo
nele mesmo, o belo e o bom, a grandeza, a saúde, a força – pelo raciocínio,
pelo pensamento só, sem ajuda dos sentidos corporais: é pois a definição que
procura apanhar o que não muda, além das coisas que mudam cá de baixo, que nós
vemos e tocamos. Por outro lado, a alma separa-se do corpo na morte deste e
junta-se aos deuses se for suficientemente pura, como Sócrates crê sê-lo, sem
que seja questão aí (Fédon I)
nem de ‘imortal’ nem de ‘imortalidade’. Enfim, a relação entre as duas, entre a
ciência e a virtude estabelece-se na afirmação – de grande espanto pelo seu
contraste com a tradição platónica cristã – que esse destino só diz respeito
aos “verdadeiros filósofos, só a eles” (ver § 61).
15. Talvez seja difícil de decidir
quando é que as palavras “o belo ele mesmo” (ou semelhantes) que Sócrates
distingue das “coisas belas” dizem já respeito às Formas ideais ou relevam
ainda apenas só da definição (por exemplo, Hippias maior, 289c-d, em que a palavra ‘eidos’ permite a hesitação). Há todavia uma passagem
perto do final do Crátilo que parece permitir decidir: “considera com efeito, admirável Crátilo,
um pensamento que me vem frequentemente como um sonho. Devemos dizer sem mais que existe o belo mesmo e
o bom (einai auton kalon kai agathon) assim como cada uma das coisas? Há que o dizer ou não?” (493d). O que
segue diz que este “belo mesmo é sempre como ele é” e nega o ser às coisas que
não estão sempre no mesmo estado. Parece que, no contexto da contestação dos
“seguidores de Heraclito” (440c) – de quem Crátilo é discípulo, como Platão o
foi de Crátilo na sua juventude –, este pensamento “vindo como um sonho”[15]
seja um pensamento parmenidiano[16],
que atribui o ‘ser’ ao belo mesmo e o ‘não ser’ às coisas terrestres, que mudam
constantemente, sujeitas à geração e à corrupção (como o corpo). Ora bem, o que
é que faz este diálogo? Discutindo se os nomes atribuídos às coisas são
justificados, digamos, são motivados por elas, como parece a um locutor
ingénuo, ou se pelo contrário, são frutos de convenções que mudam consoante os
diferentes povos, Sócrates, sem decidir entre as duas hipóteses, que têm
argumentos favoráveis mas também objecções graves, aproveita para dizer “que
devemos buscar, fora dos nomes, outras coisas para nos fazer ver, sem os nomes, qual é das duas classes
[nomes primitivos ou nomes compostos (433d)] a que contém os verdadeiros nomes,
isto é, que nos mostrará a verdade dos entes [...] é portanto possível, parece, Crátilo, aprender os entes sem a ajuda
dos nomes, se for realmente
assim” (438e). “Agora, de que maneira há que aprender (manthanein) ou descobrir (euriskein) os entes, é uma questão que talvez nos ultrapasse,
a mim e a ti. Basta-nos ter reconhecido que não é dos nomes que se tem que
partir, mas é deles próprios que devem ser aprendidos e buscados, mais do que
dos nomes” (439b). Ora, era isto que o diálogo procurava: afastar os nomes do
conhecimento[17] representa
um (primeiro) passo da definição (para além dos nomes), ela que é o único meio
para Sócrates de conhecer [estas essências] das coisas.
16. É pois no sentido deste fim que
devemos esperar no Menon o passo seguinte desta
caminhada para o platonismo. A primeira observação a fazer é que se trata de
retomar a questão que atravessou os primeiros diálogos socráticos: “O que é que
tu dizes que é a virtude?” (71d), retomada que parece justamente assinalar um
novo passo na escrita, no pensamento de Platão. Com efeito é a questão da
definição (sem o nome nem o verbo dela, todavia) que é posta “sobre as
virtudes: por numerosas e diversas que elas sejam, elas têm todas uma certa
forma [que é] a mesma (hen ge ti eidos tauton), que faz com que elas sejam virtudes. É nela que
convém fixar os olhos para responder à questão e mostrar em que é que consiste
a virtude” (72c). A estas ‘coisas’ que têm o mesmo nome[18]
corresponde um único eidos que
é preciso ‘olhar’ bem, “fixar os olhos” nele, para poder dar-lhe a definição. A
relação, que até aqui não encontrámos, entre a definição e o eidos parece estabelecida nesta passagem, o diálogo a
seguir precisando a diferença entre as múltiplas coisas que têm o mesmo nome e
a definição delas através do exemplo da “figura” (schêma) geométrica e voltando em seguida sobre a questão
da definição da virtude, que se esquiva sempre. Chega enfim à questão da
aprendizagem. O enigma que esta apresenta é posta pelos sofistas como uma
impossibilidade: ou já se sabe, ou nem sequer se sabe que se ignora, e portanto
não se busca aprender (80d-e). Para lhe responder, Sócrates, invoca agora que
“ouviu homens e mulheres hábeis nas coisas divinas, sacerdotes e sacerdotizas[19],
poetas divinos [...] [dizerem] coisas verdadeiras e belas [...], dizem que a
alma do homem é imortal, e que ora se escapa, o que se chama morrer, ora reaparece,
mas sem nunca perecer, e que, por essa razão, há que ter a vida mais santa
possível” (81b). Esta evocação de dizeres de gente divina funciona à maneira do
‘como um sonho’ do Crátilo, é
uma terceira hipótese a acrescentar às do § 4: quando Sócrates evoca uma experiência
deste tipo, sonho ou revelação de ‘origem divina’, é Platão quem assinala um
ponto importante do seu afastamento do mestre, reforçando-o aliás pela dúvida que emite logo a seguir sobre esta
hipótese, “a dizer verdade, eu não afirmaria positivamente que tudo é
verdadeiro no meu discurso [...] [excepto] que é preciso buscar o que não se
sabe” (86b). Esta crença pede pois a santidade, é sobre a virtude que se está
inquirindo; ”já que a alma é imortal e ela viveu várias vidas, e que viu tudo o
que se passa aqui e no Haddes, não há nada que ela não tenha aprendido [...], não surpreende que sobre a virtude e sobre
o resto ela possa recordar-se do que soube outrora. Como na natureza tudo se
mantém e como a alma aprendeu tudo, nada impede que, recordando-se duma coisa
só, o que os humanos chamam aprender, ela encontre sozinha todas as outras,
desde que seja suficientemente corajosa e não se farte de buscar; pois que
buscar e aprender não é senão reminiscência (anamnêsis)” (81c-d). Depois da célebre exemplificação desta
reminiscência com o jovem escravo de Menon, o dialogo termina assim: “a virtude
não é um dom da natureza nem uma matéria de ensino, mas é por um favor divino (theia
moira) que a virtude chega sem o
intelecto (aneu nou) naqueles
que são favorizados com ela” (99e-100a). Mas não foi definida (100c).
17. Parece pois que a célebre e
misteriosa reminiscência (aprender, é recordar) seja uma espécie de recurso ao
‘divino’ afim de dar conta da possibilidade humana da virtude, do como da
santidade. É um domínio que se diria ‘teológico’, de sonhos como de
sacerdotes/izas. Mas a reminiscência tem um alcance mais largo, que a digressão
pela geometria abria e que se torna óbvio com a entrevista do escravo: como é
que, neste ignorante de geometria chega a espontaneidade da resposta justa, após ter tentado compreender
sabendo todavia que não sabia responder. É certo que teria sido difícil a
Platão conduzir a conversa com o escravo sobre a virtude que estava em
discussão, mas conclui-se que a reminiscência das almas pré-existentes ao
nascimento dos corpos também dá conta da aquisição da inteligência geométrica
(tão privilegiada pela Academia: ‘que ninguém entre aqui sem conhecer a
geometria’). ‘Também’, escrevi, mas talvez haja que escrever ‘primeiramente’,
se se volta ao Crátilo: “[…]
neste escravo, estas opiniões acabam de surgir como num sonho (85c) […] sem nenhum mestre, com simples
interrogações, ele retomou nele próprio a sua ciência (85d) […] retomar sozinho
em si mesmo uma ciência é recordar-se (85d) […] ora, se ele não as recebeu na
vida presente, não é evidente que ele as teve e as aprendeu num outro tempo?
[…] não é preciso que a sua alma tenha sido sábia desde sempre? Pois é evidente
que a sua existência ou a sua não-existência humana se estende a toda a duração
do tempo. […] se portanto a verdade das coisas existe sempre na nossa alma, ela
deve ser imortal. […] no humano, tudo depende da alma e a própria alma depende
da sabedoria, condição indispensável para ela ser boa” (85d-89a). Duas vezes de
seguida a ‘evidência’ (dêlon),
a prova, o raciocínio neste domínio fora do corpo do inteligível e em seguida o
retorno à sabedoria enquanto virtude, que incluiria também o saber científico
dos filósofos, “condição indispensável para que a alma seja boa” já no Fédon
I.
18. É certo que Sócrates fala como um
homem que não sabe (ouk eidos)
e que conjectura (98b1), ela ainda não demonstrou a imortalidade da alma, que
foi em todo o caso aceite. Mas já respondeu ao sofisma sobre a aprendizagem:
“aquele que ignora (ouk eidoti)[20]
uma coisa, qualquer que ela seja, tem em si opiniões verdadeiras sobre aquilo
que ignora (mê eidê)”
(85c6-7), o que introduz entre saber e ignorância um termo intermediário, o da
opinião verdadeira[21],
por exemplo, a dos homens de Estado que governaram bem, embora sem ciência, ou
como os profetas e adivinhos, que dizem frequentemente a verdade sem conhecerem
as coisas de que falam (99b). A reminiscência ainda não atingiu as Formas
ideais e, em relação à alma fora do corpo, ela não ‘prova’ senão a sua
pré-existência, não a imortalidade depois da morte. Mas o Ménon fez com o Crátilo um passo decisivo nessa direcção.
A alma posta à prova pelo amor
19. Fedro I, com retorno ao amor dos rapazes, parece ser um
exercício preparatório do Banquete, em que o motivo é tratado de cabo a rabo. O ambiente é propício ao
delírio e ao divino [“algum deus me sopra a inspiração, este lugar tem algo de
divino” (238c-d)], portanto “à divina filosofia” (239b): “estabeleçamos de
comum acordo o que é o amor e qual a sua força (dunamin), depois [discutamos] com os olhos postos nessa
definição (horon)” (237c-d).
Estes olhos postos na definição, são os da inteligência, não os da sensação
visual (uma definição não se vê), mas não se trata ainda dum eidos de que essa definição pudesse ser a recordação.
“É preciso antes demais aprender a conhecer exactamente a natureza da alma
divina e humana, sabendo das suas paixões e das suas obras. Partiremos deste
princípio. Qualquer alma é imortal [afirmação sem alusões ‘divinas’, depois do Ménon portanto], pois o que está sempre em movimento é
imortal [...] só o ser que se move a si mesmo, que não pode falhar-se, nunca
cessa de se mover, e é o mesmo para todos os outros seres que tiram o movimento
de fora, [a alma é] a fonte e o princípio do movimento. Ora um princípio não
pode nascer [...] tudo o que nasce nasce dum princípio [...] senão não seria um
princípio […] o auto-movimento é a essência da alma (psuchês
ousian)” (245c-e). Logo a seguir
pára, pois “para mostrar o que é a alma, seria preciso [...] uma ciência divina”;
creio que se trata aqui da primeira abordagem da alma, princípio do
auto-movimento dos vivos (vale também para os animais) e da primeira tentativa
de demonstração da sua pré-existência (“um princípio não pode nascer senão não
seria um princípio”). Ela ilumina, parece, de maneira precisa e preciosa, o
impasse desta filosofia no que diz respeito ao conhecimento[22]. Cortada do corpo pela sua posição principial[23],
por um lado, e por outro sendo ela apenas susceptível dos conhecimentos mais
altos, do inteligível cúmplice do divino, não há maneira de entrar nela ou de
sair dela senão por uma visão qualquer metafórica de que ela seja também o
‘princípio’ ou o ‘receptáculo’. Será pois metaforicamente que se falará dela
(“ela parece uma força composta dum carro e dum cocheiro com asas”), atraída
para cima ou para baixo consoante a relação ao corpo. “Quando a alma é perfeita
e com asas, [...] a natureza dotou a asa do poder de elevar o que é pesado para
as alturas onde habita a raça dos deuses, e pode-se dizer que, de tudo o que é corporal,
ela é o que mais participa do divino. Ora, o divino, é o belo, o sábio, o
bom e tudo o que se assemelha a estas qualidades (246d-e). [...] as almas imortais, uma vez que
cheguem ao alto do céu, passam para o outro lado e colocam-se na abóboda celeste
e, se se mantiverem nela, a revolução do céu leva-as na sua corrida e elas
contemplam as (coisas) fora do céu [...] a essência que verdadeiramente é (hê
ousia ontôs ousa), sem cor, sem
esquema, intocável, perceptível unicamente ao guia da alma, a inteligência, e
que diz respeito à verdadeira ciência, reside neste lugar” (247c-d). Se
ainda não há Formas ideais, o seu lugar celeste, divino, e a sua relação à alma
separada do corpo, acabam de ser desenhados.
20. No Banquete, após os outros convivas terem exposto as
diversas concepções correntes sobre o amor, encontramos pela primeira vez
Sócrates na posição de interlocutor diante de outrem que, ela, está na posição
da que conduz o discurso, aquela que sabe, “uma mulher de Mantineia, Diótima,
sábia destas matérias e muitas outras” (201d). Esta inversão das posições é sem dúvida um índice
muito forte da ruptura que Platão aqui opera em relação a Sócrates (§ 7): se o
recurso frequente deste à inspiração do seu demónio, ao “como que sonho”, ao
delírio divino, poderiam ser maneiras indirectas de dizer uma espécie de
reminiscência da alma de Sócrates (que, tanto quanto sei, não é nunca invocada),
agora não há dúvidas quanto à insistência de Sócrates para aprender com esta
sábia mulher. E porquê uma mulher, num universo intelectual tão misógino, que
privilegia o amor dos rapazes no acesso à filosofia? Talvez seja aí que o
problema se põe, o do alargamento do debate sobre o amor: a questão dirá
respeito ao amor enquanto procriador, sobre algo de que uma mulher sábia sabe
mais do que um homem.
21. Mas antes é necessário que o
saber também faça parte da questão. “A ciência conta entre as coisas mais
belas, ora o amor é o amor das belas coisas, é portanto necessário que o Amor
seja filósofo [o que não são nem os deuses nem os ignorantes], [...] que ele
esteja no meio entre o sábio e o ignorante” (204a-b). Portanto a ciência, a
filosofia, pertence já ao domínio do amor; todavia este releva da beleza (é a
beleza do outro que se ama), há portanto que introduzir também o bem – “se
[...] substituindo a palavra ‘bom’ à palavra ‘belo’, te perguntassem: [...]
quando se amam as coisas boas, o que é que se ama?” (204e) – e poder-se-á
chegar à definição do amor que convém à filosofia de Platão: “o amor é pois
em suma o desejo de possuir sempre o bem” (206a).
22. Chegamos então ao ponto da
leitura da carta de Paulo aos Gálatas que me empurrou para a leitura destes textos, que já contavam então mais
de quatro séculos. Com Diótima, chegamos com efeito ao “nascimento segundo o
corpo e segundo a alma [...] [pois que] todos os humanos são fecundos segundo o
corpo e segundo a alma”, e ela acrescenta de maneira muito bonita: “quando o
ser fecundo se aproxima do belo, ele fica feliz e, sob o encanto, dilata-se, e
concebe, e gera [...] donde o transporte violento que o atrai para a beleza, já
que o que possui esta beleza é libertado do grande sofrimento da concepção”. Há
então que retomar a definição do amor como “o amor da geração e da procriação
no belo. [...] Porquê da geração? porque a geração é para um mortal algo que
dura sempre e imortal. Ora, o
desejar da imortalidade é inseparável do desejo do bem, como conviemos, se for
verdade que o amor é ser do bem para sempre. Segue-se necessariamente que o
amor é também o amor da imortalidade” (206b-207a).
23. Aqui chegado, o discurso desdobra
uma escala das imortalidades. Primeiro, a dos animais e da “natureza mortal
[...] que gera, isto é que deixa sempre um ser novo que ocupa o lugar do antigo
[...] o que se retira e envelhece deixa o lugar a um ser novo, que se assemelha
ao que ele próprio era. É assim que o mortal participa da imortalidade no seu
corpo e no resto.” (207d-208b), cabelos, ossos e carne, costumes, caracteres,
conhecimentos, todos nascem e morrem para que outros nasçam. Depois, ao nível
da memória na cidade, “o desejo de ganhar um nome e de ter uma glória para
sempre, [...] desafiando todos os perigos [...] , é a imortalidade que eles
amam” (208c-e). Em seguida, “os que têm a fecundidade da alma [...] para as
coisas de que alma deve ser fecunda e que ela deve gerar [...] o pensamento e
qualquer outra virtude [...] poetas e inventores [...] a parte de longe mais
alta e mais bela do pensamento é a que tem a ver com a ordenação das cidades e
de tudo o que se administra”; para isso, há que encontrar um corpo belo e uma
alma bela, “pelo contacto e a frequentação da beleza, ele dá à luz e gera as
coisas de que a sua alma está prenha desde há muito tempo”, “em comunhão bem
mais íntima do que aquela que consiste em ter crianças juntos, uma afeição mais
sólida estabelece-se entre seres desta natureza”, e citam-se os “rebentos
imortais” deixados por Homero, Hesíodo, Licurgo, sólon. “A estes, tais filhos
valeram já bastantes templos, mas os filhos da geração humana não fizeram até
agora edificá-los a ninguém” (209b-d): como já o final do Menon, em dialogo com Anytos, tinha sugerido que os
grandes homens de Atenas não tinham tido filhos da sua estatura, e que portanto
a virtude não se ensina, há também – aqui vê-se melhor – uma espécie de
‘critica’ da filiação segundo o parentesco, da fecundidade segundo o corpo e a
mulher, que ajudará a compreender
a abolição das casas na República, como também o deslocamento da filiação (na linha da phusis) para o mundo da idealidade (linha da inscrição)
(§ 1).
24. Diótima mostra enfim a série dos
graus duma iniciação, segundo o vocabulário duma religião de mistérios (L.
Robin, p. 67, n. 5), a partir da beleza dum corpo só, depois a de todos os
corpos belos, depois duma alma, depois das acções e das leis, beleza sempre
semelhante a si mesma, depois as ciências: de cada vez o iniciado gera belos
discursos, segundo a lógica da
filiação que se está aqui a ‘transpor’, como metáforas, já que não se pode
fazer de outra maneira, é o que se tenta pôr aqui em evidência (por exemplo
clássico, a inteligibilidade na linguagem da visibilidade). “Até que enfim,
afirmado e crescido, ele levanta os olhos para uma única ciência, a da beleza,
de que vou te falar (210a-d). [...] ele contemplará as coisas belas na sua
sucessão e na sua ordem exacta; atingirá o termo supremo do amor e de repente
verá uma certa beleza que é por natureza maravilhosa, a que era o alvo dos seus
esforços até aí, uma beleza que antes de mais é eterna, que não conhece nem
nascimento nem morte, nem crescimento nem declínio, nem beleza dum lado e
fealdade do outro [...] e esta beleza não lhe aparecerá como com um rosto (prosôpon), nem como com mãos ou outra coisa pertencendo ao
corpo, nem também como um discurso ou um conhecimento; ela não estará situada
em algo de exterior, por exemplo num ser vivo, na terra, no céu ou em qualquer
outro lugar. Ela aparecerá nela mesma e como ela mesma consigo mesma (auto
kath’auto meth’autou), ser eterno
com uma forma una (monoeides aei on), e todos os outros que são belos têm parte nesta beleza (kala ekeinou
metechonta) de maneira que o
nascimento ou a destruição das outras coisas não a acrescenta nem a diminui em
nada, e não produz nenhum efeito nela. [...] Este é na vida, meu caro Sócrates,
o momento entre todos digno de ser vivido: aquele em que se contempla a própria
beleza (auto to kalon). Se tu
a vires um dia, ela aparecer-te-á sem nada a ver com a riqueza e a vestimenta,
com as belas crianças e rapazes cuja vista te perturba actualmente.
(201e-211d). [...] o belo nele mesmo, simples, puro, sem mistura, estrangeiro à
infecção das carnes humanas, das cores, de toda a confusão mortal [...] a
própria beleza divina com forma una (auto to theion kalon monoeides). Achas que a vida dum homem será banal quando
ele tiver os olhos fixados no alto, contemplar o belo pelo meio adequado e vive
em união com ele? Não pensas que só então, quando ele vir o belo pelo órgão que
o torna visível, ele poderá gerar não simulacros (eidola)
de virtude, porque não se ligará a um simulacro, mas a uma virtude
verdadeira, já que ele se liga à
verdade? Ora, se ele gera a verdadeira virtude e a alimenta, não lhe pertence ser amado pelos deuses e,
dentre os homens, tornar-se imortal?” (211e-212a).
25. Pode-se dizer que é a resposta ao
Menon, a justificação da não
aprendizagem da virtude: ela é gerada na alma pela contemplação do Belo nele
mesmo. Mas é também a correcção
do que chamei acima o impasse desta filosofia no Fedro I, no que diz respeito ao conhecimento, o que seria
a ‘insularidade’ da alma: assim como uma criança nasce dum corpo de mulher,
também a virtude duma alma de homem; assim como é preciso um homem para os
filhos das mulheres, também são precisos dois amantes para este parto das
almas: “pelo contacto e a frequentação da beleza, ele dá à luz e gera as coisas
de que a sua alma está prenha desde há muito tempo, em comunhão bem mais íntima
do que aquela que consiste em ter crianças juntos”, dizia Diótima, essa mulher
sábia. O amor dos rapazes como condição da geração dos belos discursos
‘corrige’ assim a insularidade da alma: trata-se justamente do lugar da
maiêutica (de que o Teeteto
fará a teoria), da explicitação da experiência (logocêntrica, § 31) do
pensamento vindo sempre do outro (inclusivamente de forma crítica, por
refutação), o amor dos rapazes na base da dialéctica, em que Platão acentua a
necessidade do desejo, o que, por outro lado, justifica a importância da
beleza, na República III, o
Belo sendo o mesmo que o Bem.
26. Tratar-se-ia assim parece-me, do primeiro
texto de Platão que coloca o Belo como Forma ideal (monoeides), com todas as indicações, já no Menon e no Fedro I, de ‘divindade’ na questão. Parece pois justificado pretender que Sócrates
tornar-se aprendiz de Diótima significa que Platão dá um novo passo além de
Sócrates[24], o passo para as Formas
ideais que Aristóteles assinalava como ruptura entre ambos (§ 3), que prossegue
a que ele fez no início do livro II da República (§ 7) e tornará possível República III. Todavia, se o Banquete não fala explicitamente de alma imortal, apenas
de imortalidades desejadas, é porque ele supõe Fedro I: estes dois textos farão pois uma sequência
lógica depois do Crátilo e do Menon, numa série a situar provavelmente entre República
II e III.
O Sol filho do Bem
27. Para que haja a cidade ideal da República, bastará “uma única mudança”: “que os filósofos
sejam reis na cidade” ou que os reis sejam “verdadeira e seriamente filósofos”
(473c-d). Ao invés de “os que amam os espectáculos e as artes, as práticas”, o
filósofo é “aquele que acredita que o belo existe nele mesmo, que pode
contemplá-lo nele mesmo e naqueles que participam dele (metechonta)[25], que não toma nunca as coisas belas pelo belo nem
o belo pelas coisas belas” (476b-d), já que, contrários entre si, belo e feio,
bom e mau, justo e injusto, são cada um um (475e, sem que a palavra eidos apareça, todavia): isto é, sem mistura entre
eles por definição[26]. O filósofo “ama essa
essência (ousia) que existe (ousês) sempre e não erra entre a geração e a corrupção”
(485b), prefere “os prazeres que a alma prova nela mesma” e deixa “os do corpo”
(485d-e)[27], “abraça no seu conjunto e totalidade todas as
coisas divinas e humanas, contempla todos os tempos e todos os existentes”
(486a), “não pensará que há que temer a morte” (468b), “as suas disposições
naturais levá-lo-ão facilmente para o ser ideal de cada ente” (486e), “aspira
ao ser, não se detém na multidão das coisas particulares” – as da opinião – “e
não larga o seu amor (erôtos)
até ter penetrado a natureza de cada [ente] com o elemento da sua alma a que
pertence penetrá-lo, depois tendo-se lhe ligado (plêiasas, aproximação sexual) e unido [por uma espécie de
hymen, Baccou] ao ser real (to onti ontôs), e tendo gerado (gennêsas, parido) a inteligência e a verdade, atingido o conhecimento e a verdadeira
vida, encontra aí o seu alimento e o repouso das dores de parto” (490b). É a comparação de Diótima com a
procriação que é assim retomada, a geração da inteligência e da verdade pela
alma, isto é a geração dum discurso verdadeiro, passadas as dores do parto. As
coisas fora da geração e da corrupção, fora do nascimento e da morte, só podem
ser ditas na linguagem da geração, da procriação. “A ideia de bem (agathou idea) é o mais alto dos conhecimentos” (505a), mas
Sócrates todavia retém-se de falar dela, apenas “do filho (ekgonos) do bem” (508b); “as coisas belas, […], boas, […] são percebidas
pela vista e não pelo pensamento, mas as ideas são pensadas e não são vistas » (507b-c). À
diferença dos outros sentidos – não há um intermediário entre orelha e sons – a
vista precisa da luz para ver algo, de que o sol é o mestre no céu, o olho
parecendo-se com ele, a sua potência vem-lhe do sol, que Sócrates “chama o
filho do bem, que o bem gerou como semelhante a si mesmo; o que o bem é no
domínio do inteligível em relação ao pensamento e às [coisas] pensadas, é-o o
sol no domínio do visível em relação à vista e às [coisas] vistas” (507c-508c) [28]. O que implica que o Eidos do Bem
(inteligível) gera, dá à luz, que ele seja o pai do sol (visível), portanto
talvez, de forma geral, que os Eidê celestes geram os entes sensíveis[29]. Não se pode todavia dizer que o motivo da procriação dê conta nem do mundo
inteligível nem do mundo visível. “Assim como o sol fornece [parechein, nada a ver com geração] às coisas visíveis não
apenas o poder de serem vistas mas também a geração, o crescimento e a
alimentação, sem ser ele próprio geração, também as coisas inteligíveis não têm
apenas do bem a sua inteligibilidade mas também o seu ser e a sua essência (to
einai kai tên ousian), embora a ousia não seja o ser do bem (ouk ousias ontos tou agathou), mas [este] mantém-se (huperechontos) ainda para além da ousia (all’eti epekeina tês ousias) em dignidade (presbeia, antiguidade) e potência (dunamei)” (509a-b)[30]. Em conclusão, a nitidez da separação: a ciência e os conhecimentos discursivos relevam
da inteligência (noésis) e a
crença e a imaginação da opinião (doxa), “esta sendo sobre a geração (genesis) e aquela sobre a ousia” (534a, cf. 511e).
Que a alma é portanto imortal
28. “É antiga a dissidência entre a filosofia e a
poesia” (607a-b), há pois que aproveitar a nova teoria das Formas ideais (de
que aprendemos que há uma para a cama e outra para a mesa, 596b) para encontrar
novos argumentos para expulsar os poetas da cidade. O que leva Sócrates a dizer
algo que surpreende o seu interlocutor: “Ainda não observaste que a nossa alma
é imortal e que ela nunca perece? Ele olhou-me e disse-me muito surpreendido:
Por Zeus! Não, e tu, és capaz de o dizer? (608d). Baccou nota que os
comentadores admiram-se com esta surpresa de Glauco (p. 483, n. 736); em vez de
se pensar que seria a primeira vez que Platão o escreve, creio que se trata
duma confirmação da diferença de estatuto dos textos segundo o seu
enquadramento (§ 4): seria a primeira vez que ele o escreve em textos destinados
ao grande público (o próprio Banquete não o diz). O argumento é bastante diferente do do Fedro I sobre o princípio do auto-movimento: aqui ele
parte da separação entre o Bem e o Mal (portanto entre duas Formas ideais) e
propõe que aquele não destrói nada, apenas o Mal o faz; ora o mal da alma, a
injustiça, “não pode matá-la nem destrui-la” (610d). O argumento implica a
célebre teoria da metempsicose ou reencarnação das almas: sendo imortais, “são
sempre as mesmas almas que existem, porque que o seu número não poderia nem
diminuir, já que nenhuma perece, nem, por outro lado, aumentar” (611a).
Partindo da oposição entre o bem e o mal, o argumento acabará com a recompensa
dos justos: “tem que se admitir, quando um homem[31] justo se encontra exposto à pobreza, à doença, ou
a qualquer destes pretensos males, que isso acabará por virar em vantagem sua,
estando vivo ou estando morto; porque os deuses não poderiam negligenciar
quem se esforça por se tornar justo e por se fazer, pela prática da virtude, tão semelhante à divindade quanto
é possível a um humano” [32] (613a-b). Este capítulo X da República, tal como o Górgias e o Fédon II, termina com um mito sobre o destino das almas após a morte dos seus
corpos.
29. A terceira volta do argumento encontra-se no Fédon
II, mais trabalhada do que as
outras duas e parece portanto pressupô-las, como se Platão condensasse sobre
Sócrates – que vai morrer –, sobre a sua alma, o ponto máximo da sua
argumentação a respeito da imortalidade. Invoca-se primeiro uma antiga tradição
sobre esta imortalidade[33] que se tratará de provar. O argumento dá-se em
dois tempos, o primeiro sobre os contrários que nascem uns dos outros: o grande
do pequeno (crescimento) e o inverso (diminuição), o sono da vigília e o
inverso (70d-71c), portanto também a vida da morte e a morte da vida: os vivos
nascem dos mortos assim como os mortos dos vivos (71c). Este argumento – que
parece bizarro, mas que encontrará alguma justificação quando se pensa que os
animais vivem de comer cadáveres, mas não tendo alcance senão para o mundo
corporal, da geração e da corrupção – não deveria valer para os contrários que
são o bem e o mal. Mas eis que Sócrates “julgou encontrar uma prova suficiente
de que as almas dos mortos existem forçosamente em algum lado, donde elas voltam
à vida” (72a). E é o segundo tempo, que retoma o argumento do Menon: aprender é recordar, bem interrogados, os homens
descobrem por eles mesmos a
verdade sobre qualquer coisa (73a-b); depois, a associação de ideias é uma
recordação, por vezes de coisas semelhantes, por vezes dissemelhantes, donde se
passa à igualdade, as coisas iguais pelos sentidos supondo o conhecimento da própria
igualdade antes de se fazer uso desses sentidos, antes do nosso nascimento
(73b-75c), portanto também o próprio belo, o bom, o justo, o santo, todas as
coisas que marcamos com o selo de “o que é si mesmo” (auto ho estin) nas perguntas e respostas das discussões, de
maneira que temos que necessariamente de ter tido conhecimento de todas essas
noções antes do nascimento (75d) e esquecido depois: ou se nasce com os
conhecimentos ou se os recordam (75e-76a), se as coisas nelas mesmas existem
realmente (ontôs), e também a
nossa alma antes do nosso nascimento (76e). É portanto das Formas ideais que
ele deduz a pré-existência das almas, mas sem que a prova valha para os
animais, só para os humanos. E quanto à existência após a morte? Bastará acrescentar
que os vivos vêm dos mortos (77b-d). O que segue ilustra bem os pressupostos do
argumento: só as coisas compostas podem morrer, dissipar-se e mudar. O igual, o
belo, o ser (to on), são sem
alteração. Entre as coisas que têm o mesmo nome, há duas espécies de entes (duo
eidê tôn ontôn), os visíveis e os
invisíveis: estes são sempre os mesmos, aqueles nunca o são, respectivamente a
alma e o corpo (78d-79b). O pensamento: a alma atraída para o que não muda, por
causa do seu contacto com ele permanece imutavelmente a mesma, portanto ela
assemelha-se mais ao invisível e ao divino[34] (mais apta a comandar), enquanto que o corpo se
assemelha ao visível e ao mortal (apto a obedecer) (79b-80b). Como já no Fedro
I, é a separação entre ambos,
posta pelo filósofo (se a alma se exercer a fugir do corpo e a recolher-se, a
filosofar, portanto a treinar-se a morrer, “como se diz dos iniciados, ela
passa verdadeiramente com os deuses o resto da sua existência”, 80d): com
efeito, o filósofo é um ‘espiritual’ que deixou os desejos dos corpos e das
casas para se dedicar aos que são só da alma, a virtude e o pensamento, e é
este pressuposto que leva a melhor. O que não vale senão para os humanos e, dentre eles, para os filósofos,
esses virtuosos. “Para entrar na raça dos deuses, isso não é permitido a quem
não for filósofo e não partiu inteiramente puro, esse direito pertence apenas
ao amigo do saber” (82b). Com efeito, desde que a linguagem foi afastada no Crátilo, o argumento anda em torno do conhecimento e
de que o corpo não participa dele: no fundo, é a força da experiência do pensar
que o sustenta; esta, enquanto
experiência, não poderia ter sido aprendida, herdada de antepassados (pela
tradição) ou de mestres, de tal maneira ela surgiu espontaneamente de si próprio, sem que, por outro lado, o pensador
se possa dizer seu autor exclusivo, como se ele próprio ficasse surpreendido.
Tenho tendência a pensar que reside aí a base de uma das correntes mais fortes
do pensamento ocidental, aquela que foi chamada ‘idealismo’.
30. Platão tendo recebido uma nova objecção, o Fédon
II retoma a questão da
imortalidade após a morte do corpo, considerando expressamente que o que fora
desenvolvido a respeito da pré-existência se mantinha conseguido. Nesta
matéria, é impossível ou extremamente difícil saber a verdade na vida presente,
pelo que ou se deve escolher a via melhor e mais difícil e arriscar-se nela,
como sobre uma jangada, ou então ter uma revelação divina (85c-d); releve-se
também a observação segundo a qual “as pessoas totalmente boas e as totalmente
más são em pequeno número, tanto umas como as outras”, tal como são raros os
homens muito pequenos e os muito grandes (89d-90a). “Quando a morte se aproxima
do humano, o que há de mortal nele morre, como parece, e o que há de imortal
retira-se são e salvo e incorruptível e cede o lugar à morte” (106e). Em
resumo: a argumentação sobre a imortalidade da alma depende, pela sua pré-existência antes do nascimento, da questão da espontaneidade do conhecimento
do que, estando para lá dos sentidos, da corporalidade, não pode ter sido
aprendido e é reminiscência das Formas ideais (argumento ‘intelectual’), argumento
que vale em vida, enquanto que o depois da morte, depende da virtude, do Bem (argumento
‘espiritual’).
A aporia da definição, operação de escrita
31. Fedro II retoma a retórica para censurar aos oradores
escreverem os seus textos (257c); quer dizer que, em certo sentido, se trata
duma retomada da questão da imortalidade, desta vez daquele que escreve (de Platão
que lemos tantos séculos depois!), em contrapartida com a da alma em Fedro I. Seria talvez o que fez Platão juntar esta
segunda redacção: opor as duas heranças (§ 1), as das casas pelo parentesco de
pai em filho (a quem a alma está ligada, herança para além do corpo), e a da
escrita de mestre em discípulo (a respeito da sua aprendizagem), “a potência de
tornar-se imortal na cidade enquanto escritor de discursos (dunamin
athanatos genesthai logographos en polei) (258c). A questão, “o que é então escrever bem ou mal?” (258d) submete a
escrita à da separação entre o bem e o mal, tal como a geração está submetida à
da morte, questão a que a escrita não saberia responder, Derrida (“La Pharmacie
de Platon”) demonstrou-o muito claramente: sendo droga (pharmakon), tanto remédio como veneno, a escrita resiste a
esta separação. Este pensador chamou logocentrismo à predominância do logos (do pensamento ‘vivo’ e da sua memória, ambas
muito perto da alma e da sua verdade) sobre o texto escrito (que se afasta do
escritor e perdura além da sua morte, sem que este o possa defender das
objecções dos seus leitores), predominância que se assinala na “composição do
discurso como um ser vivo, com corpo, cabeça e pés, meio e extremidades, partes
bem proporcionadas entre elas e com o conjunto” (264c)[35].
O que pode ser aproximado da comparação, um pouco mais longe, da escrita (graphê) e da pintura (zôgraphê, à letra escrita dos vivos): já no cap. X da República, esta era desqualificada quando se tratava de
pintar uma ‘cama’, em relação à obra do marceneiro. O escrito e o quadro são
como vivos (hôs zonta) que,
interrogados, guardam silêncio (275d), não respondem, são como vivos mortos,
por assim dizer. Para que servem os discursos escritos? “Não são senão um
‘memento’ (que) recorda ao que já sabe (sobre) as (coisas) escritas” (275d).
Por exemplo, eles servem como notas de aulas, como os textos de Aristóteles que
nos chegaram; não servem senão na escola, na Academia, diante do mestre que os
escreveu, que pode explicá-los, responder por eles. Qual é o risco de que um
livro caia fora de escola, que ele encontre leitores longe do seu autor? É que,
pela leitura, eles se “se tornem muito instruídos sem terem sido ensinados (aneu
didachês); sendo sem julgamento,
julgar-se-ão muito sábios, e por isso em geral muito difíceis de suportar,
tornando-se sábios de opinião contra os (verdadeiros) sábios” (275b). Em
resumo, serão auto-didactas, aqueles que, ao longo dos séculos, serão
proscritos por não terem ido à escola. O autor tendo-se retirado, como é que se
pode aprender com um escrito que “significa sempre a única e mesma coisas? Uma
vez escrito, ele anda por todo o lado e passa indiferentemente pelas mãos dos
conhecedores e pelas do profanos [os autodidactas], e não sabe distinguir a
quem se deve falar ou não” (275e).
32. O debate de fundo é entre a
memória interior (relação à reminiscência?), “o discurso que sabem vivo e na
sua alma [...] e o escrito que justamente é a imagem (eidolon) dele” (276a): “é de fora por caracteres estrangeiros e não por dentro que eles se recordam a si mesmos, não é portanto
do registo da memória mas da recordação” que releva a invenção deste pharmakon que “trará aos discípulos a opinião do saber, não
o verdadeiro saber” (275a-b). Adiante, será argumentado em favor dos “melhores
dos discursos, nascidos para memento dos sábios nos auditores e aprendizes,
dizendo de forma agradável e escritos na alma[36] deles, discursos sobre o justo, o belo e o bem, apenas eles são claros,
conseguidos e de valor nobre; há que considerar esses discursos como os filhos legítimos do seu autor” (278a)[37].
Este debate entre dentro e fora tem assim a ver com o justo, o belo e o bem,
sobre o resultado, como vimos, da definição socrática (no Ménon, debate entre, por um lado, a alma que recupera a
reminiscência e, por outro lado, o que ela pode aprender ou não de outrem). Com
efeito, o que é que Sócrates procura sempre nesses diálogos? Conseguir que os
seus interlocutores cheguem a encontrar com ele a definição do belo e do bem,
de tal ou tal virtude, da própria virtude, de maneira a poderem viver de forma
segura, duradoura, no aleatório da vida da cidade: duradoura porque “escrito (graphetai) com a ciência na alma daquele que aprende (manthanontos)” (276a) (trata-se com efeito da questão da
aprendizagem, da escola). A definição joga portanto do interior e do exterior,
eis a aporia: todo o trabalho que
Sócrates se dá ao pé dos jovens – estando ele, no exterior (como parteiro, dirá
no Teeteto) – para que eles
saibam definir, delimitar, fixar, registar duravelmente na sua alma o que
viria, segundo o Ménon, da
reminiscência das Formas ideais colocadas na sequência da invenção da
definição. Jogando ao mesmo tempo dentro e fora, esta é uma operação de
escrita, de gravação, de inscrição escolar duradoura de limites, de fronteiras.
33. “Há que olhar estes discursos (logoi) como filhos legítimos do seu autor”, terminava
assim a última citação, deixando aos discursos escritos a posição de bastardos.
Já antes Sócrates tinha falado de “Fedro como pai de belos filhos” (261a),
referindo-se aos seus discursos. Como é que a aporia se liga a esta comparação?
Tem a ver com o enigma da procriação: “não posso acreditar [...] que sei porque
é que um é gerado, nem, numa palavra, porque é que qualquer coisa nasce, perece
ou existe” (Fédon III, 97b).
Não apenas qual é o papel do pai e da mãe, coisa que era discutida pelos
médicos e outros physicos, mas também: rapaz ou rapariga, com quem será ele ou
ela parecido/a? No caso, que hoje se tornou frequente, dum casal misto, as
incógnitas multiplicam-se, pele negra branca, mais ou menos mulata, cabeleira,
forma da boca e do nariz, e por aí fora. Sem que se possa decidir de fora, no
estado actual das coisas. Ora, a comparação releva deste enigma sobre o que é
gerado dentro e desta impotência de quem assiste, pois Sócrates Platão
quereriam intervir de fora para que o recém-nascido seja ‘verdadeiro e
virtuoso’ duravelmente[38]. A descrição da caminhada do pensamento em termos
de geração paterna de fora e
de parto do que vem espontaneamente de dentro foi a maneira que Platão encontrou de dizer as
duas vertentes da aporia: indissociáveis num mesmo discurso que diz respeito a
dois domínios separados, inconciliáveis, o da aprendizagem e o da espontaneidade
do pensamento e da virtude.
34. Pode-se resumir assim a caminhada
de Platão até aqui: sobre a dupla base socrática da pedagogia erótica e da
crença tradicional da sobrevivência da alma no Hadés, por um lado ele faz jogar
a definição que o próprio Sócrates inventou para, a partir de múltiplas coisas
que mudam, fazer existir realmente (celestamente) os definidos enquanto entes
inteligíveis, por outro busca demonstrar a tradição órfica da imortalidade da
alma (e o reforço, recorrendo à geometria, à oposição entre a alma e o corpo, o
inteligível e o visível ou sensível) a partir da reminiscência desses
definidos, contemplados antes do nascimento. Ela representa o primeiro avanço
franco do platonismo (no Menon), o que parece confirmado pela maneira como no Fédon II (73a-b) um pequeno diálogo entre dois dos
interlocutores de Sócrates, em que um deles, Cebes, apoia a argumentação de
Sócrates contra o outro, Símias, Cebes apresentando ele próprio essa doutrina
como uma aquisição segura.
A viragem do platonismo
35. Podemos todavia perguntarmo-nos
se a questão da escrita no Fedro II não releva duma problemática escolar amadurecida na experiência de leitura
da Academia e que dominará os textos que se vão seguir, em torno do saber. O
que implicaria que teria havido um longo intervalo entre os textos que lemos
até aqui (até Fedro I) e os
que seguem, a começar pelo Parménides. Assim como Fédon II e
III parecem terminar esta
sequência de constituição do platonismo (nunca mais será questão da
imortalidade da alma, a demonstração ficou feita e terá uma longa
‘imortalidade’ através do cristianismo), Fedro II inauguraria a sequência dos novos textos, onde
não será mais questão de reminiscência, de ensino das virtudes, do papel do
amor dos rapazes e se encetará uma crítica das Formas ideais celestes. Estes
textos introduzem também pela primeira vez a figura venerável de Parménides,
discutem a possibilidade das ciências sobre as coisas terrestres e a
possibilidade da falsidade dos discursos, em suma textos com dominância da
problemática intelectual sobre a dimensão espiritual, textos mais escolares[39].
36. Vejamos a questão da cronologia
destes textos. A ficção da escrita platónica coloca em série o Teeteto, o Sofista e o Politico – o primeiro
termina marcando um encontro para o dia seguinte[40],
que os dois outros continuam – enquanto que o Parménides conta um inverosímil encontro entre este filósofo
e Sócrates, um bastante idoso visitando Atenas e o outro muito jovem, o que o
impede de o situar na cronologia fictícia dos outros três: o Parménides só pode ser antes deles ou então depois. Ora, esta série não tendo
sido acabada (falta um quarto, o Filósofo, que não foi escrito, assim como o Politico não foi terminado), parece lógico supor que o Parménides
terá sido escrito antes. E tratando-se
duma lição critica a Sócrates, percebe-se que seja necessário alguém de venerável
a fazê-la, numa viragem decisiva que faz ‘pendant’ com a de Diótima (já que é
ela o alvo da critica). Dificuldade aparente: Sócrates conduz o diálogo do Teeteto e não os outros dois, mas justamente esse diálogo
acaba num embaraço que os outros dois vão resolver, o que parece indicar que a
‘esterilidade’ de Sócrates o impede de criticar Parménides, como o fará o
Estrangeiro de Elea. Enfim, ver-se-á, que tudo isto sucede depois de Aristóteles
ter entrado para a Academia e começado a discutir com Platão. Com efeito, quer
o Teeteto quer o Sofista citam o Parménides: o primeiro em 183c-184a, aonde se deveria fazer
o confronto de Sócrates com a posição deste filosofo sobre a possibilidade da
ciência, após ter sido longamente questão da de Heraclito, através Protágoras
(com resposta negativa), este confronto sendo reenviado, se dizer se pode, à
citação do encontro que o Parménides conta (chegando pois também a uma resposta negativa); quanto ao Sofista, o confronto é posto desde o seu início: “queres
[...] proceder por interrogações, como fez outrora Parménides, que desenrolou
argumentos admiráveis na minha presença, quando eu era jovem e ele já bastante
avançado na idade?” (217c). No Teeteto, a questão da possibilidade da ciência, do saber, é colocada entre as duas
filosofias – a do movimento de Heraclito e a da imobilidade de Parménides[41]
– que se excluem mutuamente; ver-se-á o Sofista procurar uma alternativa que não pense já o ser e
o não ser em oposição, à maneira
destes dois géneros, movimento e repouso, como sucede em Parménides, mas em
termos do mesmo e do outro misturados no mesmo ente. Será esta ‘mesmidade’ que torna possível a ciência, a
mistura permite considerar os entes (que nós somos, segundo o exemplo de
Sócrates sobre si, Parménides
129d). Por outro lado, a segunda parte deste diálogo fornece um novo método de
investigação lógica que quer o Sofista quer o Político utilizam.
Há pois uma sequência lógica entre os quatro diálogos, ou até dos cinco, já que
o Político e o Filebo consistem na aplicação da descoberta do Sofista aos dois grandes domínios privilegiados de
Sócrates e Platão, respectivamente a ética e a politica.
37. A dança das personagens que
conduzem os diálogos pode ajudar a compreender o que está em jogo neles. Sem
dúvida que o Teeteto tem ar
dum dialogo clássico de Sócrates com um jovem. Todavia, tudo se passa como se
Platão fizesse nele uma recapitulação crítica de tudo o que aprendeu com outros
além de Sócrates: por um lado, a geometria é representada por Teodoro, um
matemático pitagoriciano de Cirene (com quem Platão tinha estudado geometria),
e pelo seu jovem discípulo, Teeteto; por outro, discute-se Protágoras,
Heraclito[42],
Empédocles, Homero (152e), cita-se o Parménides, o ‘padrinho’ de Sócrates Platão, digamos; em
resumo, trata-se da panóplia dos principais doutrinas correntes: São todos
convocados em torno da questão fundamental da Academia – o que é a ciência? é uma coisa diferente da
sabedoria? – o que dá ao diálogo a vastidão dum grande repor em questão, dum novo ponto de partida; mas que também tem o
aspecto dum retorno, como parece sublinhar – desde o início e frequentemente
recordada até ao final – a elaboração da célebre teoria maiêutica do dialogo
socrático, feita sobre a comparação de Sócrates com a sua mãe, parteira (maia
em grego) e a insistência sobre a
afirmação da sua esterilidade, da sua ignorância de qualquer saber, de que só
presta para avaliar o dos outros. Ora, o dialogo desagua sobre um ‘aborto’, o
jovem geómetra, libertado das suas falsas opiniões, revela-se incapaz de gerar
uma boa definição, incapaz de ter um filho real; apesar de longo, permanece
aberto aos textos que virão depois. Ora, já o início do Parménides punha o jovem Sócrates no lugar do jovem Teeteto,
despojando-o também – e depressa, sem nenhuma preocupação de maiêutica
pedagógica – da sua teoria dos Eidê, com o argumento de que a separação deles em relação às coisas de que seriam os paradigmas os tornaria não
conhecíveis. É aqui que se situa a ruptura que pede uma nova partida,
assinalada por um maravilhosos pequeno diálogo após a conclusão da discussão.
Parménides censura a precocidade de Sócrates: “o que é que tu vais fazer em termos
de filosofia? Para que lado te virarás (trepsei), se as coisas são desconhecíveis? – É algo que
não vejo nada, pelo menos de momento. – É que tu começaste cedo de mais,
Sócrates, antes de te teres exercido, a definir (horizesthai) o belo, o justo, o bom e cada uma das outras
formas. Foi uma observação que fiz o outro dia ouvindo-te a discutir aqui
mesmo com o nosso amigo Aristóteles” (135c). Extraordinário dialogozito, em que Platão põe o seu velho mestre
que ele admira tanto, em situação de sofrer a censura da temeridade da sua
juventude por um velho sábio venerável. Tendo criticado as Formas ideais que
Platão atribuíu a Sócrates, é o próprio Parménides que empurra este para a
‘viragem de pensamento’ – “não se saberia já para onde virar o seu pensamento (trepsei tên dianoian)”, tinha ele dito duas linhas antes (135b) –; no
entanto, é o próprio Platão que é empurrado para a viragem, como é óbvio. Todavia, o seu porta voz de sempre
tomará no diálogo seguinte, após esta crítica, a questão do conhecimento das
coisas: o fracasso desse diálogo implicará, por sua vez, no outro a seguir, o Sofista, a crítica do próprio Parménides, mas o estéril
Sócrates será incapaz de conduzir a discussão que levará a um novo saber, a
respeito do mesmo e do outro. Depois de se ter tornado, pela segunda vez na
vida (dos textos de Platão), o interlocutor interrogado por alguém mais sábio
do que ele, Sócrates será doravante excluído do seu papel tradicional de
condutor do inquérito, pelo menos na sequência textual em questão, a da critica
da separação das Formas ideais (como se fosse ele o inventor delas! Aristóteles
tinha razão de criticar os sucessores dele, § 3). Ora, a primeira vez em que
Sócrates foi interrogado, foi diante de Diótima, foi ela quem pela primeira vez
falou dum “ser eterno com uma forma una” (monoeides aei on) (§ 24), ela que foi assim, se dizer se pode, o
‘pivot’ da viragem para o platonismo. Este situou-se entre Diótima e
Parménides, nas duas únicas vezes em que Sócrates virou discípulo.
38. Portanto, é Platão, escondido
atrás de Sócrates, quem é empurrado para a viragem do pensamento: e quem o
empurra? Alguém que Parménides terá ouvido discutir com ele. Quem ‘discutia’
com quem? Um Sócrates jovem fictício com um Aristóteles qualquer, um homem
politico mais ou menos desconhecido? Ou o próprio Platão com um jovem discípulo
chamado Aristóteles cuja obra, crítica do platonismo, nos é bem conhecida? Este
pequeno diálogo parece dizê-lo de forma clara, que foi a entrada do jovem Aristóteles na Academia, cerca de 366 talvez, com
18 anos – filho dum médico (um physico), que devia pois já vir com um interesse
bem aberto por estas questões de physica – que terá tido o efeito dum furacão,
dum provocador de viragens[43].
Três gerações de mestres / discípulos jogam-se assim nesta ficção platónica:
Platão – percebe-se que está irritado: ‘és novo de mais, Aristóteles!’ – vê-se
censurado pelo seu jovem discípulo, desmascarado sob o seu mestre porta-voz,
pois foi ele quem foi buscar a Parménides o que ele próprio colocou na boca de
Sócrates, e é por isso que foi necessária a autoridade do velho sábio para o
despedir. Exit Sócrates: não
voltará a conduzir diálogos (excepto o do Filebo, teremos que perguntar porquê quando lá
chegarmos), nem mesmo na sua grande recapitulação politica, As Leis, em que é um Ateniense que, no estrangeiro,
conduz a discussão (texto que não conheço). Eis pois Aristóteles interlocutor
de Parménides: a problemática ético-política substituída pela das ciências
das coisas da phusis, de que
se ocuparão doravante os textos de Platão até ao seu apogeu no Timeu. Para o que Parménides ensina a Platão uma
nova lógica dialéctica. Mas este Mestre, que tinha recusado o apadrinhamento
das Formas ideais, será por sua vez assassinado, sem que Platão tenha
conseguido encontrar um nome para o “parricídio” (honestidade intelectual na
ficção) que fará executar por um Estrangeiro vindo do país de Parménides.
Sofrer a crítica de Parménides antes de o matar
39. Uma questão se põe: porque é que
Parménides nunca é citado, creio eu, antes do texto que tem o seu nome, antes
destes textos da viragem? Tanto mais
insólito quanto a necessidade do “parricídio” no Sofista mostra uma dívida estrutural de Platão em relação
ao mestre eleata[44]. Segunda
questão, porque é que Platão, no Parménides, em vez de criticar este filósofo como fez a
Heraclito no Teeteto, procede
inversamente, fazendo-o criticar as Formas ideais como se fosse Sócrates
quem devesse ter um ‘aborto’,
segundo a temática que domina, como veremos, o Teeteto? A resposta aqui, como à questão do “parricídio”,
só pode ser porque as Formas ideais estão muito mais próximas de Parménides, da
sua oposição entre o Ser (celeste, eterno) e o não ser (terrestre,
corruptível): o que Platão fez foi multiplicar o Ser celeste em inúmeras Formas
ideais, ligando assim o Ser e o não ser, estas coisas do mundo que ‘não são’,
ligação essa que seria incompatível com a sua recusa de pensar o não ser. Então
seria esta ‘contradição’ em relação ao mestre uma razão plausível para o seu silêncio.
Só que a argumentação emprestada ao filósofo é obviamente muito mais adequada a
Aristóteles (§ 3), é este que, sob a máscara de Parménides (sem se ofuscar com
a introdução da definição e suas consequências, a grande separação que levou à
noção de ‘pré-socráticos’), reage contra a separação entre estes Eidê definidos e as coisas: “um Eidos de humano separado de nós?” (130b-c), é uma
aporia, dirá ele um pouco mais longe (133b). Mas algo há de parmenidiano na
argumentação, já que a sua mesmidade do dizer, do pensar e do ser, do dizer-(que)-pensa-o-ser, opõe-se à separação que teria como consequência que as Formas ideais
sejam ao mesmo tempo unas nelas mesmas e múltiplas nas coisas, portanto
separadas de si mesmas (131b). Sócrates defende-se: 1) com o exemplo do dia
que, um e idêntico, está ao mesmo tempo em muitas coisas sem estar separado de
si (131a)[45]; 2) “talvez
cada Forma ideal não seja senão um pensamento (noêma), existindo apenas nas almas, e portanto una”
(132b)[46];
3) elas estão estavelmente na natureza como paradigmas, enquanto as outras
(coisas) se lhes assemelham e são semelhanças delas; a própria participação nas
outras coisas (hê methexis tois allois) nasce (gignesthai) das Formas ideais e não é senão o serem
parecidas com elas” (232d). Esta última resposta merece reflexão: paradigmas ou
modelos “na natureza”, as Formas ideais já não seriam celestes? Estará Sócrates
prestes a renunciar à origem divina das virtudes e da sabedoria em troca da
definição e da ciência das coisas cá de baixo? O que é certo é que Parménides
não tem estas objecções em conta e deixa cair o veredicto final, a mais difícil
aporia da teoria das Formas ideais: se elas existem, não são conhecíveis pelos
humanos, só o deus as conhece. “Não podemos conhecer o belo ele mesmo, o bom,
tudo o que existe em si mesmo” (134a-c), é a fórmula da derrota do platonismo.
Em vez de ser Sócrates a mostrar porque é que a doutrina de Parménides é
incompatível com a ciência – como o Teeteto fará para Heraclito –, é aqui o velho filósofo quem declara: com a tua
hipótese não há ciência, Sócrates. Isto é, não há ciência, Platão, sem viragem.
40. Sucede que a terceira resposta de Sócrates,
segundo a qual a participação das coisas ‘nasce’[47]
das Formas ideais, é a única ocorrência que consegui encontrar nos textos de
Platão que se aproxime dum dos argumentos da critica por Aristóteles da tese do
seu mestre: este teria pretendido que a Forma ideal do humano geraria os
humanos e o discípulo respondido que as formas ideais geram formas ideais e que
os humanos geram humanos[48].
Tratar-se-ia da questão da filiação, tal como a Forma ideal o Bem gerando o Sol
na República (§ 27). A
participação (metechês, ‘ter’
e ‘com’, ter parte com) admite a filiação como um caso de participação, talvez
o caso mais forte, o que justifica o genos, a família e a noção filosófica de género[49],
em que o gerado participa do mesmo do gerador, mas é mais ‘geral’ (participar
na cidade, na assembleia). Ora, é esta futura critica aristotélica que
desenvolve Parménides: um escravo é dum homem que é escravo, não do senhor em
si, da essência do senhor, assim como esta o é em relação à escravatura em si
que ela é o que ela é (133d-e). Há que citar por inteiro o texto. “Todas as
Formas ideais que são o que elas são pelas suas relações mútuas têm o seu ser (ousian) das suas relações umas com as outras, mas não
das suas relações com o que são entre nós as suas semelhanças, ou o que se lhes
quiser chamar, de que nós temos como participantes (metechontes) delas os nossos nomes particulares. Por outro lado,
as coisas do nosso mundo que têm o mesmo nome que elas [as Formas ideais]
existem pelas suas relações entre elas [coisas] e não com as Formas ideais, e é
delas mesmas, e não dessas Formas ideais, que relevam todas as que são assim
nomeadas” (133c-d). Recusa portanto duma relação directa entre a Forma ideal e
as coisas que têm o mesmo nome que ela, recusa da famosa participação
compreendida como filiação:
retorno assim ao antes do Crátilo, que tinha despedido os nomes para estabelecer o conhecimento das coisas
pelas Formas ideais, o que pressupus ser a primeira aparição nos diálogos
platónicos (§ 15). As Formas ideais, se elas existem lá no alto, têm relações
entre elas que nós não conhecemos; igualmente, as nossas coisas têm relações
entre elas, que os deuses não conhecem[50].
As consequências desta crítica serão, no Sofista, a introdução da alteridade como não-ser em
relação ao ser do mesmo, e portanto o “parricídio”! Mas tal não será possível
sem a retomada do dizer-(que)-pensa-o-ser – já não os nomes, mas o discurso[51]
– que o Crátilo tinha
abandonado para poder afirmar o ser das Formas ideais. Ora, o acento colocado aqui sobre as relações mútuas
entre as Formas ideais corresponde à sua desubstancialização ou desontologização[52],
é deixar a oposição ser / não-ser em termos de exclusão, tal como o platonismo
o atribuiu a Parménides. Tratar-se-ia então do ‘suicídio’ deste no dialogo que
tem o seu nome? Julgo que sim, mas não do filósofo, da personagem que Platão
ficcionou para as suas necessidades, lendo-o a partir da definição que Sócrates
inventou e fazendo dele o seu parceiro durante uma parte da viagem. Precisava
com efeito da autoridade do velho pensador[53]
para tornar possível esta segunda viragem.
O parteiro de almas
41. Enquanto que a primeira parte do Parménides tem relação clara com o questionamento do Teeteto e do Sofista, a segunda tem uma tonalidade conceptual que não se encontra em qualquer
outro texto platónico, como se se tratasse dum exercício escolar que tenha sido
colocado aqui mais tarde: como é que Platão vê as consequências do pensamento
de Parménides nas suas próprias categorias. Será mais fácil de a entender como
sendo posterior ao lançamento da nova problemática no Teeteto, que nos permitirá precisar em que é que consiste
a viragem, este questionamento do platonismo. Platão é obrigado a avaliar
criticamente a sua descoberta das Formas ideais e portanto também a sua
reminiscência, de que não voltará a falar-se, como se – encontrada como
resposta à questão principal de Sócrates, a do ensino da virtude – ela
funcionasse menos bem na Academia e no seu acento mais ‘intelectual’ do que
‘espiritual’, digamos[54].
Tem que repartir do zero, de repensar a ciência em geral, o saber, e retomar de
forma nova a questão da aprendizagem (sob a forma da maiêutica, que o Teeteto teorizará). Trata-se não apenas de saber em que é
que se torna a ciência, a caminhada do saber, filosófico, geométrico e outros,
neste novo ‘paradigma’ questionando a solução que propunham as Formas ideais,
mas também de saber como é possível que haja erro[55].
A experiência sensível é um mundo fechado, sem saída para fora de nós mesmos,
sem conhecimento das coisas na sua realidade (Colli, p. 189): o pensamento do
filósofo situa-se fora desta clausura, após a saída da caverna da República, metáfora do mundo dos usos quotidianos e das
vontades (envies) tanto nas
casas como nas cidades, com as suas disputas constantes de interesses
contrários, segundo a descrição de Teeteto 173c-176a. Trata-se agora de substituir a reminiscência que permitia compreender
a génese do pensamento filosófico, uma experiência tão excelente que não se
poderia compreendê-la por aprendizagem de outrem, nisso Platão é constante. Se
se lê e discute Platão e os seus argumentos na maneira escolar herdada,
arriscamo-nos a perder isto que está primordialmente em jogo: a partir desse
“sentimento (pathos) que tu
provas, o espanto, já que a filosofia não tem absolutamente nenhuma outra
origem” (155d), fazer a maravilhosa experiência de pensar o ser que dura sempre
aquém e além dos nascimentos e das mortes, um “pensamento [...] que sonda os
abismos da terra e mede a extensão da sua superfície [geometria], prossegue os
astros nos céus [astronomia], perscruta de todas as maneiras a natureza e cada
um dos seres inteiramente, sem nunca se rebaixar ao que está perto dele”
(173e). É esta experiência que é divina.
42. É esta concepção ‘divina’ do pensamento que me
parece comandar o recurso à comparação da arte de Sócrates com a da sua mãe,
parteira: sempre e em todo o lado o grande enigma nos mitos das sociedades
humanas, a fecundidade releva dos deuses. Tanto a dos corpos como a das almas, segundo Platão. Ela atravessa o conjunto do diálogo, desde o
diagnóstico sobre o jovem geómetra Teeteto que não soube encontrar a definição
de ciência apesar de todos os seus esforços, mesmo recorrendo a outros – “é que
tu estás apanhado pelas dores do parto, porque a tua alma não está vazia, mas
prenha. [...] Confia-te pois a mim como ao filho duma parteira (maias huion) que também ele é parteiro (maieitikon), e quando eu te puser questões aplica-te a
responder-me o melhor que souberes. E se, examinando tal ou tal coisa que tu
disseres eu julgar que não é senão um fantasma (eidôlôn) sem verdade, e que então eu to arranque e o
rejeite, não te entristeças como fazem a propósito dos seus filhos as mulheres
que são mães pela primeira vez” (148c, 151c-d) – até ao desenlace – “agora
estamos ainda prenhes de alguma coisa, caro amigo, sentimos dores de parto em
relação à ciência ou estamos inteiramente livres delas? Sim, por Zeus, e com a
tua ajuda eu disse mais coisas do que aquelas que trazia em mim. Tudo isso, a
nossa arte maiêutica diz que é vento e que não merece ser alimentado: se tu
tentares para diante conceber outros pensamentos e os conceberes, ficarás cheio
de coisas melhores graças a esta discussão, e se ficares vazio não embaraçarás
os que frequentares, serás mais doce porque serás sábio bastante para não
acreditares que sabes aquilo que não sabes. É só isso o que a minha arte pode
fazer e mais nada [isto é, não te posso ensinar nada]. Quanto à arte dos
partos, a minha mãe e eu recebemo-la do deus [a fonte da fecundidade], ela para as mulheres e
eu para os jovens de alma generosa e para todos os que são belos” (210b-d).
Ora, o que o deus dá às mulheres é conceber crianças e aos jovens pensamentos
verdadeiros.
43. Com efeito, entre as parteiras, “nenhuma faz o
parto doutras mulheres enquanto ela própria for capaz de conceber e de dar à
luz, elas são exercem este ofício quando já não podem ter filhos. [...] elas
conhecem melhor do que as outras se uma mulher está ou não grávida [...] podem,
por meio de drogas e de encantamentos, acordar nelas as dores de parto e diminui-las
à vontade, fazer parir as que têm dificuldade em se libertarem, e mesmo
provocar o aborto do feto, se acharem que é o adequado [...] Sabem também que
mulher copular com qual homem para se terem as crianças mais perfeitas [...]
Assim é o ofício das parteiras. É inferior ao meu. Com efeito acontece às
mulheres dar à luz por vezes quimeras (eidolas, imagens, fantasmas) e por vezes verdades (alêthina), o que não é fácil de reconhecer. Se tal lhes
acontecesse, o mais belo trabalho das parteiras seria o de distinguir o
verdadeiro do falso” (149b-150a). “A minha arte de parteiro compreende portanto
todas as funções que cumprem as parteiras; mas difere do delas em que liberta
os homens e não as mulheres e em que vigia as almas e não os corpos. Mas a
vantagem principal da minha arte é a de ser capaz de discernir em qualquer
situação se o pensamento (dianoia) do jovem dá à luz um eidolon ou uma falsidade ou se está fecundo do verdadeiro”. Trata-se da questão da
possibilidade do erro (e da mentira) que virá mais adiante e no Sofista. “Aliás tenho em comum com as parteiras que
também sou estéril em sabedoria (agonos eimi sophias), e a censura que me fazem frequentemente de
interrogar os outros sem nunca me declarar sobre nada, porque não tenho em mim
nenhuma sabedoria, é uma censura que não falta à verdade. E a razão é esta: é
que o deus obriga-me a fazer o parto (maieuesthai) dos outros, mas não me
permitiu gerar” (150b-c).
44. Dantes, a alma recordava-se do que tinha
conhecido fora do corpo, quando, ‘separada’, contemplava as Formas ideais; a
virtude era gerada na alma pela contemplação do Belo nele mesmo (§ 24) através
do amor dos rapazes, cujo desejo era ‘sublimado’ para além do amor dos corpos.
Agora, desaparecida a reminiscência, Sócrates como parteiro substitui Sócrates
como amante. Portanto ele não é o pai, ele não gera. O pai – da virtude no Banquete, aqui dos discursos belos e verdadeiros – é a
alma que dá à luz, o que significa que a palavra ‘pai’ é aqui o masculino da
palavra ‘mãe’, se se pode dizer (“a alma é um corpo de mulher” é o lindo título
dum livro de Giulia Sissa que me foi muito útil), no sentido em que ele ocupa o
lugar da que está a ter uma criança: é ele, a sua alma, que dá à luz, ele é o
pai do seu discurso ou pensamento. Na descrição da tarefa das parteiras, só se
fala dela e da mãe, nunca do pai, que saiu da cena nove meses antes[56].
Aqui também não há um análogo do ‘pai’ que tivesse fecundado a alma deste
pai-mãe. A contemplação das Formas ideais da primeiro platonismo não é substituída
por nada nesta metafórica: tratar-se-ia, creio, da (maravilhosa) experiência de
pensar[57].
Mas que quer a parteira quer Sócrates sejam retirados, estéreis, do processo da
herança respectiva (ela da casa, ele da escola) para que ele possa efectuar-se
melhor, isso assinala que se trata dum processo que releva dos deuses: a
fecundidade. “Eu não sou nada
sábio e não posso apresentar nenhuma descoberta (eurêma) que seja nascida (genonos) filha (ekgonon) da minha alma. Mas os que se ligam a mim, ainda
que alguns pareçam inicialmente completamente ignorantes, fazem todos, durante
o tempo em que me frequentam, se o deus o permite, progressos maravilhosos, não
apenas na avaliação delas mas também na dos outros. E é claro como o dia que
eles nunca aprenderam nada de mim e que foram eles que encontraram neles e
deram à luz muitas coisas belas. Se eles pariram (maieias), o deus e eu somos a causa (aitios)” (150c-d). É certo que o não saber de Sócrates
implica que ele esteja lá, mas de maneira a que ele saiba, que a sua
intervenção, necessária, não releva da mestria, do domínio. Há uma aporia: os
dois são precisos, o deus e o mestre humano. Sócrates vê a prova disso naqueles
que o deixam antes de estarem prontos, “desconhecendo a minha assistência e
atribuindo-se a eles mesmos a razão dos seus progressos sem me terem em conta”
(150d-e), indo para maus mestres, abortaram de todos os germes que levavam;
tendo voltado, o deus não permite que alguns sejam recebidos. Em toda esta
maiêutica, parece tratar-se da qualidade do mestre, dada a alta qualidade do que é discutido. “Os que se ligam (sungignomenoi) a mim assemelham-se ainda nesse ponto às
mulheres que dão à luz: ficam entregues às dores e estão noite e dia cheios de
inquietações (aporias) mais
vivas do que as delas. Ora a minha arte é capaz de as acordar e de as fazer
cessar” (151b). As aporias do saber produzem as dores de parto das almas que o
buscam.
45. Como estas coisas se passavam na Academia, não
podemos deixar de perguntar, perplexos pela nossa vez, dada a nossa experiência
de ensino que não é sempre gratificante. Quando ela o é, “lembra-te meu amigo,
que eu próprio não sei nem me aproprio de nada disso, que nesse aspecto sou
estéril, que sou teu parteiro e que, nesse sentido, recorro aos encantamentos
[pedagógicos?] e sirvo-te as opiniões de cada sábio para que tu lhes tomes o
gosto até que, graças à minha ajuda, tenhas dado à luz a tua própria opinião.
Então examiná-la-ei para saber se é só vento ou se é um produto de bom quilate”
(157d). O que é que é proposto aqui? Um programa para a Academia? A maneira de
Platão considerar o ensino, pretendendo que nunca se ensina de si mesmo,
pense-se o que se pensar, que o papel da escola é o de propor os saberes
aceites no seu tempo (as opiniões de cada sábio) e de avaliar em seguida o
quilate dos discursos de cada estudante, de examinar em suma as suas
performances de forma singular? Ou, pelo contrário, em vez de ser uma pedagogia
generalizável, tratar-se-ia duma maneira de compreender o papel histórico de
Sócrates – único, fundador, dir-se-ia – de oferecer a definição como um dispositivo
operatório decisivo que todavia dele mesmo não tem conteúdo de saber? Esta segunda
hipótese podia adequar-se, em certo sentido, à citação de Aristóteles que
tomámos como fio de leitura: ela serviria também a justificar de avanço que
Sócrates seja despedido se se trata com efeito duma viragem do pensamento na
escola que tem a ver com o estatuto dos eidê ‘definidos’.
A ciência das coisas deste mundo
46. Em que é que consiste então esta viragem? Trata-se dum deslocamento da
questão, da problemática: pode haver uma ciência, um saber organizado sobre as
coisas deste mundo? Traça-se um novo estaleiro do saber que Aristóteles
desenvolverá, retomando – e renovando-o, pela sua maneira de jogar com a
definição e com as lógicas argumentativas que ela tornou possíveis,
nomeadamente o uso das dicotomias no Sofista e no Político – a tradição das filosofias da phusis. O acento não se porá já na esfera (espiritual,
ética) do divino: o estatuto predominante da Forma ideal do Bem – “o mais alto
conhecimento, a que as outras virtudes vão buscar a sua utilidade e as suas
vantagens” (República 504c),
que os filósofos, chegados à maturidade, contemplarão (idem, 540a) –
tornar-se-á “a causa da mistura e do nascimento” (Filebo 27b), mistura da “inteligência e da admirável
sabedoria, ordenando e gerindo o conjunto das coisas” (idem, 28d), “a alma real
e o intelecto real de Zeus, formados pela virtude da causas”, que, nos discursos
mais míticos advêm “o autor e pai” e “piloto” do mundo (Politico 273b-c), o demiurgo divino do Timeu.
47. Depois da ilustração da
maiêutica, o Teeteto volta à
questão inicial: o que é a ciência? (151d), o epistêmê, tanto o que nós chamamos filosofia como ciência,
e já a geometria, do que Teodoro é testemunha, pois o que ele ensina é ciência
(146c). Com efeito, este coloca as estabilidades geométricas no horizonte do
conjunto do diálogo, elas não serão compatíveis nem com Heraclito nem com
Parménides. Como pode haver uma ciência – definição de eidê estáveis – de coisas múltiplas e que mudam?
Teeteto dá três respostas, uma de cada vez, que são discutidas longamente
(sobretudo a primeira: a ciência é sensação) e finalmente rejeitadas. É contra
os defensores do primado do movimento, “todas as coisas se movem” (181c), que
se põe a objecção: se “nada é em si como si mesmo (auto kath’auto)” (152d), “se tudo se move, não se pode nomear
nada, se o branco está sempre em movimento para outra cor, não há nome de
cores, cada vez que se fala, a coisa escapa” (182d); menos ainda se poderá
definir seja o que for, não haverá portanto ciência possível. Será preciso
provar que “ver e saber não são a mesma coisa” (163e-164b), fazer Protágoras
confessar que “não se é a medida duma coisa que não se aprendeu” (171c), mas
conceder-lhe que cada humano é a medida das coisas no que diz respeito ao
quente, ao seco, ao doce, etc., isto é as sensações fora do discurso, mas não o
é para se curar a si mesmo (172a). Consegue-se assim provar que o que ‘é’ ou
‘não é’, semelhança ou dissemelhança, identidade e diferença, unidade, par e
ímpar, etc., são ‘coisas’ discernidas pela própria alma por ela própria (autê
di’autês hê psuchê), que portanto
a alma entende ela própria algumas coisas (ser, belo e feio, bom e mau, aquelas
que se comparam umas com as outras para lhes examinar a ousia, o ‘ser’[58])
através das faculdades do corpo para os outros: por exemplo, a dureza, moleza
pelo tacto, mas a sua ousia, a
sua contrariedade e a ousia
dela, é a alma que as compara e distingue (185c-186b). Algumas desde o
nascimento que são entendidas pelos humanos e pelos animais, outras só
dificilmente e após longos estudos, condição para ter a sorte de chegar à
verdade: portanto a ciência não está nas impressões (pathêmasin) mas nos raciocínios (sullogismô) sobre elas, que é por onde se vai à ousia e à verdade (186b-d). Estes silogismos supõem
definições que dizem a estabilidade do “auto kath’auto” (das ousiai, motivo que parece substituir os eidê) que há que garantir contra os heraclitianos, “os defensores do fluxo (tous
rheontas)” (181a) – discutir com
eles é como com furiosos” (179e) – sem todavia cair no imobilismo atribuído aos
parmenidianos, segundo os quais “tudo é um (hen panta esti) e é colocado estavelmente em si mesmo (auto
en autô) sem que haja região em
que se mover” (180e). Os argumentos destes não são discutidos: é certo que eles
estão mais perto da estabilidade desejada, mas a sua recusa de considerar o
movimento tornaria também a ciência impossível.
48. Este balancear entre Heraclito e
Parménides, entre o movimento e o repouso (imóvel), será deslindado claramente
no Sofista mas aí a questão já
não será a da ciência, como se o impasse do Teeteto sobre a definição desta levasse a retomar de
outra forma uma das suas últimas questões: como é que se forma em nós uma
opinião falsa? (187d), apesar da afirmação de Sócrates de que “não se pode
saber o que é a opinião falsa antes de saber o que é a ciência” (200c). Ora, de
passagem, Platão sugeriu a contradição de Protágoras: porquê fazer-se pagar
para ensinar aos outros, “se cada um forma sozinho as suas opiniões e se essas
são sempre justas e verdadeiras [...], para quê serem obrigados a frequentarem
a escola?” (161d-e); da mesma maneira, que sejam precisos muitos “trabalhos e
estudos” para os raciocínios da ciência (186c) torna implícito que é a escola
dele que é necessária. Tudo se passa pois como se o deslocamento do Teeteto para o Sofista seja o da questão da ciência para a daqueles que
a põem ou antes a negam com “mudança [...] do alto para o baixo” (Sofista 242c). Além do questionamento surgido dos debates
com o jovem Aristóteles, é também por causa dos sofistas, a quem se quer fazer
a guerra no terreno deles, e não apenas depreciá-los do alto (idem, 216c):
tem-se portanto que pensar também as coisas do mundo, a sua geração.
49. Vejamos muito brevemente a
segunda parte do Parménides que saltámos atrás. A questão do Um e do Múltiplo[59]
é decisiva no debate sobre a viragem, muito próxima da do Imobilismo e do
Movimento que domina o Teeteto e o Sofista (onde a questão
do Um servirá de ponto de partida para o “parricídio”). É provável que estas 8
hipóteses sejam (im)possibilidades lógicas a respeito da ciência. Pode-se
pensar que a primeira série de 4 hipóteses (o Um existe) corresponda ao
platonismo e a segunda (o Um não existe) à sua critica pelo jovem Aristóteles[60].
O conjunto seria um exercício de critica dialéctica para quem quer que queira
tomar parte no debate que grassa na Academia. Tratar-se-á de reatar o discurso
com o ser terrestre, do dizer-(que)-pensa-o-ser parmenidiano deslocado para o
sublunar. O um e o ser, o todo e as partes, o outro, o semelhante e o não
semelhante, são “géneros”, categoria que vai dominar todos estes textos,
enquanto que não se falará mais do justo nem do belo nem do bom: os Eidê, enquanto Formas ideais, não desaparecem, é certo,
mas tornam-se ‘espécies’ lógicas, subordinadas aos géneros (Filebo e Timeu). Os géneros (genos: nascimento, família, linhagem, raça, geração) são
categorias dum pensamento (logos,
dianoia) que pensa a multiplicidade
das coisas do mundo, submetidas ao nascimento e à morte, ao tempo e ao
movimento, à geração em suma[61].
50. Em relação com o questionamento
inconclusivo sobre a possibilidade da ciência do Teeteto, desdobra-se aqui de maneira muito ampla o leque
das 8 (im)possibilidades de ciência, entre Parménides e o Um (ou Imobilismo) e
Heraclito e o Múltiplo (ou Movimento), sem haver geómetras na cena, à diferença
dos outros diálogos da época. Eis um resumo: a) duas impossibilidades totais,
incompreensíveis, as hipóteses III e IX; b) duas ou três impossibilidades do
lado de Parménides, as hipóteses I e VI (V?); uma ou duas impossibilidades do
lado de Heraclito, as hipóteses VIII (e V?); d) três possibilidades duma certa
estabilidade dos eidê autê kath’autê: d1) sem relação às coisas múltiplas, apenas relações entre
eles, a hipótese II ; d2) os eidê substancializados do platonismo, a hipótese IV, d3) uma espécie de eidê de pensamento dessubstancializados (que se diriam
quase heideggerianos), a que está mais perto de Aristóteles, já que sem
separação enquanto tal, a hipótese VI.
O retorno ao discurso e a descoberta da alteridade
51. Vamos então ao Sofista onde a viragem encontrará o seu desenlace. Algumas
observações sobre o quadro do diálogo, cuja importância temos várias vezes
percebido noutros diálogos. Ele é colocado após o Parménides que é citado (217c, § 36) e do Teeteto (personagem que continua a ocupar o lugar daquele
que é interrogado). No lugar do que conduz o questionamento, um Estrangeiro
anónimo do círculo de Parménides e de Zenão: ruptura com Parménides, mas na
continuidade, como se diz, já que se trata dum Eleata a conduzir as coisas, com
a marca clássica em Platão de, quando há inovação, invocar a divindade (“é um
deus da refutação?”), os filósofos são divinos, “eles olham do alto a vida dos
que estão em baixo” (concepção ‘altiva’ da filosofia). Deixa-se de se falar em
maiêutica, que parece substituída por uma argumentação de índole escolar dita
refutação e pelo novo método da divisão em partes (meros). É algo que é novo em Platão, ele começa por
exemplificar com a “classificação” da pesca à linha (221b). É a primeira vez
que encontramos Platão a ‘analisar’ coisas do mundo, sem relação, parece, com
as Formas ideais do platonismo; se estas relevam da definição, parecem
substituídas pela forma geométrica da dicotomia, de cortar em duas partes (ou
metades) que são classificadas em “espécies” (eidê), em classes, e de excluir um dos dois termos.
Sem mistura portanto, antes do mesmo e do outro. Como se a mistura fosse, senão
o regresso da definição ao contexto donde ela arrancara o definido, pelo menos
o retorno do eidos como
pensamento, retorno aos entes (um e múltiplos), depois da critica da separação.
52. A questão da ciência é posta
através daqueles que se reclamam dela: o que é que ensinam os sofistas? As
coisas divinas e as visíveis, a geração a o ser de todas (as coisas), as leis e os negócios públicos, as artes e cada
uma delas (232c-d); são verdadeiros concorrentes da Academia, ou é a Academia
que lhes veio fazer concorrência buscando a ciência das coisas do mundo? Não se
poderá decidir, mas segundo Platão a ciência deles é de opinião sobre todas (as
coisas), não a verdadeira (233c). E aí está a aporia: como é que se pode falar
das coisas sem dizer verdade? Falar ou opinar falsamente pode realmente ser sem
contradição? (236e-237a). Para poder chegar a uma ciência das coisas do mundo,
Platão deslocou a questão do Teeteto, o que é a ciência? para a da possibilidade da falsidade, que em Parménides
consistia em falar do não-ser: “esta asserção implica a audaciosa suposição de
que o não-ser existe, porque de outra maneira o falso não poderia ser” (237a).
Tratar-se-ia de “dizer ou pensar o próprio não-ser segundo ele próprio (to
mê on auto kath’auto)” (238c), de
o dizer ou pensar enquanto eidos: eis o fracasso inicial, é dele que se terá de sair.
53. Para o conseguir, Platão põe uma
questão impensável para o seu platonismo anterior, que detestava as imagens
como cópias de cópias, como vivos mortos (§ 31). A imagem é um outro (heteron), semelhante ao verdadeiro (239d-240a). O que
está em questão é que entre coisas semelhantes, encontra-se um eidos comum; mas se se tratar dum original e da sua
cópia, não verdadeira, pintada, em imagem, em suma um retrato? será uma
possibilidade de não-ser através do outro. Este ‘tal’ (ti) é o quê? Não é verdadeiro, mas semelhante.
Contrário? Não existe? De certa maneira, o retrato, realmente uma imagem,
existe, não-ser (ouk on)
chamado imagem (eikona);
portanto um certo (ti) entrelaçado
do não-ser ao ser (tô onti). O
jogo far-se-á entre duas formas gramaticais gregas de negação, entre ouk, ‘não’ que se opõe, e mê, ‘não’ mais suave (em latim, diferença que pode
ser equivalente a aut e vel, em francês entre ‘non’ e ‘ne pas’)[62].
Portanto o não-ser existe duma certa maneira. Ora, a imagem introduziu a noção
de outro, outro do que aquilo
que a coisa é (o retrato da Sophia é a Sophia, sem ser ela mesma em pessoa). Tratar-se-á
em seguida de passar ao discurso e ao pensamento. Isso só se pode fazer com
violência, um parricídio, ou uma loucura, uma reviravolta de alto a baixo. O parricídio (patraloian)[63]:
“provar com violência que o não-ser (doravante : to mê on, e não mais ouk on) é dalguma maneira e que o ser não é de de certa
maneira”, condição para poder falar de discursos falsos, de simulacros, de
imagens, de imitações, de aparências (241d-e). “Sou inexperiente para uma refutação
assim [...] tenho medo de que após esta confissão, me tomes por um louco,
vendo-me eu próprio a mudar de alto a baixo” (242a-b). É aqui que há ruptura,
com Parménides, é certo (já que em consequência da sua refutação da teoria
‘substancialista’ do platonismo, baseada na oposição ser / não-ser), mas
retomando com ele de outra maneira (é por isso que não podia ser Sócrates a
conduzir a argumentação): trata-se, em suma, da sua ‘destruição’ (mudar de alto
a baixo) – em sentido heideggeriano –, que se faz tendo em conta o ‘ser e
não-ser’ da linguagem que nomeia e define, segundo o dizer-(que)-pensa-o-ser
parmenidiano, jogado agora nas coisas deste mundo (contra Parménides pois). Com
efeito, após evocação de várias doutrinas dos Antigos, já não se sabe o que é o
não-ser e também não o ser (243b-c), faz-se pois tábua rasa, um pouco à maneira
do inicial ‘saber que não sabe’ socrático, tudo na filosofia é a retomar. Se
não há senão um ser, um e ser, são dois nomes para o único (tõ auto)? É desrazoável dizer que tal nome é (hôs
estin onoma ti); chega-se à
questão da pintura: a imagem existe? o nome existe? Tem que ter alguma
existência, não ‘real’ como a das coisas: “colocar o nome como o outro (heteron) da coisa, é dizer (que há) dois em algum sítio
(que são) tais” (244c-d). É assim que, como há pouco com a imagem, o heteron entra em cena com o nome e logo a seguir o mesmo
(tauton). Ora, o nome, como
a imagem, é outro e mesmo do que a coisa nomeada, mas, à diferença da imagem, ele também o é de
outras coisas nomeadas com o mesmo nome. As quais, visto que têm o mesmo nome, tornam-se susceptíveis de serem
definidas: era o que o Teeteto buscava no fundo, estabilidades susceptíveis de ciência[64].
“Colocar o nome como o mesmo (tauton) que a coisa (autô), é
necessariamente dizer que ele (é) o nome de nada, ou então o nome dum nome, de
nada de ente (on)” (244d), o
que significa que o nome não é nada sem a coisa, que é nada de coisa. A sua
função de introduzir o outro tendo sido cumprida, o nome desaparece da
discussão que continua em torno das categorias do Parménides. Um pouco adiante, a questão da ciência – “conhecer
ou ser conhecido” (248d), “o que é idêntico a si pode existir sem a
estabilidade (chôris staseôs,
sem o repouso)?” (249c) – é colocada à maneira do Teeteto: há que recusar a imobilidade universal (do um ou
de eidê múltiplos) e o
movimento do ser em todos os sentidos. Para que a ciência seja possível, há que
recusar tanto Heraclito como Parménides, o movimento ou, em alternativa, o
repouso, já que nenum deles permite a ciência: é necessário, golpe de génio,
ambos ao mesmo tempo! Para não “abolir a ciência, o pensamento, o intelecto”,
“é prciso imitar as crianças que desejam os dois ao mesmo tempos, reconhecer
tudo o que é imóvel e tudo o que de move, dizer o ser e o todo juntos”
(249c-d). Eis pois o Teeteto conseguido:
nem Heraclito ou o movimento nem Parménides ou o repouso, mas ambos em conjunto. O que implica trazer o céu dos eidê, das Formas ideais, à terra da phusis, da geração, ultrapassar essa separação.
54. Parte-se de novo assim do
movimento e do repouso ao mesmo tempo: “[...] ao dizer que os dois (movimento e repouso) e cada um
existem igualmente [...] coloca-se o ser na alma (to on en tê psuchê) como uma terceira (coisa) acrescentada aos dois
outros, [...] outro (heteron)
do que eles” (250a-c). Portanto pensar[65]
o movimento e o repouso implica acrescentar-lhes o ser, é isso a ciência; eis
pois que volta o heteron, após
a imagem e o nome, agora com o pensamento da alma: trata-se pois de Parménides
(o dizer-(que)-pensa-o-ser) contra o Parménides do platonismo (a separação ser
/ não-ser), este deslocado para as coisas do mundo da geração e da corrupção.
Os eidê não são ser, mas
pensamento, discurso. Com efeito, é este que dá vários nomes à mesma coisa; ela é una, nós pomo-la como
múltipla (251a-b). Nas coisas (unas) misturam-se (múltiplas) – sujeito e
predicado, na linguagem da escola – aquilo que, ao nível do discurso que as
define, não se mistura (os eidê, revindicação de sempre daquele que, discípulo de Sócrates, introduziu a
definição em filosofia: as Formas ideais não se misturam). Assim as letras combinam-se,
umas e não as outras, para formar as palavras[66],
e também os sons musicais. Há artes para saber estas misturas, assim como é
necessária uma ciência para discernir os géneros (ta genê), os que se misturam e os que não o fazem, a
ciências das (pessoas) livres, a filosofia (253b-c). É a primeira vez que os
géneros intervêm no debate que lhes diz respeito, é o que permite passar das
‘coisas’ à ciência. E “[...] será que nos sucedeu que, à procura do sofista,
encontrámos primeiro a filosofia?” (253c) Era o que procurava o Teeteto.
55. O debate estabelece, como se
sabe, os cinco géneros: o ente-ser (to on auto), o repouso (stasis), o movimento (kinêsis), o mesmo (tauton) e o outro (thauteron). Repouso e movimento não se misturam, mas o ser
com eles sim; cada um é outro dos outros e o mesmo de si; o mesmo não é o mesmo
que o ser; depois o outro: entre os entes (tôn autôn), uns eles mesmos segundo eles mesmos (auta
kath’auta), outros relativos a
outros (prós alla); acontece
que (sumbebêken)[67]
tudo o que é outro não é o que é senão pela sua relação necessária a outra
coisa (245b-255d). O quinto género, o outro, penetra em todos os outros; pois
cada um é outro do que os outros não pela sua natureza mas por participar da
ideia do outro (metechein tês ideas tês thauterou) (255d-e) e, como ele é outro do que o ser, ele é
não-ser (mê on) (256d). Em
resumo, o movimento lógico foi o seguinte: Parménides teria pensado a relação
ser / não-ser em termos de exclusão, tal como o movimento e o repouso se excluem, ou é um ou é o outro (ou grego, aut latino, non francês);
aqui, ao contrário, pensa-se essa relação em termos de alteridade, segundo mesmo e outro (mê, vel, ne ... pas). “A natureza
das espécies comporta uma comunidade recíproca” (257a), pois está-se agora no
domínio do pensamento, do pensamento da geração (genos) terrestre que pede que os eidê que lhe dizem respeito – já que os vivos mudam –
comuniquem entre eles. Tudo se passa como se o modelo da geração dos discursos
em Fedro II e no Teeteto tivesse conseguido contaminar a solidão celeste:
celeste e terrestre ao mesmo tempo, já não separados; segundo o Sofista, todas as outras doutrinas separariam, seja para
o alto, seja para o baixo, incluindo o platonismo (“os amigos das Ideias”,
248a-b). Dir-se-ia Aristóteles a falar! A conclusão do debate dos géneros que
se misturam (258e-259b), ao mesmo tempo difícil e belo (259c), é que a ciência
é possível: não se deve “separar tudo de tudo”, já que “desligar cada (coisa)
de todas (as outras) é abolir todos os discursos, pois que é pelo
entrelaçamento recíproco dos eidôn que o discurso nos nasceu” (259d-e). Com efeito, esta batalha era oportuna
“para (assegurar) ao logos ser
entre (um d)os géneros dos nossos entes. Se estivéssemos privados dele, do mais
importante, então estaríamos privados da filosofia” (260a). O discurso
encontrou com efeito o seu lugar entre as coisas de que Platão fala: ele não
é elas, sendo no entanto, duma
certa maneira, tal como as imagens, o mesmo que elas. Assim o
dizer-(que)-pensa-o-ser de Parménides foi restabelecido, se dizer se pode, em
relação às coisas deste mundo. Mesmidade do dizer e do ser: “o discurso, desde que seja um, é necessariament
sobre qualquer coisa, é impossível que ele seja sobre nada” (262e), e no
entanto acaba-se de estabelecer a possibilidade do não-ser: este ‘nada’ era o
não-ser de Parménides. E também mesmidade do discurso e do pensamento: “pensamento e discurso são a mesma coisa, só que
o discurso interior que a alma tem sem voz consigo mesma recebeu o nome
especial de pensamento (dianoia) [...] mas a corrente sonora que sai da boca recebeu o nome de discurso (logos)” (263e).
Pensar a geração
56. Os dois livros que se seguem, o Político
e o Filebo, aplicam o novo método descoberto pelo Sofista, segundo o novo paradigma da mistura: um deles
entre a coragem e a moderação, o outro entre a sabedoria e o prazer, assim como
estabelecem uma hierarquia das “ciências” nos domínios respectivos, da politica
e da ética. Em certo sentido, é uma confirmação da citação de Aristóteles que
pusemos como fio de leitura (§ 3): Platão não se dedicou com a definição senão
às questões politicas e éticas (e não às da phusis). Mas há um mas.
57. Encontra-se no Filebo, retomada em seguida pelo Timeu, uma tentativa de pensar os seres vivos, a sua
geração: esta até aqui serviu de modelo de pensamento mas sem ter sido pensada
ela mesma. A apresentação da aporia parece sugerir que Sócrates, regressado ao
seu posto de antes do Parménides, retoma a posição do platonismo, sob forma de controvérsia, quiçá didáctica:
“contesta-se se eles (o humano um, o boi um, o belo um, o bem um) são mónadas[68] verdadeiramente existentes (ousas), pois como é que cada uma sempre[69]
una ela mesma (mian ekastên ousan aei tên autên), subtraída ao nascimento e à morte, pode ser
assegurada desta mesma unidade nas coisas de geração em número infinito, quer dispersa e multiplicada,
quer inteiramente cortada de si mesma – inadmissível[70]
–, mesma e una ao mesmo tempo no um e no muitos (tauta kai hen hama en heni
kai polla). São estas questões
que causam aporias” (15b-c).
Ora, logo a seguir, recorda-se o Sofista: “um e múltiplo sob os discursos (hupo logôn) em cada dizer” (15d), seguido do exemplo das
letras e da “voz que sai da nossa boca (que) é una e ao mesmo tempo indefinida
em número por todos e por cada um” (17b). Um novo pensamento ocorre a
Sócrates-Platão: “presente dos deuses aos humanos, [...] os Antigos que viviam
mais perto dos deuses do que nós transmitiram-nos esta tradição: todas as
coisas ditas existir (provêm) do um e do múltiplo, tendo nelas o limite e o
ilimitado (peras kai apeirian)
unidos naturalmente (sumphuton)” (16c-d, ver também 20b e 25c); é preciso portanto procurar sempre em
cada uma uma forma ideal (mian idean) [...] depois dois, três ou mais [...], mas também quantas [espécies] ela
contém entre o um e o ilimitado e não passar sem mais do um ao ilimitado”
(16d-17a). Exemplos do ilimitado: os que têm mais e menos, excesso e falta; se há limite, medida, deixam de
ser o que são; critério: é ilimitado tudo o que é susceptível de devir mais ou
menos, susceptível de ‘demais’ (24a-25a), como quente – frio, seco – húmido
(estes quatro da medicina grega), o mais ou menos abundante, rápido ou lento,
grande ou pequeno, forte e manso (para as acções, entre violento e tranquilo).
Quanto ao limitado, é o que
releva dos números e da medida (o igual, o dobro, o que torna comensuráveis os
contrários, introduzindo neles o número[71]).
Chega-se enfim à proposição que tenta compreender o nascimento (das coisas),
como é que elas vêm ao ser: “penso que há nos entes ilimitado e limite,
ponhamos duas espécies, e a terceira (que) da sua mistura juntos (faz) um. Um
quarto: a causa da mistura mútua dos dois primeiros” (23c-d)[72].
Ou ainda: “o ilimitado, o limite, a essência (ousian) misturada e nascida dos outros dois, a causa da
mistura e do nascimento”, esta última tendo sido dita demiurgo (27b).
58. O Timeu retoma e melhora esta proposta: deixando cair a
mistura, substitui o ilimitado por chora (lugar, espaço, região) e a causa–demiurgo[73]
pelo modelo reproduzido, um eidos. Agora já só há três géneros: “o que nasce (to gignomenon), aquilo em que ele nasce (to en ô gignetai) e o a partir de quê cresce (phuetai) o que nasce” (50d). É certo que o sentido mais
geral de gignetai é ‘devir’,
no sentido de ‘vir a um outro estado’, de ‘chegar’ uma das formas (no aoristo)
do verbo ‘ser’ (einai); não
impede que, tratando-se de pessoas, – e é esse o sentido original da palavra
(em Homero) – ele significa ‘nascer’. Aliás, o uso de phuetai assinala que se trata aqui sobretudo dos seres
vivos, cujas mudanças consistem antes de mais no nascimento e no crescimento. È
com efeito assim que o texto prossegue logo a seguir: “alem disso, pode-se
justamente assimilar o que recebe (dechomenon) à mãe, o a partir de quê ao pai, a natureza da
mistura dos dois à criança” (ibidem). O que significa que quando Platão chegou,
retomando o seu primeiro ensaio do Filebo, a pensar o que Heidegger chamava “a vinda ao ser”, pensou-a como
nascimento e crescimento do que nasceu. Seria interessante seguir a utilização
da palavra genos nele,
nomeadamente antes da viragem, já que ele parece aqui muito bem ajustado, no
sentido donde vem a palavra ‘genealogia’: esta é a forma social de delimitar a
fecundidade dos humanos, de situar e de guiar o crescimento de cada um no seio
da sociedade. Aqui Platão ‘generalizaria’ a palavra, isto é, delimitaria
(definiria) o caos do que há que pensar, como os entes do mesmo nome e
definidos segundo o mesmo eidos vêm ao ser. A geração foi
nele durante muito tempo modelo do pensamento, para as coisasa nascidas dos
seus Eidê eternos, o Sol filho
do Bem, o discurso filho da alma que o dá à luz, chega enfim ao cabo, à própria
geração. Ora, o Timeu dá-se
como o acabamento do discurso de Platão, a sua cosmogonia, o seu “discurso
sobre o universo” (92c). Discurso portanto sobre o começo, mas que a um momento
dado do seu percurso (48a-b), é Derrida quem o assinala[74],
se torna um começo antes do começo, onde, além dos “dois eidê que tínhamos distinguido” (48e) – e será o pai e
o filho –, será necessário um terceiro género, chôra, nem ente nem ser, o que recebe eidê e dá lugar a entes. Na interpretação de Derrida,
estes dois eidê seriam o
inteligível e o sensível, a binaridade oposicional do platonismo, chora, o intervalo, o espaçamento não originário antes
da origem, e sobretudo não a ‘mãe’, ‘nutridora’, com a qual se costuma no
entanto fazer a comparação. Quer dizer que, sempre segundo Derrida, este último
texto, após a viragem, guardaria o esquema pai-filho que serviu de modelo de pensamento ao platonismo:
apesar do exemplo, ele não teria introduzido o feminino. A não ser que se pense
que se trata da vinda ao ser de cada um dos entes terrestres, e que entre essas
vindas, os nascimentos dos vivos, e singularmente os dos humanos, não são
apenas um caso no meio dos outros (as produções das artes), os seus nascimentos
são a vinda ao ser por excelência[75];
então talvez se possa dizer que este “chôra não é a ‘mãe’, ‘nutridora’” seja a ler também
como denegação, que ela também o é, o texto explicita-o: portanto não e sim,
tratar-se-ia já de filosofia e de phusis, já perto de Aristóteles. Porque é provavelmente impossível decidir nesta viragem (do) (após o) platonismo. Este é a separação (chôrismos) entre os Eidê, as Formas
ideais que só elas são, e as suas reproduções terrestres que nascem e morrem,
portanto não são. A viragem, ligada às discussões com o jovem Aristóteles,
contradiz a separação, conduz à abordagem da geração (Filebo e Timeu). Difícil de decidir que ainda é platonismo (separação do pai e do filho)
ou que já não é, chora não
permitindo mais essa separação entre ser do um e não-ser do outro[76].
Parecer-me-ia que a leitura de Derrida, restringida ao texto do Timeu[77], decide pelo platonismo. Pode ser. Sim ou não?
Sim e não?
A abertura do espaço para a Physica de Aristóteles
59. Ao ler estas tentativas de pensar
a geração, não se pode deixar de pensar em Aristóteles, discípulo de Platão. É
claro que haverá já algo do hulê e do eidos segundo o logos n’ “o ilimitado e o limitado” do Filebo, em “chora e o a partir de quê cresce o que nasce” (o eidos do platonismo ou o seu herdeiro), como confirma o
exemplo do ouro, que recebe muitas figuras diferentes do artista (dir-se-á ‘é
ouro’, como o equivalente ‘bronze’, exemplo de hulê na Physica, II 192b) “como a natureza recebe todos os corpos” (Timeu, 50c)[78].
Mas sem relação, em Platão, com o movimento (as mudanças dos vivos nomeadamente)
que está no coração da Physica: Platão, matemático, teve sem dúvida sempre má relação com o tempo. Que
Aristóteles tenha guardado o mesmo nome de ousia assinala que nele não há já separação entre substância (a coisa una) e essência (o seu eidos comum com outras coisas unas), entre as ‘coisas’
da phusis e as suas essências.
O que me importa aqui – recordando que Heidegger escreveu que “a Physica de Aristóteles é, em retracção, e por essa razão
nunca suficientemente atravessado pelo pensamento, o livro de fundo da
filosofia ocidental” – não é todavia a oposição entre o discípulo e o mestre,
mas o inverso. A leitura, há alguns anos, dos primeiros livros da Physica tinha-me deixado o sentimento duma admiração
imensa pelo génio inventor do grande Estagirita. Acabo de compreender que
Platão fez uma boa parte do trabalho relevando da invenção da definição, foi
esse trabalho que Aristóteles – ainda que com a sua contribuição para ele, para
a viragem do pensamento do mestre – encontrou na Academia, que lhe permitiu a
invenção da sua ousia physica,
assim como das suas descobertas por disciplinas. Pode-se com efeito sublinhar
que no Timeu o discurso sobre
os corpos, as sensações, os órgãos dos humanos, circulação e nutrição,
respiração, etc., falando-se por vezes do Mesmo e do Outro, esboça o que a
Physica fará: Platão ocupou-se portanto pela primeira vez destas questões, tornadas possíveis pelo Sofista. Auguste Diès escreveu o seguinte: “quando se vê
que este segundo livro (dos Homoia, de Speusipo[79])
e a História dos Animais de
Aristóteles enumeram frequentemente as mesmas classes, quase todas as mesmas
espécies, não se poderá desconsiderar tudo o que estes exercícios dialécticos
da Academia prepararam tanto de matéria como de método para a ciência aristotélica”[80].
60. Terá havido assim três épocas
dos escritos de Platão: o período socrático, o platonismo e o que se poderá
designar como pós-platonismo, uma espécie de pré-aristotelismo. Foi o segundo
que sobreviveu, que é sempre designado com o nome de Platão.
Platão e Sócrates
61. Para terminar, há que reavaliar o
lugar de Sócrates no texto assinado por Platão. Para começar, que a
demonstração da imortalidade da alma tenha sido desenvolvida, por uma espécie
de argumentação ‘existencial’, digamos, no dia da morte de Sócrates, quer dizer
como se se tratasse antes de mais da demonstração da imortalidade da alma
virtuosa e filosófica de Sócrates, isso implica a convicção filosófica de
Platão de que a alma dele está definitivamente com os deuses, que ela não
voltará a tomar corpo. A trilogia (típica do teatro trágico) da Apologia, o Criton e Fédon I, condenação
politica injusta, recusa de fuga clandestina e execução aceite, pode ser
comparado, mutatis mutandis,
com a narrativa da paixão de Cristo e à sua ressurreição e divinização pelos
que o seguiram: nos dois casos, trata-se da proclamação da grande qualidade
humana, sobre-humana, do que eles fizeram, como viveram, ensino duma nova
maneira de fazer, duma nova maneira de viver, mais do que de novos saberes ou
doutrinas. Poder-se-ia então compreender o que chamei pseudo-epigrafia um pouco
à semelhança da maneira como a ‘prática – saber’ de Jesus foi a fonte do
cristianismo. Sócrates seria em Platão, que se quer seu discípulo fiel,
Sócrates porta-voz que ultrapassa Platão, como se falasse dum lugar quase divino,
se se tratasse duma quase revelação em sentido grego. Talvez que, mais do que
um laço entre uma busca da virtude (da santidade, em categorias judaicas e
cristãs) e do saber, haja que falar da sua unidade prévia, acentuada pela
demonstração da imortalidade da alma feita a partir da condenação à morte do
justo e sábio Sócrates. Foi essa viragem do que chamei pós-platonismo que veio
a dissociar as duas dimensões. Tratar-se-ia de compreender que Sócrates terá
sido para Platão – que já conhecera Heraclito por intermédio das lições de
Crátilo e conheceu depois Pitágoras e Parménides – uma espécie de revelação de
algo de totalmente novo, esta busca da virtude politica pelo jogo dialógico
para as definições. Foi a partir
dele, começando por escrever os seus diálogos, que ele empreendeu a continuação
dessa busca, procura mais do que saber.
62. Eis então a minha ficçãozinha. No
tribunal, Platão, amigo e discípulo, está presente enquanto testemunha da
‘vida’ de Sócrates. Mas não está na prisão – “Platão, creio, estava doente” (Fédon, 59b) –, não é testemunha da sua morte, este
desenlace fá-lo doente, não pode testemunhar da partida, o seu pensamento não
parte, continuará na escrita dele, Platão. Pense-se no que pode ter sido para
um ateniense a leitura da República em que Sócrates propõe – num ‘eu’ permanente, caso único em Platão – a
reforma da cidade: uma espécie de desforra do veredicto que o condenou, que um
ateniense lê uma dezena de anos após que a cidade o tenha condenado à morte,
esse texto em que Sócrates diz constantemente ‘eu’ para pedir a reforma total
da cidade, das suas leis[81].
O pensamento dum ausente daqui, do lugar do corpo, que se passeia por céus e
terra (Teeteto, 173e, § 39),
retrato de Platão aliás mais do que de Sócrates. Ora ele ausenta-se por sua vez
da sua escrita, Platão, quando se o lê é Sócrates que se encontra, ligados para
sempre, inseparáveis, o filósofo e o seu discípulo querido (como outrora
Parménides e Zenão visitando Atenas). O regresso de Sócrates no Filebo, cujo nome evoca a philia, a amizade, o amor da sabedoria: ele regressa
para ficarem ligados de novo, após todo este processo de intelectualização
escolar da philia-sophias,
para religar os prazeres puros da alma e a sabedoria, o amor dos rapazes como
entrada para a sabedoria, na filosofia, para que nunca se possa decidir entre
mestre e discípulo, entre quem e quem, entre Sócrates e Platão, entre Platão e
Sócrates. Reforçar nos começos da grande aventura que, de maneira geral, não se
pode nunca, na obra de quem quer que seja, dissociar, a favor ou contra, o que
reenvia aos seus mestres, ou até a toda a gente com quem ele dialogou, entre
escuta e fala.
63. Sem ser o pai do platonismo – já
que ele não ‘sabia’, era estéril – Sócrates terá sido o parteiro de Platão.
Aparentemente Aristóteles conseguiu provocar uma nova viragem em Platão, o que
seria o reverso da maiêutica, o discípulo que não obedece ao mestre, o parido
que se impõe ao parteiro. Esse golpe foi merecido, já que Platão também o tinha
feito ao seu parteiro. Nestes partos entre homens, nunca se pode estar certo
dos papeis de cada um.
Colares, Junho / Outubro de 2005
[1] No início do diálogo do Parménides, suposto passar-se antes do
nascimento de Platão, encontra-se uma ficção sobre a transmissão deste diálogo
sem escola nem escrita, por alguém que na sua juventude o tinha decorado dum
testemunha e agora o conta, alguém que não se dedica já à filosofia, que voltou
à equitação, aos negócios das casas. Ora, trata-se de Antifão, meio irmão de Platão
(também são citados os dois irmãos que são interlocutores da República) : confirma-se o autor da
ficção e evocam-se, uma após a outra, as duas formas de herança.
[2] Dever-se-ia reflectir sobre o
facto de muitos diálogos de Platão são ‘contados’, “cuja origem ou a primeira
enunciação parece sempre retransmitida (relayée)” (Derrida, Chora, p. 65), “cada narrativa sendo o
receptáculo doutra”,
“lugar de acolhimento ou de alojamento” (idem, p. 75). Eis uma possibilidade,
que não impede outras: tratar-se-ia do jogo do texto ‘gnosiológico’, enquanto
intemporal, fora do aqui e do agora, que ele, Platão, está inventando;
deslocaria os contextos de enunciação para os desvalorizar, para esconder as
suas marcas singulares de escrita.
[3] É a justificação que o Fedro dá para a escrita : ajudar
mais tarde o que escreveu (adiante, § 31). Assim o personagem Euclides no
prólogo do Teeteto: “logo que cheguei a casa, pus por escrito as minhas recordações e redigi
em seguida tudo o que me lembrava e, sempre que ia a Atenas, interrogava
Sócrates de novo sobre aquilo de que me não lembrava e voltando aqui, corrigia
as minhas notas, de forma que tenho essa conversa [o texto do Teeteto] escrita quase inteiramente”
(143a).
[4] Sigo aqui a lição de G. Colli, Nature
aime se cacher
(ed. L’éclat, 1994, original italiano de 1948), sobre as três edições do Fédon (respectivamente Fédon I, 57a-69e e 114c-118 depois Fédon
II, 69e-95e e
107b-114c e Fédon III, 95e-107b) e as duas de Fedro (Fedro I, 227-257b e Fedro II, 257b-279c), repartições apoiadas em análises
estilísticas cerradas. A Apologia, o Críton e o Fédon I, formam uma espécie de trilogia trágica (mas com lição
anti-trágica, que o virtuoso tem que aceitar, desejando a morte), como o
próprio Platão dá a entender: “para mim, é neste instante que o destino me
chama, como diria um herói de tragédia”, Fédon I, 115a. Para os concursos, os
poetas compunham três tragédias em torno duma casa, a regra sendo, segundo a Poética de Aristóteles (4.1449b12-13),
que a acção deveria durar apenas um dia (durante o qual se contaria tudo o que
aconteceu antes), regra que Platão observa. Parece que serão os três primeiros
textos que Platão terá escrito. Para as citações de Platão, servir-nos-emos da
tradução de Chambry (Garnier Flammarion, Baccou para a República), por vezes com pequenas correcções
no sentido da literalidade.
[5] Bem diferentemente, a
psicanálise de Freud, a destruição do substancialismo por Heidegger, a
desconstrução de Derrida, todos herdaram desta maiêutica socrática: desfazer-se
do aprendido na cidade como condição de acesso a um saber libertador.
[6] Os novos interlocutores são dois
irmãos de Platão, Glauco e Adimanto. É porque Platão vai defender a abolição
das casas (da propriedade privada, do casamento, da paternidade e da maternidade)
que ele quer gente da sua própria casa como testemunhas? Pode-se também
observar que, sem nenhuma espécie de prólogo, é o próprio Sócrates que conta
logo do início este longo diálogo, incluindo o seu quadro inicial, usando o
‘eu’ e sem nenhum interlocutor a quem conte, como sucede, por exemplo, no Protágoras e no Eutidemo, Ora, parece que fora o caso
particular da Apologia, apenas procede desta maneira o Carmide, onde se trata dum primo de
Platão (e dum tio, Critias, que volta com Timeu nos diálogos que têm os seus
nomes). Neste caso, pode-se suspeitar que o seu jovem primo seja uma maneira
discreta de Platão contar o seu próprio encontro com o mestre. A questão é:
qual seria a razão desta enunciação em ‘eu’? Ela talvez sublinhe a
pseudo-epigrafia (o ‘eu’ de Sócrates é também o ‘eu’ de Platão, que está a
afastar-se do mestre), quiçá sob forma de denegação, quer porque ainda não
pensou em substitui-lo, quer ao invés porque aqui – na grande tese de Platão –
não haja que o fazer, antes ‘reforçar’ o ‘eu’ do mestre (a tal denegação).
[7] Método que, assinala Baccou
detalhadamente (nota 65, p. 394), é seguida sistematicamente nos livros II-IV e
VIII-IX, mas não nos outros.
[8] Os livros V-VII são chamados “a
grande digressão”, sem que, tanto quanto eu saiba, se tenha dado pela costura.
No entanto, segundo o testemunho de Aulu-Gelle, Xenofontes teria conhecido duas
edições, que ele teria refutado. Houve portanto primeiro uma edição do livro I,
entre os outros textos socráticos sobre as virtudes, de seguida uma primeira
edição da República, compreendendo os livros I-IV e VIII-IX, onde era questão da comunidade de
mulheres sem ser argumentada, o que teria tido consequências desagradáveis,
nomeadamente uma comedia de Aristófanes, brincando com esta doutrina inverosímil,
o que terá levado Platão a responder de maneira argumentada, na segunda edição,
a nossa, juntando-lhe a teoria das Formas ideais. Sem que Colli fale delas, as
costuras entre Fedro I e Fedro II e entre Fédon I e II são
feitas de maneira que não se dá por elas, enquanto que a que há entre Fédon
II e Fédon
III é um belo
artifício literário: “estas palavras de Sócrates foram seguidas dum silêncio
que durou muito tempo. Ele próprio estava visivelmente absorvido pelo que tinha
sido dito durante a conversa e a maior parte de nós também. No entanto, Cebes e
Símias conversavam entre eles em voz baixa e Sócrates, tendo dado por isso,
dirigiu-se-lhes [...]” (84c), esta frase final sendo semelhante à da costura
entre os livros IV e V da República.
[9] “A cidade de que traçámos os
planos [...] situa-se em discurso, já que não exista que eu saiba em lugar
nenhum da terra. Mas há talvez um paradigma dela no céu para quel quiser olhálo
e olhando-o residir nele. De resto não importa qe essa cidade exista ou deva
existir um dia: é às suas leis, só dela e de mais nenhuma, que o Sábio
conformará a sua conduta” (529a-b).
[10] O admirável livro de G. Colli, Nature
aime se cacher,
critica os seus predecessores de terem privilegiado a dimensão intelectual em
detrimento do que chama ‘mística’, e que tinha ilustrado nos chamados
Pré-socráticos, mas por sua vez, fiel demais a Nietzsche porventura, ele reduz
esta dimensão intelectual a uma decadência do velho Platão, lamentando que o
racionalismo (e o pessimismo religioso e o ascetismo romântico) tenha(m) ganho
ao misticismo dionisíaco (não religioso). “Nasce então a ciência, como sistema
de saber destacado da vida: o conhecimento é um fim em si, apenas subordinado a
uma unidade construtiva” (p. 313). A própria preocupação com o politico e com a
paideia, com
a educação dos jovens em vista da vida politica, seria tardia e faria parte da
decadência (p. 270). É pena todavia que as suas análises se teçam, ao invés de
Nietzsche, nos conceitos da descendência europeia desse intelectualismo censurado,
da oposição sujeito / objecto, númeno / fenómeno.
[11] A dificuldade principal das nossas leituras destes textos
é que nós dependemos deles nas nossas categorias, seja para os aceitar ou para
os criticar. É impossível lê-los como se fôssemos leitores do 4º século antes
de Cristo, de tal maneira o debate Platão / Aristóteles, ao longo da história
do cristianismo e depois da Europa, foi ‘fundador’ da nossa modernidade tanto
filosófica como cientifica.
[12] Exemplo da antiguidade destes
textos, Criton 47d faz alusão à alma sem a citar, o que obriga o comentador a
explicitá-lo na nota 43, p. 184.
[14] Esta palavra grega é traduzida
habitualmente ou por Forma ou por Ideia, a primeira dizendo nas nossas línguas
a relação quase metafórica à visão (eidos, de eidein, ver), a segunda a ancestralidade
platónica das ‘ideias’ europeias. Ambas as conotações devendo ser guardadas,
opto por Forma ideal.
[15] O sonho chega e impõe-se ao que
dorme, insiste com ele, são as imagens que têm a iniciativa, não o que sonha.
Trata-se pois dum pensamento que não é de Sócrates, que lhe é imposto pela sua
repetição. Nietzsche dirá que “o pensamento vem quando ele quer, não quando eu quero” (Além do Bem e do Mal, § 17).
[16] Sem que Platão se reclame dele;
tanto quanto sei, o nome de Parménides não é citado por Platão antes do texto
que tem o seu nome, e depois pelo Teeteto e pelo Sofista. Mas o 1º e o 3º destes textos
seriam incompreensíveis se não tivesse havido decisão relativa a Parménides em
torno das Formas ideais: porque é que isso não foi confessado?
[17] Que os nomes sejam insuficientes, é uma evidência :
todos, mesmos as crianças, se servem correntemente dos nomes das coisas sem
conhecerem as ‘essências’ das coisas nomeadas. No entanto, a definição é feita
também de nomes e ela é essencial à aprendizagem que ele tenta nos jovens sem o
conseguir.
[18] Um pouco mais longe: “já que tu designas essas coisas
múltiplas [figuras] com um só nome” (74d).
[19] Como Diotima. Trata-se duma 3ª hipótese a acrescentar às
do § 4 : quando Sócrates invoca uma experiência deste tipo, sonho ou
revelação ‘de origem divina’, é Platão que assinala mais um ponto de
afastamento do mestre, o que aliás reforça a dúvida sobre esta hipótese como
vinda dele.
[20] Saber é oida : tenho sob os meus olhos e conservo-o, no meu
pensamento ; conjuntivo eidô ; aoristo eidon, infinitivo : idein, o qual serve de aoristo a oraô, ver, observar, examinar ;
ver em pensamento, considerar : eidos, aspecto, forma, aparência, rosto ; carácter
próprio duma pessoa ou coisa, sua natureza ; grupo com os mesmos
caracteres, espécie. Oida e eidos são pois da mesma família
semântica, como se em português ‘saber’ tivesse relação com ‘ver’ e ‘rosto’.
[21] “nem ciência nem ignorância” (Banquete 202a), escapando assim à
oposição parmenidiana entre o ser (a ciência) e o não ser (a ignorância), República 477d-478).
[23] Aristóteles fará da alma a ‘forma’ do ser vivo, mas
também princípio dos sentidos corporais: a linguagem, fazendo parte do logos, permanece o obstáculo escondido
dos Europeus, parece, até Nietzsche e Heidegger.
[24] “O facto de colocar o ‘bem’ como um ‘fim’ introduz a
concepção piramidal do mundo, que marca uma viragem decisiva na história da
filosofia. […] o real diferencia-se num múltiplo não coexistindo já num mesmo
plano como xunon (contínuo), mas disposto sobre uma escala de valores morais subindo de baixo
para o alto” (Colli, p. 285). Para o Um mais tarde, acrescente-se: tratar-se-ia
da viragem para a ontoteologia.
[25] Retomada do que acaba de ser lido no Banquete, que nele era contado com
grandeza e agora citado sem mais: parece clara a precedência dum sobre a outra.
[26] É a definição que separa os
contrários, nomeadamente o bem e o mal (§ 28).
[27] Atenção Filebo: não será novo, tratar-se-á de
pensar o que já tinha sido dito havia muito tempo.
[28] O dia como semelhante à presença
do eidos em
Parménides 131b
(objecção de Sócrates que Parménides não aceita).
[29] Motivo que Aristóteles
criticará: a ideia de humano não gera os humanos, as ideias só geram ideias, os
humanos só geram humanos. Seria preciso ver se este motivo aparece noutro lado
em Platão, não encontrei, como não encontrei também esta critica aristotélica
que ouvi ou li não sei onde nem quando.
[30] O Bem antes das coisas do mundo,
o lugar aberto no gnosiológico grego para o Deus da Bíblia, quando as duas
escritas se encontrarem em Alexandria para dar origem à teologia cristã (Orígenes,
após Filão).
[32] É a problemática do sofrimento do justo no
livro bíblico de Job (do
final do V século a. J.C. talvez), que termina num impasse ; dois ou três
séculos mais tarde encontra-se (no 2 Maccabeus 7, 9-36 et 12, 43-46 nomeadamente) entre os Judeus,
que não têm a noção de alma, um testemuho da crença na ressurreição dos mortos
(recebida dos Persas provavelmente). Em Platão, a problemática recebe como solução
a recompensa duma vida feliz da alma além da morte, que triunfarára no
cristianismo (a ressurreição ficando num canto do Credo, sem insistência teológica).
[35] Relevemos a distinção entre palavras de uso corrente,
como ‘ferro’ e ‘dinheiro’, sobre os quais todos estão de acordo, e palavras
como ‘justo’ e ‘bom’, que relevam da ética, sobre as quais as opiniões são
divididas (263a), as únicas a pôr problemas de persuasão pelo discurso.
[36] A escrita ‘dentro’ da alma, denegada assim a oposição
dentro / fora que governa esta subordinação da escrita, que serve para a
excluir.
[37] É a este esquema que obedece o prólogo do evangelho de João,
o Logos de
Deus do primeiro versículo é dito Filho no último.
[38] “Desprezado ou injuriado injustamente, ele
precisa sempre do auxílio do seu pai, incapaz de se defender sozinho [o que é o
‘pai’? o que se retirou, como após a cópula e que tem que conservar a sua
criança enquanto ela é pequena; aqui é como o órfão [equivalente na carta de
Paulo aos Gálatas, http://phenomenologiehistorique.blogspot.com/2010/10/la-lettre-aux-galates.html com pai e herdeiro órfão]. Como
o lavrador que trata a sério das suas sementes, para as ver crescer oito
meses mais tarde, aquele que tem o saber do justo e do belo e do bom [...] não
escreverá seriamente na água [inútil, provérbio grego] semeando com tinta pela
pena discursos incapazes de se defenderem, incapazes de ensinarem
suficientemente em verdade. [...] É melhor plantar e semear com a ciência numa
alma, segundo as regras da dialéctica, discursos capazes de se defenderem a si
próprios e àquele que os semeou e que, em vez de permanecerem estéreis, dão uma
semente que dará nascimento noutras almas a outros discursos, que assegurarão à
semente sempre renovada a imortalidade, e tornarão os seus depositários tão felizes
quanto se pode ser na terra” (275d-277a).
[39] Anunciado pelo discurso de Diótima, foi esta viragem que
incomodou fortemente Colli. Mas intelectual e espiritual não se separam em
Platão, trata-se mais duma questão de acentuação das questões. Ppr exemplo:
“quando a opinião realmente verdadeira e firme sobre o belo, o justo, o bem, e
os seus contrários, se produz nas almas, digo que é o divino que nasce numa
raça de demónios” (Politico, 309c). Estas figuras sobrenaturais só foram demonizadas
na luta dos cristãos contra os ‘falsos deuses’, como diziam.
[40] Referindo que tem que ir saber da acusação em tribunal
(que o condenará), o que faz com que o Eutifron, que começa nesse lugar e
momento, sendo um texto da primeira época de Platão, deveria ter-se passado
depois do Teeteto e antes do Sofista! Não há que fazer destas encenações fictícias um critério rígido. Nesse
texto mais antigo, o motivo deste detalhe biográfico deverá ser o tema do
dialogo, a piedade para com os deuses e a impiedade de que Sócrates foi acusado
(Eutifron,
3b).
[41] Lidas do ponto de vista de Platão; passarão assim à
posteridade, o que, na sequência de Nietzsche, Colli contesta, como por seu
lado Heidegger.
[43] Esta hipótese de leitura tem como consequência o
adiamento da redacção destes textos, talvez a partir do Fedro II, para 362, para dar tempo a
Aristóteles de amadurecer um pouco, antes da última viagem de Platão (361-360).
Ou então seria depois do regresso?
[44] Seria que Platão não teria compreendido o papel da
Parménides no seu próprio pensamento antes das discussões com Aristóteles? Uma
hipótese mais verosímil, seria a de que Platão afastou-se de Heraclito e
Crátilo sem se encostar ao seu oposto, mas namorando a imutabilidade do Ser
para as suas Formas ideais; as discussões com Aristóteles levaram-no a
explicitar mais claramente a sua relação com o Eleata.
[46] O que parece anunciar a ‘ideia’
europeia clássica, que já se percebe em Occam, no seu ‘nome mental’, crítica
nominalista do realismo medieval, antes de ser a descoberta de Descartes.
[48] Li este contra-argumento algures faz tempo e infelizmente
não consegui encontrá-lo, apesar do recurso a uma colega especialista.
[49] ‘Concepção’ esta que será anterior a Platão: pensar é
antes de mais, pensar a geração, ou as suas consequências (como diz ‘concepção’, o nosso
‘conceito’). Ora, é o que eu procuro aqui (relação com o ser-se pai do seu
discurso, que encontrámos no Fedro II), questão que encontrei nos trabalhos de Teresa Joaquim
sobre a relação entre as duas ‘concepções’, a das crianças e a dos conceitos.
“Geral (général): o que convém a vários indivíduos (ou grupos, de que cada um é
considerado como um todo indivisível), oposto a singular, individual,
particular” (Lalande). Na origem, genos opõe a família como um todo a cada um dos seus
membros.
[50] Aristóteles também pensou que o seu Primeiro Motor não
conhecia nada fora dele, como seis séculos mais tarde o Um de Plotino.
[51] A interrogação da possibilidade do discurso falso no Sofista implica restituir a linguagem (e
as imagens) como sendo alguma coisa sem ser realmente uma coisa.
[52] É por elas serem pensadas como ‘substanciais’ que se cria
‘separação’ em relação às coisas correspondentes. Parece que as três objecções
de Sócrates para salvas as (suas) Formas ideais já as desubstancializaria,
apesar do anacronismo duma tal afirmação, já que foi Aristóteles quem criou a
categoria traduzida em latim por ‘substantia’. Creio no entanto que o
aristotelismo medieval fez uma amálgama entre os Eidê de Platão e as ousiai de Aristóteles. O que avanço
aqui, teria a vantagem de ajudar a compreender que a desontologização europeia
(já em Newton, Kant, Nietzsche, Husserl, Heidegger e Derrida) terá começado
muito cedo na história da filosofia, mesmo antes do Liceu, já na própria
Academia. Mas o Deus criador cristão terá pesado fortemente na substancialização.
[53] « [...] a um homem que
pensa que fala com justiça, [...] é singularmente difícil fazer mudar de
opinião” (135a).
[54] Apesar de ela ter sido colocada com o exemplo da
geometria! Mas é certo que a questão das virtudes quase desaparece também
destes textos intelectualizados (referências em Parménides 130b-c e Teeteto 176b-c).
[56] Excepto no saber copulá-los, ciência das parteiras;
também Sócrates reenvia a Pródicos ou a outros professores os jovens que não
estão em estado de gravidez.
[57] Nem sequer o deus do parteiro, que tem relação com o
parto. Se a experiência de pensar, numa alma imortal que irá ter com os deuses
quando for filosoficamente virtuosa, que está portanto conotada com o mundo
divino, fosse, segundo Platão, devida directamente ao deus, por certo que ele o
teria dito de maneira mais ou menos clara. Teria sido mais fácil a comparação
com Paulo.
[59] A discussão ultrapassa a minha competência e os meus
interesses filosóficos. Há uma análise e recapitulação das principais posições
dos especialistas em Francesco Fronterotta, « ‘Que feras-tu, Socrate, de la
philosophie ?’ L’un et les plusieurs dans l’exercice dialectique du Parménide de Platon », Revue de Métaphysique et
de Morale, nº 3,
juillet-septembre de 2000, pp. 273-299.
[60] A viragem não implica que Platão tenha abandonado a
teoria das Formas ideais, como cheguei a suspeitar durante a minha leitura, ela
diz respeito à mudança de problemática, das Formas ideais para as coisas
terrestres. O interesse dos diálogos é justamente de trocar argumentos que se
opõem: que por vezes eles fiquem sem consenso sugere que esses argumentos não
eram necessariamente adoptados pelo próprio Platão. Pode-se dizer que o
Estrangeiro do Sofista seria o porta-voz da critica do jovem Aristóteles e que Sócrates regressa
no Filebo
(prolongado pelo Timeu) defender uma visão do platonismo compatível com a admissão do
“parricídio”: a “alteridade” como um dos “géneros” no mundo sublunar.
[61] Mas sucede que se encontre genos em vez de eidos e vice-versa. Provavelmente genos em Platão diz respeito à geração
mas, ao contrario de eidos, permanece um motivo vago, de tal maneira que possa ser
utilizado como eidos. Ou será que genos é o rasto da concepção própria do platonismo, das Formas ideais gerando as
suas coisas respectivas?
[62] Um exemplo em português seria o ‘negro’ como ‘não, ouk’ do branco, e o vermelho como
‘não, mê’ do
branco: o primeiro diz o contrário, coloca o negro fora da paleta das cores, o
segundo diz a diferença entre cores da paleta. Duma pessoa ou dum prato de gastronomia,
podemos dizer ‘não gosto’ porque a odeio, porque não o consigo comer, ou ‘não
gosto’ porque me é indiferente, porque gosto doutros pratos.
[63] Por duas vezes Parménides é dito ‘pai’ : genealogia
transposta para a relação escolar, mestre e discípulo. Isso nunca foi dito de
Sócrates, ou amante ou parteiro. É a segunda vez que Platão põe em questão a
lógica do patriarcado, a primeira em politica, propondo o argumento feminista
na República
(450c-457b), agora em filosofia.
[64] De facto, é sobre os nomes que se exercem definições,
isso não é todavia tido em conta por Platão, seria renegar o Crátilo.
[66] Mais adiante, são o nome o verbo que se misturam para
formar a frase ((262c-d). Platão põe assim o dedo nas duas articulações da
linguagem neste argumentário do Sofista, sintoma da importância que o tipo de ser do
discurso, do logos, tem na viragem do diálogo. Mas não podia compreender que se trata, não de
duas articulações (ele nem sequer refere uma à outra), mas duma dupla
articulação (A. Martinet).
[67] Já se encontra algo da
terminologia da Physica de Aristóteles: ele meditou este debate em que Platão lhe oferece a ousia (auta kath’auta) e o acidente (to sumbebêkon).
[68] A ciência: sobre o ser (to on), o ‘real’ (to ontôs) e o que é sempre o mesmo por
natureza (pephukos) (58a). O eidos eterno permanece portanto o domínio da ciência, mas será que o ‘por
natureza’ indica a viragem, já que a natureza é o que nasce e morre?
Encontra-se uma oposição entre “os seres eternos (aei, de sempre)” e “as (coisas) que
devêm (ta gignomena) e devirão e devieram” (59a), e depois “o firme (bebaion), o puro, o verdadeiro, o
íntegro (eilikrines, simples, puro, sem mistura), os que são sempre segundo eles mesmos (ta
aei kata ta auta), da mesma maneira (hôsautôs), sem mistura nenhuma (ameikotata echonta)” (59c). Platão continua
portanto a pensá-los sem mistura, por definição! A mistura só diz respeito às
coisas cá de baixo, a viragem terá sido o ocupar-se delas contra Parménides,
que elas deixem de ser ditas não-ser apesar da geração.
[69] Põe-se aqui um pequeno problema
de tradução: aei, é ‘sempre’, ‘sem cessar’, corresponde à intemporalidade do texto
gnosiológico que define os eidê, as essências, por assim dizer. Estas, em Platão, são
celestes, traduz-se habitualmente aei por eterno+, o que para o platonismo é justo. E agora,
após a viragem, há que guardar ‘eterno’ ou pôr apenas ‘sempre’? Decidi por este
último, com má consciência, pois não se pode decidir.
[71] Na música, é claro, quando os
sons excessivos (± graves, agudos, longos, breves) se tornam sinfonia.
[72] Parece ser do tipo ‘causa primeira’, o que restava da
Forma ideal do Bem. Importante para compreender como o cristianismo foi
absorvido por Platão com Orígenes.
[73] Que ocupa o lugar primordial na
formaççao do mundo. As duas questões de que parte o discurso do Timeu ilustram claramente a constância
de Platão: “Em que é que consiste o que existe sempre, sem ter tido nascimento?
Em que é que consiste o que devem sempre e nunca é? [...] tudo o que nasce
procede necessariamente duma causa [...] o mundo nasceu, tem uma causas [...]
difícil de encontrar [...] que teve os olhos postos no modelo eterno”
(27d-29a).
[75] A dizer verdade, há uma
comparação curiosa com Heidegger que me desmentiria para dar razão a Derrida: é
que o II Heidegger andou constantemente em torno da “vinda à presença” sem
nunca ter, que eu tenha dado por isso, referido o nascimento como o ‘exemplo’
mais importante. Filósofo que se preze não trabalha sobre ‘exemplos’! Assim sei
que não sou filósofo: só fui capaz de entender alguma coisa do Heidegger quando
percebi alguns exemplos em torno de Aristóteles.
[76] Por exemplo: “o que não é nem na
terra nem algures no céu não é nada” (52b) parece outorgar o ser tanto ao
celeste como ao terrestre; “eis o resumo do meu discurso: ser (on) e chora e geração são (einai), os três triplamente e nascidos
antes do céu” (52d), parece por seu lado distinguir o primeiro e o terceiro: chôra não teria papel nenhum na antiga
separação? O seu papel tem a ver com o fim desta? (difícil então que a ‘mãe’
não tenha a ver com esse papel).
[77] A continuação anunciada de Chora era pelo texto de Aristóteles:
porquê não foi levada a termo? Por falta de tempo, outras escritas mais urgentes?
Ou porque Aristóteles se furtou à linha começada?
[78] Aristóteles juntou à hulê e ao eidos a sterêsis (privação do eidos) para formar os três princípios
que tornaram possível de dizer e pensar a ousia e as suas mudanças (Physica, I, 190b30-191a23).
[79] Sobrinho de Platão que dirigiu a
Academia uma dezena de anos, após a morte do seu tio em 347.
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