quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

SÓCRATES E PLATÃO, Ensaio de leitura

O que se procurou nessa leitura foi perceber como se desenvolveu o platonismo, apareceram as Formas ideais e a imortalidade da alma, dando atenção para se dar conta do carácter cronológico desse desenvolvimento, a certos aspectos da retórica de Platão (sonhos, sinais do deus, substituição de Sócrates por outro - Diotima, Parménides, Estrangeiro do Sofista, etc -)em que se assinala coisas que Platão acrescenta ao seu Mestre. Vem-se à descoberta, a partir do texto  Parménides, de como o jovem Aristóteles chegado à Academia interferiu numa viragem do platonismo que lhe abrirá o caminho da sua Physica. Incrível!


Sócrates e Platão
A ruptura de Platão
Virtude e ciência, com fundo de erotismo
Os primeiros exercícios para o platonismo
A alma posta à prova pelo amor
O Sol filho do Bem
Que a alma é portanto imortal
A aporia da definição, operação de escrita
A viragem do platonismo
Sofrer a crítica de Parménides antes de o matar
O parteiro de almas
A ciência das coisas deste mundo
O retorno ao discurso e a descoberta da alteridade
Pensar a geração
A abertura do espaço para a Physica de Aristóteles
Platão e Sócrates


“[...] prestar uma atenção sistemática – o que tanto quanto sabemos nunca foi feito – à permanência dum esquema platónico que assigna a origem e o poder da palavra, precisamente do logos, à posição paterna. [...] o platonismo que instala toda a metafísica ocidental na sua conceptualidade, não escapa à generalidade deste constrangimento estrutural, ilustra-o mesmo com um brilho e uma subtileza incomparáveis” (Derrida, La pharmacie de Pla­ton in La Dissémination, p. 86).
“[…] este sentimento (pathos) que tu sentes, o espanto, pois a filosofia não tem absolutamente outra origem” (Teeteto 155d)


Não se trata dum texto de especialista, mas dum ensaio de alguém que tendo trabalhado em Filosofia da Linguagem e recorrido com alguma frequência a certos textos de Platão, nomeadamente ao Crátilo e ao Sofista, teve a curiosidade em final de vida de procurar saber como é que foram encontradas e compostas as coisas do platonismo, as Formas ideais eternas e a alma imortal, como é que as primeiras foram criticadas, que proximidade houve com Aristóteles, e por aí fora, sem querer saber de estar ou não a forçar portas bem abertas. Foi por ocasião dum ensaio de fenomenologia histórica sobre o cristianismo que a sua proximidade com a carta de Paulo aos Gálatas precipitou a questão (de que a leitura posterior de Romanos 1,4 beneficiou esplendidamente). Talvez não seja de desprezar à partida uma curiosidade assim.

  1. Tentou-se mostrar em Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida como a história do Ocidente releva de duas linhagens de herança. Por um lado, a que define qualquer sociedade, entre pai e filhos, pela phusis (natureza) grega ou basar (carne) hebraica: hereditariedade – assegurada, sabemos hoje, graças a um mecanismo biológico, o programa genético que implica nascimento e morte – e herança das casas que o pai, ao morrer, transmite, nessas sociedades ao seu filho macho mais velho. Por outro lado, a transmissão de textos escritos entre mestre e discípulo, por aprendizagem da leitura e da escrita por aqueles que abandonam as suas casas para se devotarem, por ‘vocação’, como se diz, aos exercícios espirituais e intelectuais da escola[1].
2. A escrita de Platão é um momento privilegiado do lançar-se, da destinação (em termos heideggerianos) deste movimento de tradição de textos na instituição escolar, que se revelou ter sido decisivo para a civilização moderna. Este movimento desenvolveu-se na margem das sociedades de casas (gregas, helenísticas, romanas, medievais, europeias). Tratar-se-á de ler o pensamento de Platão como ensaio de pensar esta tradição escolar através do único modelo de que ele dispunha, o da herança da filiação das casas, modelo que aliás ele começa por recusar para o poder transformar e assimilar.

Sócrates e Platão
3. Aristóteles caracteriza assim o que Sócrates fez: “Sócrates, que se votou ao estudo das virtudes éticas, foi o primeiro a procurar defini-las segundo o todo (horizesthai katholou). [...] Enquanto que Demócrito definiu o quente e o frio e os pitagóricos certas coisas (oportunidade, justiça, casamento, que eles reduziam a números), Sócrates, pelo contrário, procurava com razão to ti estin (literalmente, o tal [que ele] é), já que ele tentava raciocinar por silogismos, cujo princípio é o to ti estin; então, a habilidade dialéctica não era suficiente para buscar os contrários, mesmo sem o to ti estin, nem se não há uma ciência dos contrários. Duas coisas se podem reconhecer a Sócrates com justiça: a argumentação indutiva (t' epak­tikous lo­gous) e a definição segundo o todo (to horizesthai katholou). Estas duas coisas têm efectivamente relação aos princípios da ciência. Mas Sócrates não atribuía existência separada aos ‘segundo o todo’ e às definições (ta katholou ou chôrista epoiei oude tous horismous). Os seus sucessores, pelo contrário, separaram-nos e proclamaram ideas esses entes, de maneira tal que tiveram que admitir, pelas mesmas razões, que havia ideas daquilo que se enuncia segundo o todo [...]” (Metafísica, XIII, 1078b18-34, ver também I, 987a9-988a18). Esta citação oferece-nos um fio de leitura dos diálogos de Platão, discípulo de Sócrates, permitindo seguir as rupturas com o seu mestre, morto em 399, mas também compreender a fidelidade que ele lhe guarda.
4. Pode-se começar por propor, como hipótese (minimalista) de leitura, que a maneira como Platão coloca o seu mestre como ‘herói’ dos seus diálogos releva, em certo sentido, do fenómeno antigo de pseudo-epigrafia (em princípio, um texto escrito por alguém duma escola que o assina com o nome do seu fundador já falecido) que indica que ele se pretende um seu herdeiro, que ele procura transmitir o pensamento que com ele aprendeu: mesmo quando rompe em certos pontos, essas rupturas seriam exigências de ‘fidelidade’. Mas ele assinala apesar de tudo essas rupturas, deslocando Sócrates do seu papel de condutor do diálogo que devolve a Parménides, a um estrangeiro de Eleia, ou a Diótima (um outro sintoma de ruptura será proposto nos §§ 16 e 20). Acrescente-se uma outra hipótese que diz respeito ao quadro dado aos diálogos. A maior parte deles, com efeito, são diálogos entre Sócrates e um ou dois interlocutores, sem outras circunstâncias, ou muito poucas. O que sublinha o contraste com o quadro de alguns – Protágoras, Górgias, República e Banquete – com assistência abundante, em casa dum rico anfitrião. Eles são aliás relativamente contemporâneos uns dos outros. A minha hipótese parte de Chambry, a propósito do Górgias e da “violência dos seus ataques contra a retórica”: “Platão, escreve Chambry, acabava de fundar a Academia. Renunciara desde então à politica activa para se dedicar à filosofia. O Górgias foi o manifesto da nova escola. Tratava-se de atrair os jovens que a retórica atraía sozinha” (p. 160). Juntemos a este ‘manifesto’ o Protágoras: à maneira polémica do Górgias de marcar o contraste entre a ‘démarche’ filosófica e a dos retóricos sofistas (uma visa o bem, a outra o prazer da alma, em paralelo com a medicina e a cozinha para o bem e o prazer do corpo, 462d-465c), este novo dialogo, de maneira mais simpática mas igualmente contrastada, apresenta a questão chave da nova instituição de ensino dos jovens: pode-se, sim ou não, ensinar a virtude? O quadro destes quatro textos diria assim a ruptura com o quadro e a maneira socrática de fazer politica (voltaremos à questão a propósito da relaç~eo entre o I e o II livro da República): já não na agora, mas num espaço privado, retirado, onde haverá todavia bastante público tomando parte nos diálogos do mestre. Pois se a Academia deverá fazer concorrência a outros, como diz Chambry, é porque ela é uma instituição de aprendizagem com fim politico: ela deve ensinar jovens cidadãos que se tornarão homens políticos[2]. A questão socrática da aprendizagem da virtude alargar-se-á em consequência: à geometria, por exemplo num texto da mesma época, o Ménon. Mas este, como o Crátilo e o Fedro, volta ao quadro antigo de um ou dois interlocutores, como se se tratasse de textos de exercício de pensamento de certos pontos particulares, seja em vista dos textos mais ambiciosos do ponto de vista da composição da problemática – República e Banquete –, seja de retomar posteriormente as mesmas questões com novos argumentos, ou mesmo de critica de respostas antes asseguradas. Mas é também como se Platão redescobrisse a maneira socrática de dialogar, devido à exigência do próprio exercício de pensar, como se, à maneira do Teeteto, ele fosse levado a tematizar a maiêutica.
5. A ponta da fidelidade de Platão ao seu mestre seria a procurar no que Chambry diz a propósito do Hípias menor: “esta ideia fundamental do dialogo, que a ciência e a virtude se confundem, Platão guardá-la-á toda a sua vida” (GF, p. 61), o objectivo socrático, “que se votou ao estudo das virtudes éticas”, dizia Aristóteles, o seu discípulo não o renegou, nem mesmo quando a Academia o orienta para as questões de geometria e de ontologia, digamos em terminologia europeia. Pelo contrário, ver-se-á que são as questões de ética politica, as da paideia, da educação dos jovens, que o leva a alargar a problemática dos seus textos. Tudo se passa com efeito como se os primeiros diálogos de Platão fossem ‘reportagens’ bastante fieis da maneira de fazer de Sócrates, como se à noite, tendo voltado a casa, o jovem discípulo estudioso escrevesse um memorando[3], como sugere a Apologia, o Criton e o Fédon I[4]. Entre os primeiros textos ‘socráticos’ como se lhes chama com razão, dois parecem relevar da maiêutica, o Primeiro Alcibíades e o Cármides: vê-se o filósofo a conduzir o questionamento de maneira a que o jovem interlocutor se desembarace das suas opiniões e confesse a sua ignorância, como condição de poder em seguida procurar definir a virtude em questão (como mais tarde com o escravo de Ménon), tornando-se depois discípulos de Sócrates (enquanto que os dois interlocutores de Lísis são crianças ainda) pode-se pensar que o alvo da definição da virtude era suscitar a atenção intelectual para ela, tornando-se possível desenvolvê-la no discípulo quando este chega ele próprio a defini-la, a sua alma tendo assim acordado para ela. Os outros textos, pelo contrário, chamados anatrépicos (de anatropê, sublevação, destruição, ruína): diante adversários, por vezes sofistas, sempre adultos demasiado seguros das suas opiniões para poderem desfazer-se delas mesmo quando se confessam vencidos, o diálogo permanece na etapa preliminar, a tentativa de destruição das opiniões recebidas, da doxa, saber espalhado na cidade[5]; estes diálogos seriam, para dizer como Aristóteles, exercícios “de argumentação indutiva”, em que Sócrates “tentava raciocinar por silogismos”. Escritos provavelmente antes da Academia, eles terão sido muito úteis nela do ponto de vista pedagógico.

A ruptura de Platão
6. Platão tem 40 anos quando, em 388, uma dúzia de anos após a morte de Sócrates, funda a Academia; entretanto viajou muito – no Egipto e nas colónias gregas de África e Itália – e aprendeu noutras fontes. A ruptura, que implicará outras, é antes de mais a do método, já que o de Sócrates falhou: por um lado, é preciso muito tempo para educar jovens, não bastam simples ‘rendez-vous’ mais ou menos ocasionais; por outro, põe-se a questão da morte dos mestres, da continuidade da aprendizagem na geração seguinte. Tendo sido discípulo, Platão está a tornar-se mestre. Trata-se da questão da instituição da herança de Sócrates. Quando se sabe que a Academia, com um intervalo pelo meio, durou cerca de dez séculos, quando se sabe também a importância crescente da escola no Ocidente moderno, herdeira da Academia e do Liceu, percebe-se que não é uma questão menor, nem meramente administrativa, mas a questão do futuro da filosofia. Parece que ela constitui a trama da maior parte das problemáticas dos textos platónicos; depois, Aristóteles tendo dado a volta às suas respostas e desenvolvidos as suas questões de maneira a dar autonomia às diversas problemáticas, dir-se-ia que a relação entre o que há que aprender e a aprendizagem propriamente dita terá dissimulado a questão que esta representa, tornada rotina talvez durante séculos, em todo o caso uma questão menor face à nobreza das grandes questões do saber. Por exemplo, se a questão da aprendizagem é a da historicidade do saber, da sua ‘imortalidade histórica’, digamos, a questão da imortalidade da alma eclipsou-a. Em relação sem dúvida com o eclipse da questão da escrita, pela qual Derrida fez a sua entrada barulhenta em filosofia, na segunda metade dos anos 60.
7. A ruptura entre o antigo mestre e o novo assinala-se em vários sítios do corpus textual relativo à época da instituição da Academia, dois dentro deles sendo mais nítidos: a passagem do I livro ao II da República, o discurso de Diótima no Banquete (§ 19). Os dez livros da República, da mesma maneira que o Fédon e o Fedro segundo Colli (mas sem que este o assinale), não foram escritos e publicados duma só vez. Com efeito, desde que sejam procuradas, as marcas das rupturas são bem nítidas. Entre I e II: por um lado, mudam os interlocutores[6], por outro muda a problemática: passa-se da justiça enquanto virtude de cada um (problemática típica dos diálogos socráticos, com a piedade, a coragem, a sabedoria, a unidade das virtudes) à questão da cidade justa; e muda-se em consequência de método: primeiro buscar a natureza da justiça nas cidades e em seguida nas pessoas (II.369a)[7]. Estas mudanças são assinalados pela comparação com a visão das letras que mudam de escala, em que há que começar por ler as grandes antes das pequenas (368e). A costura literária é a maneira como o novo interlocutor, Glauco, resume o diálogo do livro I (II.368b-c), depois de Sócrates ter chamado “prelúdio” a esse diálogo (354c). Ora, encontra-se um artifício literário equivalente nos inícios do livro V e do livro VIII, num episódio em que o outro interlocutor, Adimanto desta vez, interrompe Sócrates e o interroga sobre a comunidade das mulheres e das crianças de que ele tinha falado bastante antes da interrupção (IV.449a-d), episódio que é recordado no início do livro VIII, após o resumo dos livros V-VII e da discussão que fora interrompida no final do livro IV (VIII.543a-544b) [8].
8. Trata-se portanto na primeira costura da passagem do questionamento socrático de ordem da ética, visando a dimensão politica mas sem se ocupar dela directamente, a um questionamento claramente politico, que se ocupa é certo também de ética e a visa em última análise, mas propondo uma mudança da cidade que teria deixado Sócrates estupefacto. Uma tal mudança parece ser o correlato da fundação da Academia. Tendo conhecido outras organizações sociais nas suas viagens e podido compará-las, Platão, continuando a ser o discípulo de Sócrates, mudou todavia de alvo: quer agora uma instituição capaz de mudar a cidade, que seja capaz de a pensar, de criar um novo e revolucionário paradigma, que talvez não exista senão no seu pensamento e dos seus discípulos[9].

Virtude e ciência, com fundo erótico
9. A Academia enquanto instituição de ensino não deixa de ter aporia já que à questão da possibilidade do ensino da virtude, Sócrates responde pela negativa. Para ser ensinada, ela tem que ser definida: ele bem pode multiplicar as tentativas de argumentação em torno de tal ou tal virtude, ou da sua unidade, sempre elas terminam pelo insucesso e pelo adiamento do questionamento. Ou então por uma resposta ‘teológica’, como na conclusão do Menon, segundo a qual “é claro que é por um favor divino (theia moira) que a virtude vem aos que a possuem” (100b). Ora, a instituição do ensino por Platão deve, sem dúvida nenhuma, poder ultrapassar esta aporia socrática: será esse o alvo da sua ontologia das Formas ideais, aonde leva a busca das definições, por um lado, mas também o desvelamento do como do conhecimento (a aprendizagem sendo impotente) pela reminiscência do que a alma soube outrora, quando pré-existia ao nascimento corporal.
10, Sem que, tanto quanto eu saiba, Platão tenha alguma vez assinalado, como Aristóteles o faz mais de uma vez, a invenção da definição por Sócrates, esta (ou a sua busca) conduz sempre o seu raciocínio, a sua demanda do epistêmê (saber, ciência); ora, que ele se aplique prioritariamente a definir virtudes, sem que nenhuma outra disciplina, nem sequer a geometria, passe antes delas, eis um índice muito claro do nó entre virtude e ciência em Platão, o que virá confirmar o lugar singular e proeminente na República III da Forma ideal do Bem. Sócrates e Platão, indissociáveis deste ponto de vista, são simultaneamente espirituais e intelectuais, sem que se possa pôr nenhuma dessas buscas acima da outra, tão separadas que elas são entre nós[10]. Mesmo se os textos onde transparece a critica do platonismo (a partir do Parménides, como veremos) privilegiam o intelectual, deixando o espiritual na penumbra.
11. Há todavia um outro aspecto em que eles são surpreendentes em relação aos nossos costumes, tanto intelectuais como espirituais: o quadro erótico dos debates pedagógicos, a respeito do amor dos rapazes belos, é o ponto de partida das buscas, como o Banquete teoriza. Poder-se-ia dizer que esses debates são o lugar do acordar dos desejos machos, ao começarem a tornar-se adultos, a beleza masculina parecendo ter um lugar próximo do da beleza feminina entre nós. São estes desejos – ‘sublimados’, digamos, no quadro do androceu – que Sócrates quereria ajudar a re-sublimar para o Belo, o Bem, o Justo, a Coragem, a Sabedoria, a Temperança. Mas ele não o saberia fazer com o seu saber, afirma por vezes que ignora o como dessa caminhada: por um lado, haverá que os definir, o Belo e as virtudes, para poder ensiná-los, mas por outro lado isso não servira de nada se não for feito em diálogo de despertar, porque a virtude deve nascer do jovem, é ele que deverá tornar-se virtuoso na sua alma. Se nos dermos conta do exemplo da aprendizagem da geometria pelo escravo de Menon – que compreenderá por si mesmo que o quadrado das quatro diagonais de quatro quadrados iguais justapostos é o dobro da área de cada um deles, mas somente após ter confessado a sua ignorância, após ter sido esvaziado das suas opiniões espontâneas –, esta compreensão jorra dele a um dado momento, na sequência das questões socráticas que lhe fornecem o saber necessário para chegar a essa conclusão. O ponto, qualquer professor tem experiência disso, é que o mestre nunca poderá estar seguro do que o seu discípulo aprenderá, compreenderá: frequentemente, uns conseguem, outros não. Ora, se isso sucede em geometria, plano em que o acordo posterior é fácil, bem mais difícil será no caso da virtude, aonde as opiniões estão muitas vezes em desacordo (como Sócrates constata algures) e se trata de suscitar a busca da virtude. Apesar do anacronismo, as nossas sociedades sendo tão diferentes dessa Atenas de outrora[11], parece fácil compreender a enormidade da tarefa de alguém que quer – de forma instituída, escolar – ensinar os jovens a tornarem-se ‘justos’, ou mesmo ‘santos’, à base de argumentos de razão. Era no entanto o primeiro alvo da Academia de Platão, do discípulo de Sócrates tornado mestre por sua vez.
12. O carácter desmedido da ambição explica sem dúvida também o da solução: o corpo é colocado como o obstáculo em que enlaçam todas as ‘vontades’ (envies) e todas as injustiças da cidade dos humanos. Eis uma citação das primeira redacção do Fédon, escrita certamente muito antes da fundação da Academia, na mesma época que a Apologia[12]. “[...] para a aquisição da ciência [do saber], o corpo é um obstáculo, se se o associa a esta busca [já que a visão e a audição não são exactos nem seguros] [...] é raciocinando que a alma ganha, se alguma vez o ganha, algum conhecimento das realidades [...] ele não raciocina nunca melhor do que quando nada a perturba [...] mandando passear o corpo, ela rompe tanto quanto pode, todo o comércio e todo o contacto com ele para tentar chegar ao real [...] há o justo nele mesmo (ti dikaion auto) [...] o belo e o bom [...] já viste alguma coisa deste género com os teus olhos? [...] a grandeza, a saúde, a força [...] abordar cada coisa, tanto quanto possível, só com o pensamento, sem admitir na sua reflexão nem a vista nem qualquer outro sentido [...] desembaraçado dos seus olhos e orelhas e, se se pode dizer, do seu corpo inteiro porque ele perturba a alma [...]” (Fédon I, 65 a-66 a); “[...] o corpo causa-nos mil dificuldades pela necessidade em que estamos de o alimentar; que além disso, nos venham doenças, ficamos entravados na nossa caça ao real. Ele enche-nos de amores, de desejos, de medos, de quimeras de toda a espécie, de inumeráveis disparates [...] de guerras, dissensões, batalhas, é só o corpo e os seus apetites que são a causa deles; porque só se faz a guerra para ajuntar riquezas [...] sem lazer para consagrar à filosofia [...] olhar só com a alma as próprias coisas [...] não teremos [...] a sabedoria senão após a nossa morte [...]. Enquanto estivermos vivos, o melhor meio, parece, para abordar o conhecimento, é não ter, enquanto possível, nenhum comércio nem comunhão com o corpo, excepto em caso de necessidade absoluta, não nos deixarmos contaminar com a sua natureza, e permanecer puros dessas manchas, até que o deus nos livre delas. Quando formos purificados, desembaraçando-nos da loucura do corpo, estaremos verosimilmente em contacto com as coisas puras e conheceremos por nós mesmos tudo o que é sem mistura, e é justamente nisso que consiste o verdadeiro; ao impuro, não é permitido atingir o puro [...] libertar a alma, não é isso, segundo nós, a esse fim que os verdadeiros filósofos, e só eles, aspiram ardente e constantemente[13], e não é justamente a esta libertação e a esta separação da alma e do corpo que se exercem os filósofos? (66b-67e) [...] a coragem, a temperança, a justiça, e em geral, a verdadeira virtude adquirem-se com a sabedoria” (69b).
13. O espiritual junta-se ao intelectual, a abstracção à santidade (grega). É a esta problemática socrática que as Formas ideais e a alma imortal procuraram encontrar uma solução, se se pode dizer, fornecer-lhe uma teoria susceptível de ser transmitida na Academia, de geração em geração, de mestres em discípulos. E foi-o, de forma aporética é certo: no helenismo primeiro, reformulado por Plotino e gerando a teologia cristã desde Orígenes; mais tarde, após ter sido substituído por Aristóteles na teologia tomista, foi a tradução dos textos de Platão em latim na segunda metade do século XV, em plena assunção da Renascença, que tornou possível a critica clássica do aristotelismo medieval. Ele abriu a modernidade (Lutero, Descartes, Galileu...), somos seus longínquos herdeiros (como de Aristóteles também, é bem de ver). Problemática socrática e teoria platónica, é esta continuidade que justifica a pseudo-epigrafia dos textos de Platão, que ele tenha guardado o nome de Sócrates como porta-voz de textos que modificavam a herança: ruptura dum discípulo fiel.

Os primeiros exercícios para o platonismo
14. A descoberta desta teoria dos Eidê[14] eternos, das Formas ideias imutáveis, portanto separadas, fez-se em pequenos passos nos textos que temos, os comentadores costumem sublinhá-lo. O que importa ao propósito tido aqui, é estabelecer a relação entre este motivo e a questão da demonstração da preexistência e imortalidade da alma. Na longa citação feita há pouco, vê-se por um lado que Sócrates busca o conhecimento das ‘coisas’ mais elevadas e desejáveis – o justo nele mesmo, o belo e o bom, a grandeza, a saúde, a força – pelo raciocínio, pelo pensamento só, sem ajuda dos sentidos corporais: é pois a definição que procura apanhar o que não muda, além das coisas que mudam cá de baixo, que nós vemos e tocamos. Por outro lado, a alma separa-se do corpo na morte deste e junta-se aos deuses se for suficientemente pura, como Sócrates crê sê-lo, sem que seja questão aí (Fédon I) nem de ‘imortal’ nem de ‘imortalidade’. Enfim, a relação entre as duas, entre a ciência e a virtude estabelece-se na afirmação – de grande espanto pelo seu contraste com a tradição platónica cristã – que esse destino só diz respeito aos “verdadeiros filósofos, só a eles” (ver § 61).
15. Talvez seja difícil de decidir quando é que as palavras “o belo ele mesmo” (ou semelhantes) que Sócrates distingue das “coisas belas” dizem já respeito às Formas ideais ou relevam ainda apenas só da definição (por exemplo, Hippias maior, 289c-d, em que a palavra ‘eidos’ permite a hesitação). Há todavia uma passagem perto do final do Crátilo que parece permitir decidir: “considera com efeito, admirável Crátilo, um pensamento que me vem frequentemente como um sonho. Devemos dizer sem mais que existe o belo mesmo e o bom (einai auton kalon kai agathon) assim como cada uma das coisas? Há que o dizer ou não?” (493d). O que segue diz que este “belo mesmo é sempre como ele é” e nega o ser às coisas que não estão sempre no mesmo estado. Parece que, no contexto da contestação dos “seguidores de Heraclito” (440c) – de quem Crátilo é discípulo, como Platão o foi de Crátilo na sua juventude –, este pensamento “vindo como um sonho”[15] seja um pensamento parmenidiano[16], que atribui o ‘ser’ ao belo mesmo e o ‘não ser’ às coisas terrestres, que mudam constantemente, sujeitas à geração e à corrupção (como o corpo). Ora bem, o que é que faz este diálogo? Discutindo se os nomes atribuídos às coisas são justificados, digamos, são motivados por elas, como parece a um locutor ingénuo, ou se pelo contrário, são frutos de convenções que mudam consoante os diferentes povos, Sócrates, sem decidir entre as duas hipóteses, que têm argumentos favoráveis mas também objecções graves, aproveita para dizer “que devemos buscar, fora dos nomes, outras coisas para nos fazer ver, sem os nomes, qual é das duas classes [nomes primitivos ou nomes compostos (433d)] a que contém os verdadeiros nomes, isto é, que nos mostrará a verdade dos entes [...] é portanto possível, parece, Crátilo, aprender os entes sem a ajuda dos nomes, se for realmente assim” (438e). “Agora, de que maneira há que aprender (manthanein) ou descobrir (euriskein) os entes, é uma questão que talvez nos ultrapasse, a mim e a ti. Basta-nos ter reconhecido que não é dos nomes que se tem que partir, mas é deles próprios que devem ser aprendidos e buscados, mais do que dos nomes” (439b). Ora, era isto que o diálogo procurava: afastar os nomes do conhecimento[17] representa um (primeiro) passo da definição (para além dos nomes), ela que é o único meio para Sócrates de conhecer [estas essências] das coisas.
16. É pois no sentido deste fim que devemos esperar no Menon o passo seguinte desta caminhada para o platonismo. A primeira observação a fazer é que se trata de retomar a questão que atravessou os primeiros diálogos socráticos: “O que é que tu dizes que é a virtude?” (71d), retomada que parece justamente assinalar um novo passo na escrita, no pensamento de Platão. Com efeito é a questão da definição (sem o nome nem o verbo dela, todavia) que é posta “sobre as virtudes: por numerosas e diversas que elas sejam, elas têm todas uma certa forma [que é] a mesma (hen ge ti eidos tauton), que faz com que elas sejam virtudes. É nela que convém fixar os olhos para responder à questão e mostrar em que é que consiste a virtude” (72c). A estas ‘coisas’ que têm o mesmo nome[18] corresponde um único eidos que é preciso ‘olhar’ bem, “fixar os olhos” nele, para poder dar-lhe a definição. A relação, que até aqui não encontrámos, entre a definição e o eidos parece estabelecida nesta passagem, o diálogo a seguir precisando a diferença entre as múltiplas coisas que têm o mesmo nome e a definição delas através do exemplo da “figura” (schêma) geométrica e voltando em seguida sobre a questão da definição da virtude, que se esquiva sempre. Chega enfim à questão da aprendizagem. O enigma que esta apresenta é posta pelos sofistas como uma impossibilidade: ou já se sabe, ou nem sequer se sabe que se ignora, e portanto não se busca aprender (80d-e). Para lhe responder, Sócrates, invoca agora que “ouviu homens e mulheres hábeis nas coisas divinas, sacerdotes e sacerdotizas[19], poetas divinos [...] [dizerem] coisas verdadeiras e belas [...], dizem que a alma do homem é imortal, e que ora se escapa, o que se chama morrer, ora reaparece, mas sem nunca perecer, e que, por essa razão, há que ter a vida mais santa possível” (81b). Esta evocação de dizeres de gente divina funciona à maneira do ‘como um sonho’ do Crátilo, é uma terceira hipótese a acrescentar às do § 4: quando Sócrates evoca uma experiência deste tipo, sonho ou revelação de ‘origem divina’, é Platão quem assinala um ponto importante do seu afastamento do mestre, reforçando-o aliás pela dúvida que emite logo a seguir sobre esta hipótese, “a dizer verdade, eu não afirmaria positivamente que tudo é verdadeiro no meu discurso [...] [excepto] que é preciso buscar o que não se sabe” (86b). Esta crença pede pois a santidade, é sobre a virtude que se está inquirindo; ”já que a alma é imortal e ela viveu várias vidas, e que viu tudo o que se passa aqui e no Haddes, não há nada que ela não tenha aprendido [...], não surpreende que sobre a virtude e sobre o resto ela possa recordar-se do que soube outrora. Como na natureza tudo se mantém e como a alma aprendeu tudo, nada impede que, recordando-se duma coisa só, o que os humanos chamam aprender, ela encontre sozinha todas as outras, desde que seja suficientemente corajosa e não se farte de buscar; pois que buscar e aprender não é senão reminiscência (anamnêsis)” (81c-d). Depois da célebre exemplificação desta reminiscência com o jovem escravo de Menon, o dialogo termina assim: “a virtude não é um dom da natureza nem uma matéria de ensino, mas é por um favor divino (theia moira) que a virtude chega sem o intelecto (aneu nou) naqueles que são favorizados com ela” (99e-100a). Mas não foi definida (100c).
17. Parece pois que a célebre e misteriosa reminiscência (aprender, é recordar) seja uma espécie de recurso ao ‘divino’ afim de dar conta da possibilidade humana da virtude, do como da santidade. É um domínio que se diria ‘teológico’, de sonhos como de sacerdotes/izas. Mas a reminiscência tem um alcance mais largo, que a digressão pela geometria abria e que se torna óbvio com a entrevista do escravo: como é que, neste ignorante de geometria chega a espontaneidade da resposta justa, após ter tentado compreender sabendo todavia que não sabia responder. É certo que teria sido difícil a Platão conduzir a conversa com o escravo sobre a virtude que estava em discussão, mas conclui-se que a reminiscência das almas pré-existentes ao nascimento dos corpos também dá conta da aquisição da inteligência geométrica (tão privilegiada pela Academia: ‘que ninguém entre aqui sem conhecer a geometria’). ‘Também’, escrevi, mas talvez haja que escrever ‘primeiramente’, se se volta ao Crátilo: “[…] neste escravo, estas opiniões acabam de surgir como num sonho (85c) […] sem nenhum mestre, com simples interrogações, ele retomou nele próprio a sua ciência (85d) […] retomar sozinho em si mesmo uma ciência é recordar-se (85d) […] ora, se ele não as recebeu na vida presente, não é evidente que ele as teve e as aprendeu num outro tempo? […] não é preciso que a sua alma tenha sido sábia desde sempre? Pois é evidente que a sua existência ou a sua não-existência humana se estende a toda a duração do tempo. […] se portanto a verdade das coisas existe sempre na nossa alma, ela deve ser imortal. […] no humano, tudo depende da alma e a própria alma depende da sabedoria, condição indispensável para ela ser boa” (85d-89a). Duas vezes de seguida a ‘evidência’ (dêlon), a prova, o raciocínio neste domínio fora do corpo do inteligível e em seguida o retorno à sabedoria enquanto virtude, que incluiria também o saber científico dos filósofos, “condição indispensável para que a alma seja boa” já no Fédon I.
18. É certo que Sócrates fala como um homem que não sabe (ouk eidos) e que conjectura (98b1), ela ainda não demonstrou a imortalidade da alma, que foi em todo o caso aceite. Mas já respondeu ao sofisma sobre a aprendizagem: “aquele que ignora (ouk eidoti)[20] uma coisa, qualquer que ela seja, tem em si opiniões verdadeiras sobre aquilo que ignora (mê eidê)” (85c6-7), o que introduz entre saber e ignorância um termo intermediário, o da opinião verdadeira[21], por exemplo, a dos homens de Estado que governaram bem, embora sem ciência, ou como os profetas e adivinhos, que dizem frequentemente a verdade sem conhecerem as coisas de que falam (99b). A reminiscência ainda não atingiu as Formas ideais e, em relação à alma fora do corpo, ela não ‘prova’ senão a sua pré-existência, não a imortalidade depois da morte. Mas o Ménon fez com o Crátilo um passo decisivo nessa direcção.

A alma posta à prova pelo amor
19. Fedro I, com retorno ao amor dos rapazes, parece ser um exercício preparatório do Banquete, em que o motivo é tratado de cabo a rabo. O ambiente é propício ao delírio e ao divino [“algum deus me sopra a inspiração, este lugar tem algo de divino” (238c-d)], portanto “à divina filosofia” (239b): “estabeleçamos de comum acordo o que é o amor e qual a sua força (dunamin), depois [discutamos] com os olhos postos nessa definição (horon)” (237c-d). Estes olhos postos na definição, são os da inteligência, não os da sensação visual (uma definição não se vê), mas não se trata ainda dum eidos de que essa definição pudesse ser a recordação. “É preciso antes demais aprender a conhecer exactamente a natureza da alma divina e humana, sabendo das suas paixões e das suas obras. Partiremos deste princípio. Qualquer alma é imortal [afirmação sem alusões ‘divinas’, depois do Ménon portanto], pois o que está sempre em movimento é imortal [...] só o ser que se move a si mesmo, que não pode falhar-se, nunca cessa de se mover, e é o mesmo para todos os outros seres que tiram o movimento de fora, [a alma é] a fonte e o princípio do movimento. Ora um princípio não pode nascer [...] tudo o que nasce nasce dum princípio [...] senão não seria um princípio […] o auto-movimento é a essência da alma (psuchês ousian)” (245c-e). Logo a seguir pára, pois “para mostrar o que é a alma, seria preciso [...] uma ciência divina”; creio que se trata aqui da primeira abordagem da alma, princípio do auto-movimento dos vivos (vale também para os animais) e da primeira tentativa de demonstração da sua pré-existência (“um princípio não pode nascer senão não seria um princípio”). Ela ilumina, parece, de maneira precisa e preciosa, o impasse desta filosofia no que diz respeito ao conhecimento[22]. Cortada do corpo pela sua posição principial[23], por um lado, e por outro sendo ela apenas susceptível dos conhecimentos mais altos, do inteligível cúmplice do divino, não há maneira de entrar nela ou de sair dela senão por uma visão qualquer metafórica de que ela seja também o ‘princípio’ ou o ‘receptáculo’. Será pois metaforicamente que se falará dela (“ela parece uma força composta dum carro e dum cocheiro com asas”), atraída para cima ou para baixo consoante a relação ao corpo. “Quando a alma é perfeita e com asas, [...] a natureza dotou a asa do poder de elevar o que é pesado para as alturas onde habita a raça dos deuses, e pode-se dizer que, de tudo o que é corporal, ela é o que mais participa do divino. Ora, o divino, é o belo, o sábio, o bom e tudo o que se assemelha a estas qualidades (246d-e). [...] as almas imortais, uma vez que cheguem ao alto do céu, passam para o outro lado e colocam-se na abóboda celeste e, se se mantiverem nela, a revolução do céu leva-as na sua corrida e elas contemplam as (coisas) fora do céu [...] a essência que verdadeiramente é (hê ousia ontôs ousa), sem cor, sem esquema, intocável, perceptível unicamente ao guia da alma, a inteligência, e que diz respeito à verdadeira ciência, reside neste lugar” (247c-d). Se ainda não há Formas ideais, o seu lugar celeste, divino, e a sua relação à alma separada do corpo, acabam de ser desenhados.
20. No Banquete, após os outros convivas terem exposto as diversas concepções correntes sobre o amor, encontramos pela primeira vez Sócrates na posição de interlocutor diante de outrem que, ela, está na posição da que conduz o discurso, aquela que sabe, “uma mulher de Mantineia, Diótima, sábia destas matérias e muitas outras” (201d). Esta inversão das posições é sem dúvida um índice muito forte da ruptura que Platão aqui opera em relação a Sócrates (§ 7): se o recurso frequente deste à inspiração do seu demónio, ao “como que sonho”, ao delírio divino, poderiam ser maneiras indirectas de dizer uma espécie de reminiscência da alma de Sócrates (que, tanto quanto sei, não é nunca invocada), agora não há dúvidas quanto à insistência de Sócrates para aprender com esta sábia mulher. E porquê uma mulher, num universo intelectual tão misógino, que privilegia o amor dos rapazes no acesso à filosofia? Talvez seja aí que o problema se põe, o do alargamento do debate sobre o amor: a questão dirá respeito ao amor enquanto procriador, sobre algo de que uma mulher sábia sabe mais do que um homem.
21. Mas antes é necessário que o saber também faça parte da questão. “A ciência conta entre as coisas mais belas, ora o amor é o amor das belas coisas, é portanto necessário que o Amor seja filósofo [o que não são nem os deuses nem os ignorantes], [...] que ele esteja no meio entre o sábio e o ignorante” (204a-b). Portanto a ciência, a filosofia, pertence já ao domínio do amor; todavia este releva da beleza (é a beleza do outro que se ama), há portanto que introduzir também o bem – “se [...] substituindo a palavra ‘bom’ à palavra ‘belo’, te perguntassem: [...] quando se amam as coisas boas, o que é que se ama?” (204e) – e poder-se-á chegar à definição do amor que convém à filosofia de Platão: “o amor é pois em suma o desejo de possuir sempre o bem” (206a).
22. Chegamos então ao ponto da leitura da carta de Paulo aos Gálatas que me empurrou para a leitura destes textos, que já contavam então mais de quatro séculos. Com Diótima, chegamos com efeito ao “nascimento segundo o corpo e segundo a alma [...] [pois que] todos os humanos são fecundos segundo o corpo e segundo a alma”, e ela acrescenta de maneira muito bonita: “quando o ser fecundo se aproxima do belo, ele fica feliz e, sob o encanto, dilata-se, e concebe, e gera [...] donde o transporte violento que o atrai para a beleza, já que o que possui esta beleza é libertado do grande sofrimento da concepção”. Há então que retomar a definição do amor como “o amor da geração e da procriação no belo. [...] Porquê da geração? porque a geração é para um mortal algo que dura sempre e imortal. Ora, o desejar da imortalidade é inseparável do desejo do bem, como conviemos, se for verdade que o amor é ser do bem para sempre. Segue-se necessariamente que o amor é também o amor da imortalidade” (206b-207a).
23. Aqui chegado, o discurso desdobra uma escala das imortalidades. Primeiro, a dos animais e da “natureza mortal [...] que gera, isto é que deixa sempre um ser novo que ocupa o lugar do antigo [...] o que se retira e envelhece deixa o lugar a um ser novo, que se assemelha ao que ele próprio era. É assim que o mortal participa da imortalidade no seu corpo e no resto.” (207d-208b), cabelos, ossos e carne, costumes, caracteres, conhecimentos, todos nascem e morrem para que outros nasçam. Depois, ao nível da memória na cidade, “o desejo de ganhar um nome e de ter uma glória para sempre, [...] desafiando todos os perigos [...] , é a imortalidade que eles amam” (208c-e). Em seguida, “os que têm a fecundidade da alma [...] para as coisas de que alma deve ser fecunda e que ela deve gerar [...] o pensamento e qualquer outra virtude [...] poetas e inventores [...] a parte de longe mais alta e mais bela do pensamento é a que tem a ver com a ordenação das cidades e de tudo o que se administra”; para isso, há que encontrar um corpo belo e uma alma bela, “pelo contacto e a frequentação da beleza, ele dá à luz e gera as coisas de que a sua alma está prenha desde há muito tempo”, “em comunhão bem mais íntima do que aquela que consiste em ter crianças juntos, uma afeição mais sólida estabelece-se entre seres desta natureza”, e citam-se os “rebentos imortais” deixados por Homero, Hesíodo, Licurgo, sólon. “A estes, tais filhos valeram já bastantes templos, mas os filhos da geração humana não fizeram até agora edificá-los a ninguém” (209b-d): como já o final do Menon, em dialogo com Anytos, tinha sugerido que os grandes homens de Atenas não tinham tido filhos da sua estatura, e que portanto a virtude não se ensina, há também – aqui vê-se melhor – uma espécie de ‘critica’ da filiação segundo o parentesco, da fecundidade segundo o corpo e a mulher, que ajudará a compreender a abolição das casas na República, como também o deslocamento da filiação (na linha da phusis) para o mundo da idealidade (linha da inscrição) (§ 1).
24. Diótima mostra enfim a série dos graus duma iniciação, segundo o vocabulário duma religião de mistérios (L. Robin, p. 67, n. 5), a partir da beleza dum corpo só, depois a de todos os corpos belos, depois duma alma, depois das acções e das leis, beleza sempre semelhante a si mesma, depois as ciências: de cada vez o iniciado gera belos discursos, segundo a lógica da filiação que se está aqui a ‘transpor’, como metáforas, já que não se pode fazer de outra maneira, é o que se tenta pôr aqui em evidência (por exemplo clássico, a inteligibilidade na linguagem da visibilidade). “Até que enfim, afirmado e crescido, ele levanta os olhos para uma única ciência, a da beleza, de que vou te falar (210a-d). [...] ele contemplará as coisas belas na sua sucessão e na sua ordem exacta; atingirá o termo supremo do amor e de repente verá uma certa beleza que é por natureza maravilhosa, a que era o alvo dos seus esforços até aí, uma beleza que antes de mais é eterna, que não conhece nem nascimento nem morte, nem crescimento nem declínio, nem beleza dum lado e fealdade do outro [...] e esta beleza não lhe aparecerá como com um rosto (prosôpon), nem como com mãos ou outra coisa pertencendo ao corpo, nem também como um discurso ou um conhecimento; ela não estará situada em algo de exterior, por exemplo num ser vivo, na terra, no céu ou em qualquer outro lugar. Ela aparecerá nela mesma e como ela mesma consigo mesma (auto kath’auto meth’autou), ser eterno com uma forma una (monoeides aei on), e todos os outros que são belos têm parte nesta beleza (kala ekeinou metechonta) de maneira que o nascimento ou a destruição das outras coisas não a acrescenta nem a diminui em nada, e não produz nenhum efeito nela. [...] Este é na vida, meu caro Sócrates, o momento entre todos digno de ser vivido: aquele em que se contempla a própria beleza (auto to kalon). Se tu a vires um dia, ela aparecer-te-á sem nada a ver com a riqueza e a vestimenta, com as belas crianças e rapazes cuja vista te perturba actualmente. (201e-211d). [...] o belo nele mesmo, simples, puro, sem mistura, estrangeiro à infecção das carnes humanas, das cores, de toda a confusão mortal [...] a própria beleza divina com forma una (auto to theion kalon monoeides). Achas que a vida dum homem será banal quando ele tiver os olhos fixados no alto, contemplar o belo pelo meio adequado e vive em união com ele? Não pensas que só então, quando ele vir o belo pelo órgão que o torna visível, ele poderá gerar não simulacros (eidola) de virtude, porque não se ligará a um simulacro, mas a uma virtude verdadeira, já que ele se liga à verdade? Ora, se ele gera a verdadeira virtude e a alimenta, não lhe pertence ser amado pelos deuses e, dentre os homens, tornar-se imortal?” (211e-212a).
25. Pode-se dizer que é a resposta ao Menon, a justificação da não aprendizagem da virtude: ela é gerada na alma pela contemplação do Belo nele mesmo. Mas é também a correcção do que chamei acima o impasse desta filosofia no Fedro I, no que diz respeito ao conhecimento, o que seria a ‘insularidade’ da alma: assim como uma criança nasce dum corpo de mulher, também a virtude duma alma de homem; assim como é preciso um homem para os filhos das mulheres, também são precisos dois amantes para este parto das almas: “pelo contacto e a frequentação da beleza, ele dá à luz e gera as coisas de que a sua alma está prenha desde há muito tempo, em comunhão bem mais íntima do que aquela que consiste em ter crianças juntos”, dizia Diótima, essa mulher sábia. O amor dos rapazes como condição da geração dos belos discursos ‘corrige’ assim a insularidade da alma: trata-se justamente do lugar da maiêutica (de que o Teeteto fará a teoria), da explicitação da experiência (logocêntrica, § 31) do pensamento vindo sempre do outro (inclusivamente de forma crítica, por refutação), o amor dos rapazes na base da dialéctica, em que Platão acentua a necessidade do desejo, o que, por outro lado, justifica a importância da beleza, na República III, o Belo sendo o mesmo que o Bem.
26. Tratar-se-ia assim parece-me, do primeiro texto de Platão que coloca o Belo como Forma ideal (monoeides), com todas as indicações, já no Menon e no Fedro I, de ‘divindade’ na questão. Parece pois justificado pretender que Sócrates tornar-se aprendiz de Diótima significa que Platão dá um novo passo além de Sócrates[24], o passo para as Formas ideais que Aristóteles assinalava como ruptura entre ambos (§ 3), que prossegue a que ele fez no início do livro II da República (§ 7) e tornará possível República III. Todavia, se o Banquete não fala explicitamente de alma imortal, apenas de imortalidades desejadas, é porque ele supõe Fedro I: estes dois textos farão pois uma sequência lógica depois do Crátilo e do Menon, numa série a situar provavelmente entre República II e III.

O Sol filho do Bem
27. Para que haja a cidade ideal da República, bastará “uma única mudança”: “que os filósofos sejam reis na cidade” ou que os reis sejam “verdadeira e seriamente filósofos” (473c-d). Ao invés de “os que amam os espectáculos e as artes, as práticas”, o filósofo é “aquele que acredita que o belo existe nele mesmo, que pode contemplá-lo nele mesmo e naqueles que participam dele (metechonta)[25], que não toma nunca as coisas belas pelo belo nem o belo pelas coisas belas” (476b-d), já que, contrários entre si, belo e feio, bom e mau, justo e injusto, são cada um um (475e, sem que a palavra eidos apareça, todavia): isto é, sem mistura entre eles por definição[26]. O filósofo “ama essa essência (ousia) que existe (ousês) sempre e não erra entre a geração e a corrupção” (485b), prefere “os prazeres que a alma prova nela mesma” e deixa “os do corpo” (485d-e)[27], “abraça no seu conjunto e totalidade todas as coisas divinas e humanas, contempla todos os tempos e todos os existentes” (486a), “não pensará que há que temer a morte” (468b), “as suas disposições naturais levá-lo-ão facilmente para o ser ideal de cada ente” (486e), “aspira ao ser, não se detém na multidão das coisas particulares” – as da opinião – “e não larga o seu amor (erôtos) até ter penetrado a natureza de cada [ente] com o elemento da sua alma a que pertence penetrá-lo, depois tendo-se lhe ligado (plêiasas, aproximação sexual) e unido [por uma espécie de hymen, Baccou] ao ser real (to onti ontôs), e tendo gerado (gennêsas, parido) a inteligência e a verdade, atingido o conhecimento e a verdadeira vida, encontra aí o seu alimento e o repouso das dores de parto” (490b). É a comparação de Diótima com a procriação que é assim retomada, a geração da inteligência e da verdade pela alma, isto é a geração dum discurso verdadeiro, passadas as dores do parto. As coisas fora da geração e da corrupção, fora do nascimento e da morte, só podem ser ditas na linguagem da geração, da procriação. “A ideia de bem (agathou idea) é o mais alto dos conhecimentos” (505a), mas Sócrates todavia retém-se de falar dela, apenas “do filho (ekgonos) do bem” (508b); “as coisas belas, […], boas, […] são percebidas pela vista e não pelo pensamento, mas as ideas são pensadas e não são vistas » (507b-c). À diferença dos outros sentidos – não há um intermediário entre orelha e sons – a vista precisa da luz para ver algo, de que o sol é o mestre no céu, o olho parecendo-se com ele, a sua potência vem-lhe do sol, que Sócrates “chama o filho do bem, que o bem gerou como semelhante a si mesmo; o que o bem é no domínio do inteligível em relação ao pensamento e às [coisas] pensadas, é-o o sol no domínio do visível em relação à vista e às [coisas] vistas” (507c-508c) [28]. O que implica que o Eidos do Bem (inteligível) gera, dá à luz, que ele seja o pai do sol (visível), portanto talvez, de forma geral, que os Eidê celestes geram os entes sensíveis[29]. Não se pode todavia dizer que o motivo da procriação dê conta nem do mundo inteligível nem do mundo visível. “Assim como o sol fornece [parechein, nada a ver com geração] às coisas visíveis não apenas o poder de serem vistas mas também a geração, o crescimento e a alimentação, sem ser ele próprio geração, também as coisas inteligíveis não têm apenas do bem a sua inteligibilidade mas também o seu ser e a sua essência (to einai kai tên ousian), embora a ousia não seja o ser do bem (ouk ousias ontos tou agathou), mas [este] mantém-se (huperechontos) ainda para além da ousia (all’eti epekeina tês ousias) em dignidade (presbeia, antiguidade) e potência (dunamei)” (509a-b)[30]. Em conclusão, a nitidez da separação: a ciência e os conhecimentos discursivos relevam da inteligência (noésis) e a crença e a imaginação da opinião (doxa), “esta sendo sobre a geração (genesis) e aquela sobre a ousia” (534a, cf. 511e).

Que a alma é portanto imortal
28. “É antiga a dissidência entre a filosofia e a poesia” (607a-b), há pois que aproveitar a nova teoria das Formas ideais (de que aprendemos que há uma para a cama e outra para a mesa, 596b) para encontrar novos argumentos para expulsar os poetas da cidade. O que leva Sócrates a dizer algo que surpreende o seu interlocutor: “Ainda não observaste que a nossa alma é imortal e que ela nunca perece? Ele olhou-me e disse-me muito surpreendido: Por Zeus! Não, e tu, és capaz de o dizer? (608d). Baccou nota que os comentadores admiram-se com esta surpresa de Glauco (p. 483, n. 736); em vez de se pensar que seria a primeira vez que Platão o escreve, creio que se trata duma confirmação da diferença de estatuto dos textos segundo o seu enquadramento (§ 4): seria a primeira vez que ele o escreve em textos destinados ao grande público (o próprio Banquete não o diz). O argumento é bastante diferente do do Fedro I sobre o princípio do auto-movimento: aqui ele parte da separação entre o Bem e o Mal (portanto entre duas Formas ideais) e propõe que aquele não destrói nada, apenas o Mal o faz; ora o mal da alma, a injustiça, “não pode matá-la nem destrui-la” (610d). O argumento implica a célebre teoria da metempsicose ou reencarnação das almas: sendo imortais, “são sempre as mesmas almas que existem, porque que o seu número não poderia nem diminuir, já que nenhuma perece, nem, por outro lado, aumentar” (611a). Partindo da oposição entre o bem e o mal, o argumento acabará com a recompensa dos justos: “tem que se admitir, quando um homem[31] justo se encontra exposto à pobreza, à doença, ou a qualquer destes pretensos males, que isso acabará por virar em vantagem sua, estando vivo ou estando morto; porque os deuses não poderiam negligenciar quem se esforça por se tornar justo e por se fazer, pela prática da virtude, tão semelhante à divindade quanto é possível a um humano” [32] (613a-b). Este capítulo X da República, tal como o Górgias e o Fédon II, termina com um mito sobre o destino das almas após a morte dos seus corpos.
29. A terceira volta do argumento encontra-se no Fédon II, mais trabalhada do que as outras duas e parece portanto pressupô-las, como se Platão condensasse sobre Sócrates – que vai morrer –, sobre a sua alma, o ponto máximo da sua argumentação a respeito da imortalidade. Invoca-se primeiro uma antiga tradição sobre esta imortalidade[33] que se tratará de provar. O argumento dá-se em dois tempos, o primeiro sobre os contrários que nascem uns dos outros: o grande do pequeno (crescimento) e o inverso (diminuição), o sono da vigília e o inverso (70d-71c), portanto também a vida da morte e a morte da vida: os vivos nascem dos mortos assim como os mortos dos vivos (71c). Este argumento – que parece bizarro, mas que encontrará alguma justificação quando se pensa que os animais vivem de comer cadáveres, mas não tendo alcance senão para o mundo corporal, da geração e da corrupção – não deveria valer para os contrários que são o bem e o mal. Mas eis que Sócrates “julgou encontrar uma prova suficiente de que as almas dos mortos existem forçosamente em algum lado, donde elas voltam à vida” (72a). E é o segundo tempo, que retoma o argumento do Menon: aprender é recordar, bem interrogados, os homens descobrem por eles mesmos a verdade sobre qualquer coisa (73a-b); depois, a associação de ideias é uma recordação, por vezes de coisas semelhantes, por vezes dissemelhantes, donde se passa à igualdade, as coisas iguais pelos sentidos supondo o conhecimento da própria igualdade antes de se fazer uso desses sentidos, antes do nosso nascimento (73b-75c), portanto também o próprio belo, o bom, o justo, o santo, todas as coisas que marcamos com o selo de “o que é si mesmo” (auto ho estin) nas perguntas e respostas das discussões, de maneira que temos que necessariamente de ter tido conhecimento de todas essas noções antes do nascimento (75d) e esquecido depois: ou se nasce com os conhecimentos ou se os recordam (75e-76a), se as coisas nelas mesmas existem realmente (ontôs), e também a nossa alma antes do nosso nascimento (76e). É portanto das Formas ideais que ele deduz a pré-existência das almas, mas sem que a prova valha para os animais, só para os humanos. E quanto à existência após a morte? Bastará acrescentar que os vivos vêm dos mortos (77b-d). O que segue ilustra bem os pressupostos do argumento: só as coisas compostas podem morrer, dissipar-se e mudar. O igual, o belo, o ser (to on), são sem alteração. Entre as coisas que têm o mesmo nome, há duas espécies de entes (duo eidê tôn ontôn), os visíveis e os invisíveis: estes são sempre os mesmos, aqueles nunca o são, respectivamente a alma e o corpo (78d-79b). O pensamento: a alma atraída para o que não muda, por causa do seu contacto com ele permanece imutavelmente a mesma, portanto ela assemelha-se mais ao invisível e ao divino[34] (mais apta a comandar), enquanto que o corpo se assemelha ao visível e ao mortal (apto a obedecer) (79b-80b). Como já no Fedro I, é a separação entre ambos, posta pelo filósofo (se a alma se exercer a fugir do corpo e a recolher-se, a filosofar, portanto a treinar-se a morrer, “como se diz dos iniciados, ela passa verdadeiramente com os deuses o resto da sua existência”, 80d): com efeito, o filósofo é um ‘espiritual’ que deixou os desejos dos corpos e das casas para se dedicar aos que são só da alma, a virtude e o pensamento, e é este pressuposto que leva a melhor. O que não vale senão para os humanos e, dentre eles, para os filósofos, esses virtuosos. “Para entrar na raça dos deuses, isso não é permitido a quem não for filósofo e não partiu inteiramente puro, esse direito pertence apenas ao amigo do saber” (82b). Com efeito, desde que a linguagem foi afastada no Crátilo, o argumento anda em torno do conhecimento e de que o corpo não participa dele: no fundo, é a força da experiência do pensar que o sustenta; esta, enquanto experiência, não poderia ter sido aprendida, herdada de antepassados (pela tradição) ou de mestres, de tal maneira ela surgiu espontaneamente de si próprio, sem que, por outro lado, o pensador se possa dizer seu autor exclusivo, como se ele próprio ficasse surpreendido. Tenho tendência a pensar que reside aí a base de uma das correntes mais fortes do pensamento ocidental, aquela que foi chamada ‘idealismo’.
30. Platão tendo recebido uma nova objecção, o Fédon II retoma a questão da imortalidade após a morte do corpo, considerando expressamente que o que fora desenvolvido a respeito da pré-existência se mantinha conseguido. Nesta matéria, é impossível ou extremamente difícil saber a verdade na vida presente, pelo que ou se deve escolher a via melhor e mais difícil e arriscar-se nela, como sobre uma jangada, ou então ter uma revelação divina (85c-d); releve-se também a observação segundo a qual “as pessoas totalmente boas e as totalmente más são em pequeno número, tanto umas como as outras”, tal como são raros os homens muito pequenos e os muito grandes (89d-90a). “Quando a morte se aproxima do humano, o que há de mortal nele morre, como parece, e o que há de imortal retira-se são e salvo e incorruptível e cede o lugar à morte” (106e). Em resumo: a argumentação sobre a imortalidade da alma depende, pela sua pré-existência antes do nascimento, da questão da espontaneidade do conhecimento do que, estando para lá dos sentidos, da corporalidade, não pode ter sido aprendido e é reminiscência das Formas ideais (argumento ‘intelectual’), argumento que vale em vida, enquanto que o depois da morte, depende da virtude, do Bem (argumento ‘espiritual’).

A aporia da definição, operação de escrita
31. Fedro II retoma a retórica para censurar aos oradores escreverem os seus textos (257c); quer dizer que, em certo sentido, se trata duma retomada da questão da imortalidade, desta vez daquele que escreve (de Platão que lemos tantos séculos depois!), em contrapartida com a da alma em Fedro I. Seria talvez o que fez Platão juntar esta segunda redacção: opor as duas heranças (§ 1), as das casas pelo parentesco de pai em filho (a quem a alma está ligada, herança para além do corpo), e a da escrita de mestre em discípulo (a respeito da sua aprendizagem), “a potência de tornar-se imortal na cidade enquanto escritor de discursos (dunamin athanatos genesthai logographos en polei) (258c). A questão, “o que é então escrever bem ou mal?” (258d) submete a escrita à da separação entre o bem e o mal, tal como a geração está submetida à da morte, questão a que a escrita não saberia responder, Derrida (“La Pharmacie de Platon”) demonstrou-o muito claramente: sendo droga (pharmakon), tanto remédio como veneno, a escrita resiste a esta separação. Este pensador chamou logocentrismo à predominância do logos (do pensamento ‘vivo’ e da sua memória, ambas muito perto da alma e da sua verdade) sobre o texto escrito (que se afasta do escritor e perdura além da sua morte, sem que este o possa defender das objecções dos seus leitores), predominância que se assinala na “composição do discurso como um ser vivo, com corpo, cabeça e pés, meio e extremidades, partes bem proporcionadas entre elas e com o conjunto” (264c)[35]. O que pode ser aproximado da comparação, um pouco mais longe, da escrita (graphê) e da pintura (zôgraphê, à letra escrita dos vivos): já no cap. X da República, esta era desqualificada quando se tratava de pintar uma ‘cama’, em relação à obra do marceneiro. O escrito e o quadro são como vivos (hôs zonta) que, interrogados, guardam silêncio (275d), não respondem, são como vivos mortos, por assim dizer. Para que servem os discursos escritos? “Não são senão um ‘memento’ (que) recorda ao que já sabe (sobre) as (coisas) escritas” (275d). Por exemplo, eles servem como notas de aulas, como os textos de Aristóteles que nos chegaram; não servem senão na escola, na Academia, diante do mestre que os escreveu, que pode explicá-los, responder por eles. Qual é o risco de que um livro caia fora de escola, que ele encontre leitores longe do seu autor? É que, pela leitura, eles se “se tornem muito instruídos sem terem sido ensinados (aneu didachês); sendo sem julgamento, julgar-se-ão muito sábios, e por isso em geral muito difíceis de suportar, tornando-se sábios de opinião contra os (verdadeiros) sábios” (275b). Em resumo, serão auto-didactas, aqueles que, ao longo dos séculos, serão proscritos por não terem ido à escola. O autor tendo-se retirado, como é que se pode aprender com um escrito que “significa sempre a única e mesma coisas? Uma vez escrito, ele anda por todo o lado e passa indiferentemente pelas mãos dos conhecedores e pelas do profanos [os autodidactas], e não sabe distinguir a quem se deve falar ou não” (275e).
32. O debate de fundo é entre a memória interior (relação à reminiscência?), “o discurso que sabem vivo e na sua alma [...] e o escrito que justamente é a imagem (eidolon) dele” (276a): “é de fora por caracteres estrangeiros e não por dentro que eles se recordam a si mesmos, não é portanto do registo da memória mas da recordação” que releva a invenção deste pharmakon que “trará aos discípulos a opinião do saber, não o verdadeiro saber” (275a-b). Adiante, será argumentado em favor dos “melhores dos discursos, nascidos para memento dos sábios nos auditores e aprendizes, dizendo de forma agradável e escritos na alma[36] deles, discursos sobre o justo, o belo e o bem, apenas eles são claros, conseguidos e de valor nobre; há que considerar esses discursos como os filhos legítimos do seu autor” (278a)[37]. Este debate entre dentro e fora tem assim a ver com o justo, o belo e o bem, sobre o resultado, como vimos, da definição socrática (no Ménon, debate entre, por um lado, a alma que recupera a reminiscência e, por outro lado, o que ela pode aprender ou não de outrem). Com efeito, o que é que Sócrates procura sempre nesses diálogos? Conseguir que os seus interlocutores cheguem a encontrar com ele a definição do belo e do bem, de tal ou tal virtude, da própria virtude, de maneira a poderem viver de forma segura, duradoura, no aleatório da vida da cidade: duradoura porque “escrito (graphetai) com a ciência na alma daquele que aprende (manthanontos)” (276a) (trata-se com efeito da questão da aprendizagem, da escola). A definição joga portanto do interior e do exterior, eis a aporia: todo o trabalho que Sócrates se dá ao pé dos jovens – estando ele, no exterior (como parteiro, dirá no Teeteto) – para que eles saibam definir, delimitar, fixar, registar duravelmente na sua alma o que viria, segundo o Ménon, da reminiscência das Formas ideais colocadas na sequência da invenção da definição. Jogando ao mesmo tempo dentro e fora, esta é uma operação de escrita, de gravação, de inscrição escolar duradoura de limites, de fronteiras.
33. “Há que olhar estes discursos (logoi) como filhos legítimos do seu autor”, terminava assim a última citação, deixando aos discursos escritos a posição de bastardos. Já antes Sócrates tinha falado de “Fedro como pai de belos filhos” (261a), referindo-se aos seus discursos. Como é que a aporia se liga a esta comparação? Tem a ver com o enigma da procriação: “não posso acreditar [...] que sei porque é que um é gerado, nem, numa palavra, porque é que qualquer coisa nasce, perece ou existe” (Fédon III, 97b). Não apenas qual é o papel do pai e da mãe, coisa que era discutida pelos médicos e outros physicos, mas também: rapaz ou rapariga, com quem será ele ou ela parecido/a? No caso, que hoje se tornou frequente, dum casal misto, as incógnitas multiplicam-se, pele negra branca, mais ou menos mulata, cabeleira, forma da boca e do nariz, e por aí fora. Sem que se possa decidir de fora, no estado actual das coisas. Ora, a comparação releva deste enigma sobre o que é gerado dentro e desta impotência de quem assiste, pois Sócrates Platão quereriam intervir de fora para que o recém-nascido seja ‘verdadeiro e virtuoso’ duravelmente[38]. A descrição da caminhada do pensamento em termos de geração paterna de fora e de parto do que vem espontaneamente de dentro foi a maneira que Platão encontrou de dizer as duas vertentes da aporia: indissociáveis num mesmo discurso que diz respeito a dois domínios separados, inconciliáveis, o da aprendizagem e o da espontaneidade do pensamento e da virtude.
34. Pode-se resumir assim a caminhada de Platão até aqui: sobre a dupla base socrática da pedagogia erótica e da crença tradicional da sobrevivência da alma no Hadés, por um lado ele faz jogar a definição que o próprio Sócrates inventou para, a partir de múltiplas coisas que mudam, fazer existir realmente (celestamente) os definidos enquanto entes inteligíveis, por outro busca demonstrar a tradição órfica da imortalidade da alma (e o reforço, recorrendo à geometria, à oposição entre a alma e o corpo, o inteligível e o visível ou sensível) a partir da reminiscência desses definidos, contemplados antes do nascimento. Ela representa o primeiro avanço franco do platonismo (no Menon), o que parece confirmado pela maneira como no Fédon II (73a-b) um pequeno diálogo entre dois dos interlocutores de Sócrates, em que um deles, Cebes, apoia a argumentação de Sócrates contra o outro, Símias, Cebes apresentando ele próprio essa doutrina como uma aquisição segura.

A viragem do platonismo
35. Podemos todavia perguntarmo-nos se a questão da escrita no Fedro II não releva duma problemática escolar amadurecida na experiência de leitura da Academia e que dominará os textos que se vão seguir, em torno do saber. O que implicaria que teria havido um longo intervalo entre os textos que lemos até aqui (até Fedro I) e os que seguem, a começar pelo Parménides. Assim como Fédon II e III parecem terminar esta sequência de constituição do platonismo (nunca mais será questão da imortalidade da alma, a demonstração ficou feita e terá uma longa ‘imortalidade’ através do cristianismo), Fedro II inauguraria a sequência dos novos textos, onde não será mais questão de reminiscência, de ensino das virtudes, do papel do amor dos rapazes e se encetará uma crítica das Formas ideais celestes. Estes textos introduzem também pela primeira vez a figura venerável de Parménides, discutem a possibilidade das ciências sobre as coisas terrestres e a possibilidade da falsidade dos discursos, em suma textos com dominância da problemática intelectual sobre a dimensão espiritual, textos mais escolares[39].
36. Vejamos a questão da cronologia destes textos. A ficção da escrita platónica coloca em série o Teeteto, o Sofista e o Politico – o primeiro termina marcando um encontro para o dia seguinte[40], que os dois outros continuam – enquanto que o Parménides conta um inverosímil encontro entre este filósofo e Sócrates, um bastante idoso visitando Atenas e o outro muito jovem, o que o impede de o situar na cronologia fictícia dos outros três: o Parménides só pode ser antes deles ou então depois. Ora, esta série não tendo sido acabada (falta um quarto, o Filósofo, que não foi escrito, assim como o Politico não foi terminado), parece lógico supor que o Parménides terá sido escrito antes. E tratando-se duma lição critica a Sócrates, percebe-se que seja necessário alguém de venerável a fazê-la, numa viragem decisiva que faz ‘pendant’ com a de Diótima (já que é ela o alvo da critica). Dificuldade aparente: Sócrates conduz o diálogo do Teeteto e não os outros dois, mas justamente esse diálogo acaba num embaraço que os outros dois vão resolver, o que parece indicar que a ‘esterilidade’ de Sócrates o impede de criticar Parménides, como o fará o Estrangeiro de Elea. Enfim, ver-se-á, que tudo isto sucede depois de Aristóteles ter entrado para a Academia e começado a discutir com Platão. Com efeito, quer o Teeteto quer o Sofista citam o Parménides: o primeiro em 183c-184a, aonde se deveria fazer o confronto de Sócrates com a posição deste filosofo sobre a possibilidade da ciência, após ter sido longamente questão da de Heraclito, através Protágoras (com resposta negativa), este confronto sendo reenviado, se dizer se pode, à citação do encontro que o Parménides conta (chegando pois também a uma resposta negativa); quanto ao Sofista, o confronto é posto desde o seu início: “queres [...] proceder por interrogações, como fez outrora Parménides, que desenrolou argumentos admiráveis na minha presença, quando eu era jovem e ele já bastante avançado na idade?” (217c). No Teeteto, a questão da possibilidade da ciência, do saber, é colocada entre as duas filosofias – a do movimento de Heraclito e a da imobilidade de Parménides[41] – que se excluem mutuamente; ver-se-á o Sofista procurar uma alternativa que não pense já o ser e o não ser em oposição, à maneira destes dois géneros, movimento e repouso, como sucede em Parménides, mas em termos do mesmo e do outro misturados no mesmo ente. Será esta ‘mesmidade’ que torna possível a ciência, a mistura permite considerar os entes (que nós somos, segundo o exemplo de Sócrates sobre si, Parménides 129d). Por outro lado, a segunda parte deste diálogo fornece um novo método de investigação lógica que quer o Sofista quer o Político utilizam. Há pois uma sequência lógica entre os quatro diálogos, ou até dos cinco, já que o Político e o Filebo consistem na aplicação da descoberta do Sofista aos dois grandes domínios privilegiados de Sócrates e Platão, respectivamente a ética e a politica.
37. A dança das personagens que conduzem os diálogos pode ajudar a compreender o que está em jogo neles. Sem dúvida que o Teeteto tem ar dum dialogo clássico de Sócrates com um jovem. Todavia, tudo se passa como se Platão fizesse nele uma recapitulação crítica de tudo o que aprendeu com outros além de Sócrates: por um lado, a geometria é representada por Teodoro, um matemático pitagoriciano de Cirene (com quem Platão tinha estudado geometria), e pelo seu jovem discípulo, Teeteto; por outro, discute-se Protágoras, Heraclito[42], Empédocles, Homero (152e), cita-se o Parménides, o ‘padrinho’ de Sócrates Platão, digamos; em resumo, trata-se da panóplia dos principais doutrinas correntes: São todos convocados em torno da questão fundamental da Academia o que é a ciência? é uma coisa diferente da sabedoria? o que dá ao diálogo a vastidão dum grande repor em questão, dum novo ponto de partida; mas que também tem o aspecto dum retorno, como parece sublinhar – desde o início e frequentemente recordada até ao final – a elaboração da célebre teoria maiêutica do dialogo socrático, feita sobre a comparação de Sócrates com a sua mãe, parteira (maia em grego) e a insistência sobre a afirmação da sua esterilidade, da sua ignorância de qualquer saber, de que só presta para avaliar o dos outros. Ora, o dialogo desagua sobre um ‘aborto’, o jovem geómetra, libertado das suas falsas opiniões, revela-se incapaz de gerar uma boa definição, incapaz de ter um filho real; apesar de longo, permanece aberto aos textos que virão depois. Ora, já o início do Parménides punha o jovem Sócrates no lugar do jovem Teeteto, despojando-o também – e depressa, sem nenhuma preocupação de maiêutica pedagógica – da sua teoria dos Eidê, com o argumento de que a separação deles em relação às coisas de que seriam os paradigmas os tornaria não conhecíveis. É aqui que se situa a ruptura que pede uma nova partida, assinalada por um maravilhosos pequeno diálogo após a conclusão da discussão. Parménides censura a precocidade de Sócrates: “o que é que tu vais fazer em termos de filosofia? Para que lado te virarás (trepsei), se as coisas são desconhecíveis? – É algo que não vejo nada, pelo menos de momento. – É que tu começaste cedo de mais, Sócrates, antes de te teres exercido, a definir (horizesthai) o belo, o justo, o bom e cada uma das outras formas. Foi uma observação que fiz o outro dia ouvindo-te a discutir aqui mesmo com o nosso amigo Aristóteles” (135c). Extraordinário dialogozito, em que Platão põe o seu velho mestre que ele admira tanto, em situação de sofrer a censura da temeridade da sua juventude por um velho sábio venerável. Tendo criticado as Formas ideais que Platão atribuíu a Sócrates, é o próprio Parménides que empurra este para a ‘viragem de pensamento’ – “não se saberia já para onde virar o seu pensamento (trepsei tên dianoian)”, tinha ele dito duas linhas antes (135b) –; no entanto, é o próprio Platão que é empurrado para a viragem, como é óbvio. Todavia, o seu porta voz de sempre tomará no diálogo seguinte, após esta crítica, a questão do conhecimento das coisas: o fracasso desse diálogo implicará, por sua vez, no outro a seguir, o Sofista, a crítica do próprio Parménides, mas o estéril Sócrates será incapaz de conduzir a discussão que levará a um novo saber, a respeito do mesmo e do outro. Depois de se ter tornado, pela segunda vez na vida (dos textos de Platão), o interlocutor interrogado por alguém mais sábio do que ele, Sócrates será doravante excluído do seu papel tradicional de condutor do inquérito, pelo menos na sequência textual em questão, a da critica da separação das Formas ideais (como se fosse ele o inventor delas! Aristóteles tinha razão de criticar os sucessores dele, § 3). Ora, a primeira vez em que Sócrates foi interrogado, foi diante de Diótima, foi ela quem pela primeira vez falou dum “ser eterno com uma forma una” (monoeides aei on) (§ 24), ela que foi assim, se dizer se pode, o ‘pivot’ da viragem para o platonismo. Este situou-se entre Diótima e Parménides, nas duas únicas vezes em que Sócrates virou discípulo.
38. Portanto, é Platão, escondido atrás de Sócrates, quem é empurrado para a viragem do pensamento: e quem o empurra? Alguém que Parménides terá ouvido discutir com ele. Quem ‘discutia’ com quem? Um Sócrates jovem fictício com um Aristóteles qualquer, um homem politico mais ou menos desconhecido? Ou o próprio Platão com um jovem discípulo chamado Aristóteles cuja obra, crítica do platonismo, nos é bem conhecida? Este pequeno diálogo parece dizê-lo de forma clara, que foi a entrada do jovem Aristóteles na Academia, cerca de 366 talvez, com 18 anos – filho dum médico (um physico), que devia pois já vir com um interesse bem aberto por estas questões de physica – que terá tido o efeito dum furacão, dum provocador de viragens[43]. Três gerações de mestres / discípulos jogam-se assim nesta ficção platónica: Platão – percebe-se que está irritado: ‘és novo de mais, Aristóteles!’ – vê-se censurado pelo seu jovem discípulo, desmascarado sob o seu mestre porta-voz, pois foi ele quem foi buscar a Parménides o que ele próprio colocou na boca de Sócrates, e é por isso que foi necessária a autoridade do velho sábio para o despedir. Exit Sócrates: não voltará a conduzir diálogos (excepto o do Filebo, teremos que perguntar porquê quando lá chegarmos), nem mesmo na sua grande recapitulação politica, As Leis, em que é um Ateniense que, no estrangeiro, conduz a discussão (texto que não conheço). Eis pois Aristóteles interlocutor de Parménides: a problemática ético-política substituída pela das ciências das coisas da phusis, de que se ocuparão doravante os textos de Platão até ao seu apogeu no Timeu. Para o que Parménides ensina a Platão uma nova lógica dialéctica. Mas este Mestre, que tinha recusado o apadrinhamento das Formas ideais, será por sua vez assassinado, sem que Platão tenha conseguido encontrar um nome para o “parricídio” (honestidade intelectual na ficção) que fará executar por um Estrangeiro vindo do país de Parménides.

Sofrer a crítica de Parménides antes de o matar
39. Uma questão se põe: porque é que Parménides nunca é citado, creio eu, antes do texto que tem o seu nome, antes destes textos da viragem? Tanto mais insólito quanto a necessidade do “parricídio” no Sofista mostra uma dívida estrutural de Platão em relação ao mestre eleata[44]. Segunda questão, porque é que Platão, no Parménides, em vez de criticar este filósofo como fez a Heraclito no Teeteto, procede inversamente, fazendo-o criticar as Formas ideais como se fosse Sócrates quem devesse ter um ‘aborto’, segundo a temática que domina, como veremos, o Teeteto? A resposta aqui, como à questão do “parricídio”, só pode ser porque as Formas ideais estão muito mais próximas de Parménides, da sua oposição entre o Ser (celeste, eterno) e o não ser (terrestre, corruptível): o que Platão fez foi multiplicar o Ser celeste em inúmeras Formas ideais, ligando assim o Ser e o não ser, estas coisas do mundo que ‘não são’, ligação essa que seria incompatível com a sua recusa de pensar o não ser. Então seria esta ‘contradição’ em relação ao mestre uma razão plausível para o seu silêncio. Só que a argumentação emprestada ao filósofo é obviamente muito mais adequada a Aristóteles (§ 3), é este que, sob a máscara de Parménides (sem se ofuscar com a introdução da definição e suas consequências, a grande separação que levou à noção de ‘pré-socráticos’), reage contra a separação entre estes Eidê definidos e as coisas: “um Eidos de humano separado de nós?” (130b-c), é uma aporia, dirá ele um pouco mais longe (133b). Mas algo há de parmenidiano na argumentação, já que a sua mesmidade do dizer, do pensar e do ser, do dizer-(que)-pensa-o-ser, opõe-se à separação que teria como consequência que as Formas ideais sejam ao mesmo tempo unas nelas mesmas e múltiplas nas coisas, portanto separadas de si mesmas (131b). Sócrates defende-se: 1) com o exemplo do dia que, um e idêntico, está ao mesmo tempo em muitas coisas sem estar separado de si (131a)[45]; 2) “talvez cada Forma ideal não seja senão um pensamento (noêma), existindo apenas nas almas, e portanto una” (132b)[46]; 3) elas estão estavelmente na natureza como paradigmas, enquanto as outras (coisas) se lhes assemelham e são semelhanças delas; a própria participação nas outras coisas (hê methexis tois allois) nasce (gignesthai) das Formas ideais e não é senão o serem parecidas com elas” (232d). Esta última resposta merece reflexão: paradigmas ou modelos “na natureza”, as Formas ideais já não seriam celestes? Estará Sócrates prestes a renunciar à origem divina das virtudes e da sabedoria em troca da definição e da ciência das coisas cá de baixo? O que é certo é que Parménides não tem estas objecções em conta e deixa cair o veredicto final, a mais difícil aporia da teoria das Formas ideais: se elas existem, não são conhecíveis pelos humanos, só o deus as conhece. “Não podemos conhecer o belo ele mesmo, o bom, tudo o que existe em si mesmo” (134a-c), é a fórmula da derrota do platonismo. Em vez de ser Sócrates a mostrar porque é que a doutrina de Parménides é incompatível com a ciência – como o Teeteto fará para Heraclito –, é aqui o velho filósofo quem declara: com a tua hipótese não há ciência, Sócrates. Isto é, não há ciência, Platão, sem viragem.
40. Sucede que a terceira resposta de Sócrates, segundo a qual a participação das coisas ‘nasce’[47] das Formas ideais, é a única ocorrência que consegui encontrar nos textos de Platão que se aproxime dum dos argumentos da critica por Aristóteles da tese do seu mestre: este teria pretendido que a Forma ideal do humano geraria os humanos e o discípulo respondido que as formas ideais geram formas ideais e que os humanos geram humanos[48]. Tratar-se-ia da questão da filiação, tal como a Forma ideal o Bem gerando o Sol na República (§ 27). A participação (metechês, ‘ter’ e ‘com’, ter parte com) admite a filiação como um caso de participação, talvez o caso mais forte, o que justifica o genos, a família e a noção filosófica de género[49], em que o gerado participa do mesmo do gerador, mas é mais ‘geral’ (participar na cidade, na assembleia). Ora, é esta futura critica aristotélica que desenvolve Parménides: um escravo é dum homem que é escravo, não do senhor em si, da essência do senhor, assim como esta o é em relação à escravatura em si que ela é o que ela é (133d-e). Há que citar por inteiro o texto. “Todas as Formas ideais que são o que elas são pelas suas relações mútuas têm o seu ser (ousian) das suas relações umas com as outras, mas não das suas relações com o que são entre nós as suas semelhanças, ou o que se lhes quiser chamar, de que nós temos como participantes (metechontes) delas os nossos nomes particulares. Por outro lado, as coisas do nosso mundo que têm o mesmo nome que elas [as Formas ideais] existem pelas suas relações entre elas [coisas] e não com as Formas ideais, e é delas mesmas, e não dessas Formas ideais, que relevam todas as que são assim nomeadas” (133c-d). Recusa portanto duma relação directa entre a Forma ideal e as coisas que têm o mesmo nome que ela, recusa da famosa participação compreendida como filiação: retorno assim ao antes do Crátilo, que tinha despedido os nomes para estabelecer o conhecimento das coisas pelas Formas ideais, o que pressupus ser a primeira aparição nos diálogos platónicos (§ 15). As Formas ideais, se elas existem lá no alto, têm relações entre elas que nós não conhecemos; igualmente, as nossas coisas têm relações entre elas, que os deuses não conhecem[50]. As consequências desta crítica serão, no Sofista, a introdução da alteridade como não-ser em relação ao ser do mesmo, e portanto o “parricídio”! Mas tal não será possível sem a retomada do dizer-(que)-pensa-o-ser – já não os nomes, mas o discurso[51] – que o Crátilo tinha abandonado para poder afirmar o ser das Formas ideais. Ora, o acento colocado aqui sobre as relações mútuas entre as Formas ideais corresponde à sua desubstancialização ou desontologização[52], é deixar a oposição ser / não-ser em termos de exclusão, tal como o platonismo o atribuiu a Parménides. Tratar-se-ia então do ‘suicídio’ deste no dialogo que tem o seu nome? Julgo que sim, mas não do filósofo, da personagem que Platão ficcionou para as suas necessidades, lendo-o a partir da definição que Sócrates inventou e fazendo dele o seu parceiro durante uma parte da viagem. Precisava com efeito da autoridade do velho pensador[53] para tornar possível esta segunda viragem.

O parteiro de almas
41. Enquanto que a primeira parte do Parménides tem relação clara com o questionamento do Teeteto e do Sofista, a segunda tem uma tonalidade conceptual que não se encontra em qualquer outro texto platónico, como se se tratasse dum exercício escolar que tenha sido colocado aqui mais tarde: como é que Platão vê as consequências do pensamento de Parménides nas suas próprias categorias. Será mais fácil de a entender como sendo posterior ao lançamento da nova problemática no Teeteto, que nos permitirá precisar em que é que consiste a viragem, este questionamento do platonismo. Platão é obrigado a avaliar criticamente a sua descoberta das Formas ideais e portanto também a sua reminiscência, de que não voltará a falar-se, como se – encontrada como resposta à questão principal de Sócrates, a do ensino da virtude – ela funcionasse menos bem na Academia e no seu acento mais ‘intelectual’ do que ‘espiritual’, digamos[54]. Tem que repartir do zero, de repensar a ciência em geral, o saber, e retomar de forma nova a questão da aprendizagem (sob a forma da maiêutica, que o Teeteto teorizará). Trata-se não apenas de saber em que é que se torna a ciência, a caminhada do saber, filosófico, geométrico e outros, neste novo ‘paradigma’ questionando a solução que propunham as Formas ideais, mas também de saber como é possível que haja erro[55]. A experiência sensível é um mundo fechado, sem saída para fora de nós mesmos, sem conhecimento das coisas na sua realidade (Colli, p. 189): o pensamento do filósofo situa-se fora desta clausura, após a saída da caverna da República, metáfora do mundo dos usos quotidianos e das vontades (envies) tanto nas casas como nas cidades, com as suas disputas constantes de interesses contrários, segundo a descrição de Teeteto 173c-176a. Trata-se agora de substituir a reminiscência que permitia compreender a génese do pensamento filosófico, uma experiência tão excelente que não se poderia compreendê-la por aprendizagem de outrem, nisso Platão é constante. Se se lê e discute Platão e os seus argumentos na maneira escolar herdada, arriscamo-nos a perder isto que está primordialmente em jogo: a partir desse “sentimento (pathos) que tu provas, o espanto, já que a filosofia não tem absolutamente nenhuma outra origem” (155d), fazer a maravilhosa experiência de pensar o ser que dura sempre aquém e além dos nascimentos e das mortes, um “pensamento [...] que sonda os abismos da terra e mede a extensão da sua superfície [geometria], prossegue os astros nos céus [astronomia], perscruta de todas as maneiras a natureza e cada um dos seres inteiramente, sem nunca se rebaixar ao que está perto dele” (173e). É esta experiência que é divina.
42. É esta concepção ‘divina’ do pensamento que me parece comandar o recurso à comparação da arte de Sócrates com a da sua mãe, parteira: sempre e em todo o lado o grande enigma nos mitos das sociedades humanas, a fecundidade releva dos deuses. Tanto a dos corpos como a das almas, segundo Platão. Ela atravessa o conjunto do diálogo, desde o diagnóstico sobre o jovem geómetra Teeteto que não soube encontrar a definição de ciência apesar de todos os seus esforços, mesmo recorrendo a outros – “é que tu estás apanhado pelas dores do parto, porque a tua alma não está vazia, mas prenha. [...] Confia-te pois a mim como ao filho duma parteira (maias huion) que também ele é parteiro (maieitikon), e quando eu te puser questões aplica-te a responder-me o melhor que souberes. E se, examinando tal ou tal coisa que tu disseres eu julgar que não é senão um fantasma (eidôlôn) sem verdade, e que então eu to arranque e o rejeite, não te entristeças como fazem a propósito dos seus filhos as mulheres que são mães pela primeira vez” (148c, 151c-d) – até ao desenlace – “agora estamos ainda prenhes de alguma coisa, caro amigo, sentimos dores de parto em relação à ciência ou estamos inteiramente livres delas? Sim, por Zeus, e com a tua ajuda eu disse mais coisas do que aquelas que trazia em mim. Tudo isso, a nossa arte maiêutica diz que é vento e que não merece ser alimentado: se tu tentares para diante conceber outros pensamentos e os conceberes, ficarás cheio de coisas melhores graças a esta discussão, e se ficares vazio não embaraçarás os que frequentares, serás mais doce porque serás sábio bastante para não acreditares que sabes aquilo que não sabes. É só isso o que a minha arte pode fazer e mais nada [isto é, não te posso ensinar nada]. Quanto à arte dos partos, a minha mãe e eu recebemo-la do deus [a fonte da fecundidade], ela para as mulheres e eu para os jovens de alma generosa e para todos os que são belos” (210b-d). Ora, o que o deus dá às mulheres é conceber crianças e aos jovens pensamentos verdadeiros.
43. Com efeito, entre as parteiras, “nenhuma faz o parto doutras mulheres enquanto ela própria for capaz de conceber e de dar à luz, elas são exercem este ofício quando já não podem ter filhos. [...] elas conhecem melhor do que as outras se uma mulher está ou não grávida [...] podem, por meio de drogas e de encantamentos, acordar nelas as dores de parto e diminui-las à vontade, fazer parir as que têm dificuldade em se libertarem, e mesmo provocar o aborto do feto, se acharem que é o adequado [...] Sabem também que mulher copular com qual homem para se terem as crianças mais perfeitas [...] Assim é o ofício das parteiras. É inferior ao meu. Com efeito acontece às mulheres dar à luz por vezes quimeras (eidolas, imagens, fantasmas) e por vezes verdades (alêthina), o que não é fácil de reconhecer. Se tal lhes acontecesse, o mais belo trabalho das parteiras seria o de distinguir o verdadeiro do falso” (149b-150a). “A minha arte de parteiro compreende portanto todas as funções que cumprem as parteiras; mas difere do delas em que liberta os homens e não as mulheres e em que vigia as almas e não os corpos. Mas a vantagem principal da minha arte é a de ser capaz de discernir em qualquer situação se o pensamento (dianoia) do jovem dá à luz um eidolon ou uma falsidade ou se está fecundo do verdadeiro”. Trata-se da questão da possibilidade do erro (e da mentira) que virá mais adiante e no Sofista. “Aliás tenho em comum com as parteiras que também sou estéril em sabedoria (agonos eimi sophias), e a censura que me fazem frequentemente de interrogar os outros sem nunca me declarar sobre nada, porque não tenho em mim nenhuma sabedoria, é uma censura que não falta à verdade. E a razão é esta: é que o deus obriga-me a fazer o parto (maieuesthai) dos outros, mas não me permitiu gerar” (150b-c).
44. Dantes, a alma recordava-se do que tinha conhecido fora do corpo, quando, ‘separada’, contemplava as Formas ideais; a virtude era gerada na alma pela contemplação do Belo nele mesmo (§ 24) através do amor dos rapazes, cujo desejo era ‘sublimado’ para além do amor dos corpos. Agora, desaparecida a reminiscência, Sócrates como parteiro substitui Sócrates como amante. Portanto ele não é o pai, ele não gera. O pai – da virtude no Banquete, aqui dos discursos belos e verdadeiros – é a alma que dá à luz, o que significa que a palavra ‘pai’ é aqui o masculino da palavra ‘mãe’, se se pode dizer (“a alma é um corpo de mulher” é o lindo título dum livro de Giulia Sissa que me foi muito útil), no sentido em que ele ocupa o lugar da que está a ter uma criança: é ele, a sua alma, que dá à luz, ele é o pai do seu discurso ou pensamento. Na descrição da tarefa das parteiras, só se fala dela e da mãe, nunca do pai, que saiu da cena nove meses antes[56]. Aqui também não há um análogo do ‘pai’ que tivesse fecundado a alma deste pai-mãe. A contemplação das Formas ideais da primeiro platonismo não é substituída por nada nesta metafórica: tratar-se-ia, creio, da (maravilhosa) experiência de pensar[57]. Mas que quer a parteira quer Sócrates sejam retirados, estéreis, do processo da herança respectiva (ela da casa, ele da escola) para que ele possa efectuar-se melhor, isso assinala que se trata dum processo que releva dos deuses: a fecundidade. “Eu não sou nada sábio e não posso apresentar nenhuma descoberta (eurêma) que seja nascida (genonos) filha (ekgonon) da minha alma. Mas os que se ligam a mim, ainda que alguns pareçam inicialmente completamente ignorantes, fazem todos, durante o tempo em que me frequentam, se o deus o permite, progressos maravilhosos, não apenas na avaliação delas mas também na dos outros. E é claro como o dia que eles nunca aprenderam nada de mim e que foram eles que encontraram neles e deram à luz muitas coisas belas. Se eles pariram (maieias), o deus e eu somos a causa (aitios)” (150c-d). É certo que o não saber de Sócrates implica que ele esteja lá, mas de maneira a que ele saiba, que a sua intervenção, necessária, não releva da mestria, do domínio. Há uma aporia: os dois são precisos, o deus e o mestre humano. Sócrates vê a prova disso naqueles que o deixam antes de estarem prontos, “desconhecendo a minha assistência e atribuindo-se a eles mesmos a razão dos seus progressos sem me terem em conta” (150d-e), indo para maus mestres, abortaram de todos os germes que levavam; tendo voltado, o deus não permite que alguns sejam recebidos. Em toda esta maiêutica, parece tratar-se da qualidade do mestre, dada a alta qualidade do que é discutido. “Os que se ligam (sungignomenoi) a mim assemelham-se ainda nesse ponto às mulheres que dão à luz: ficam entregues às dores e estão noite e dia cheios de inquietações (aporias) mais vivas do que as delas. Ora a minha arte é capaz de as acordar e de as fazer cessar” (151b). As aporias do saber produzem as dores de parto das almas que o buscam.
45. Como estas coisas se passavam na Academia, não podemos deixar de perguntar, perplexos pela nossa vez, dada a nossa experiência de ensino que não é sempre gratificante. Quando ela o é, “lembra-te meu amigo, que eu próprio não sei nem me aproprio de nada disso, que nesse aspecto sou estéril, que sou teu parteiro e que, nesse sentido, recorro aos encantamentos [pedagógicos?] e sirvo-te as opiniões de cada sábio para que tu lhes tomes o gosto até que, graças à minha ajuda, tenhas dado à luz a tua própria opinião. Então examiná-la-ei para saber se é só vento ou se é um produto de bom quilate” (157d). O que é que é proposto aqui? Um programa para a Academia? A maneira de Platão considerar o ensino, pretendendo que nunca se ensina de si mesmo, pense-se o que se pensar, que o papel da escola é o de propor os saberes aceites no seu tempo (as opiniões de cada sábio) e de avaliar em seguida o quilate dos discursos de cada estudante, de examinar em suma as suas performances de forma singular? Ou, pelo contrário, em vez de ser uma pedagogia generalizável, tratar-se-ia duma maneira de compreender o papel histórico de Sócrates – único, fundador, dir-se-ia – de oferecer a definição como um dispositivo operatório decisivo que todavia dele mesmo não tem conteúdo de saber? Esta segunda hipótese podia adequar-se, em certo sentido, à citação de Aristóteles que tomámos como fio de leitura: ela serviria também a justificar de avanço que Sócrates seja despedido se se trata com efeito duma viragem do pensamento na escola que tem a ver com o estatuto dos eidê ‘definidos’.

A ciência das coisas deste mundo
46. Em que é que consiste então esta viragem? Trata-se dum deslocamento da questão, da problemática: pode haver uma ciência, um saber organizado sobre as coisas deste mundo? Traça-se um novo estaleiro do saber que Aristóteles desenvolverá, retomando – e renovando-o, pela sua maneira de jogar com a definição e com as lógicas argumentativas que ela tornou possíveis, nomeadamente o uso das dicotomias no Sofista e no Político – a tradição das filosofias da phusis. O acento não se porá já na esfera (espiritual, ética) do divino: o estatuto predominante da Forma ideal do Bem – “o mais alto conhecimento, a que as outras virtudes vão buscar a sua utilidade e as suas vantagens” (República 504c), que os filósofos, chegados à maturidade, contemplarão (idem, 540a) – tornar-se-á “a causa da mistura e do nascimento” (Filebo 27b), mistura da “inteligência e da admirável sabedoria, ordenando e gerindo o conjunto das coisas” (idem, 28d), “a alma real e o intelecto real de Zeus, formados pela virtude da causas”, que, nos discursos mais míticos advêm “o autor e pai” e “piloto” do mundo (Politico 273b-c), o demiurgo divino do Timeu.
47. Depois da ilustração da maiêutica, o Teeteto volta à questão inicial: o que é a ciência? (151d), o epistêmê, tanto o que nós chamamos filosofia como ciência, e já a geometria, do que Teodoro é testemunha, pois o que ele ensina é ciência (146c). Com efeito, este coloca as estabilidades geométricas no horizonte do conjunto do diálogo, elas não serão compatíveis nem com Heraclito nem com Parménides. Como pode haver uma ciência – definição de eidê estáveis – de coisas múltiplas e que mudam? Teeteto dá três respostas, uma de cada vez, que são discutidas longamente (sobretudo a primeira: a ciência é sensação) e finalmente rejeitadas. É contra os defensores do primado do movimento, “todas as coisas se movem” (181c), que se põe a objecção: se “nada é em si como si mesmo (auto kath’auto)” (152d), “se tudo se move, não se pode nomear nada, se o branco está sempre em movimento para outra cor, não há nome de cores, cada vez que se fala, a coisa escapa” (182d); menos ainda se poderá definir seja o que for, não haverá portanto ciência possível. Será preciso provar que “ver e saber não são a mesma coisa” (163e-164b), fazer Protágoras confessar que “não se é a medida duma coisa que não se aprendeu” (171c), mas conceder-lhe que cada humano é a medida das coisas no que diz respeito ao quente, ao seco, ao doce, etc., isto é as sensações fora do discurso, mas não o é para se curar a si mesmo (172a). Consegue-se assim provar que o que ‘é’ ou ‘não é’, semelhança ou dissemelhança, identidade e diferença, unidade, par e ímpar, etc., são ‘coisas’ discernidas pela própria alma por ela própria (autê di’autês hê psuchê), que portanto a alma entende ela própria algumas coisas (ser, belo e feio, bom e mau, aquelas que se comparam umas com as outras para lhes examinar a ousia, o ‘ser’[58]) através das faculdades do corpo para os outros: por exemplo, a dureza, moleza pelo tacto, mas a sua ousia, a sua contrariedade e a ousia dela, é a alma que as compara e distingue (185c-186b). Algumas desde o nascimento que são entendidas pelos humanos e pelos animais, outras só dificilmente e após longos estudos, condição para ter a sorte de chegar à verdade: portanto a ciência não está nas impressões (pathêmasin) mas nos raciocínios (sullogismô) sobre elas, que é por onde se vai à ousia e à verdade (186b-d). Estes silogismos supõem definições que dizem a estabilidade do “auto kath’auto” (das ousiai, motivo que parece substituir os eidê) que há que garantir contra os heraclitianos, “os defensores do fluxo (tous rheontas)” (181a) – discutir com eles é como com furiosos” (179e) – sem todavia cair no imobilismo atribuído aos parmenidianos, segundo os quais “tudo é um (hen panta esti) e é colocado estavelmente em si mesmo (auto en autô) sem que haja região em que se mover” (180e). Os argumentos destes não são discutidos: é certo que eles estão mais perto da estabilidade desejada, mas a sua recusa de considerar o movimento tornaria também a ciência impossível.
48. Este balancear entre Heraclito e Parménides, entre o movimento e o repouso (imóvel), será deslindado claramente no Sofista mas aí a questão já não será a da ciência, como se o impasse do Teeteto sobre a definição desta levasse a retomar de outra forma uma das suas últimas questões: como é que se forma em nós uma opinião falsa? (187d), apesar da afirmação de Sócrates de que “não se pode saber o que é a opinião falsa antes de saber o que é a ciência” (200c). Ora, de passagem, Platão sugeriu a contradição de Protágoras: porquê fazer-se pagar para ensinar aos outros, “se cada um forma sozinho as suas opiniões e se essas são sempre justas e verdadeiras [...], para quê serem obrigados a frequentarem a escola?” (161d-e); da mesma maneira, que sejam precisos muitos “trabalhos e estudos” para os raciocínios da ciência (186c) torna implícito que é a escola dele que é necessária. Tudo se passa pois como se o deslocamento do Teeteto para o Sofista seja o da questão da ciência para a daqueles que a põem ou antes a negam com “mudança [...] do alto para o baixo” (Sofista 242c). Além do questionamento surgido dos debates com o jovem Aristóteles, é também por causa dos sofistas, a quem se quer fazer a guerra no terreno deles, e não apenas depreciá-los do alto (idem, 216c): tem-se portanto que pensar também as coisas do mundo, a sua geração.
49. Vejamos muito brevemente a segunda parte do Parménides que saltámos atrás. A questão do Um e do Múltiplo[59] é decisiva no debate sobre a viragem, muito próxima da do Imobilismo e do Movimento que domina o Teeteto e o Sofista (onde a questão do Um servirá de ponto de partida para o “parricídio”). É provável que estas 8 hipóteses sejam (im)possibilidades lógicas a respeito da ciência. Pode-se pensar que a primeira série de 4 hipóteses (o Um existe) corresponda ao platonismo e a segunda (o Um não existe) à sua critica pelo jovem Aristóteles[60]. O conjunto seria um exercício de critica dialéctica para quem quer que queira tomar parte no debate que grassa na Academia. Tratar-se-á de reatar o discurso com o ser terrestre, do dizer-(que)-pensa-o-ser parmenidiano deslocado para o sublunar. O um e o ser, o todo e as partes, o outro, o semelhante e o não semelhante, são “géneros”, categoria que vai dominar todos estes textos, enquanto que não se falará mais do justo nem do belo nem do bom: os Eidê, enquanto Formas ideais, não desaparecem, é certo, mas tornam-se ‘espécies’ lógicas, subordinadas aos géneros (Filebo e Timeu). Os géneros (genos: nascimento, família, linhagem, raça, geração) são categorias dum pensamento (logos, dianoia) que pensa a multiplicidade das coisas do mundo, submetidas ao nascimento e à morte, ao tempo e ao movimento, à geração em suma[61].
50. Em relação com o questionamento inconclusivo sobre a possibilidade da ciência do Teeteto, desdobra-se aqui de maneira muito ampla o leque das 8 (im)possibilidades de ciência, entre Parménides e o Um (ou Imobilismo) e Heraclito e o Múltiplo (ou Movimento), sem haver geómetras na cena, à diferença dos outros diálogos da época. Eis um resumo: a) duas impossibilidades totais, incompreensíveis, as hipóteses III e IX; b) duas ou três impossibilidades do lado de Parménides, as hipóteses I e VI (V?); uma ou duas impossibilidades do lado de Heraclito, as hipóteses VIII (e V?); d) três possibilidades duma certa estabilidade dos eidê autê kath’autê: d1) sem relação às coisas múltiplas, apenas relações entre eles, a hipótese II ; d2) os eidê substancializados do platonismo, a hipótese IV, d3) uma espécie de eidê de pensamento dessubstancializados (que se diriam quase heideggerianos), a que está mais perto de Aristóteles, já que sem separação enquanto tal, a hipótese VI.

O retorno ao discurso e a descoberta da alteridade
51. Vamos então ao Sofista onde a viragem encontrará o seu desenlace. Algumas observações sobre o quadro do diálogo, cuja importância temos várias vezes percebido noutros diálogos. Ele é colocado após o Parménides que é citado (217c, § 36) e do Teeteto (personagem que continua a ocupar o lugar daquele que é interrogado). No lugar do que conduz o questionamento, um Estrangeiro anónimo do círculo de Parménides e de Zenão: ruptura com Parménides, mas na continuidade, como se diz, já que se trata dum Eleata a conduzir as coisas, com a marca clássica em Platão de, quando há inovação, invocar a divindade (“é um deus da refutação?”), os filósofos são divinos, “eles olham do alto a vida dos que estão em baixo” (concepção ‘altiva’ da filosofia). Deixa-se de se falar em maiêutica, que parece substituída por uma argumentação de índole escolar dita refutação e pelo novo método da divisão em partes (meros). É algo que é novo em Platão, ele começa por exemplificar com a “classificação” da pesca à linha (221b). É a primeira vez que encontramos Platão a ‘analisar’ coisas do mundo, sem relação, parece, com as Formas ideais do platonismo; se estas relevam da definição, parecem substituídas pela forma geométrica da dicotomia, de cortar em duas partes (ou metades) que são classificadas em “espécies” (eidê), em classes, e de excluir um dos dois termos. Sem mistura portanto, antes do mesmo e do outro. Como se a mistura fosse, senão o regresso da definição ao contexto donde ela arrancara o definido, pelo menos o retorno do eidos como pensamento, retorno aos entes (um e múltiplos), depois da critica da separação.
52. A questão da ciência é posta através daqueles que se reclamam dela: o que é que ensinam os sofistas? As coisas divinas e as visíveis, a geração a o ser de todas (as coisas), as leis e os negócios públicos, as artes e cada uma delas (232c-d); são verdadeiros concorrentes da Academia, ou é a Academia que lhes veio fazer concorrência buscando a ciência das coisas do mundo? Não se poderá decidir, mas segundo Platão a ciência deles é de opinião sobre todas (as coisas), não a verdadeira (233c). E aí está a aporia: como é que se pode falar das coisas sem dizer verdade? Falar ou opinar falsamente pode realmente ser sem contradição? (236e-237a). Para poder chegar a uma ciência das coisas do mundo, Platão deslocou a questão do Teeteto, o que é a ciência? para a da possibilidade da falsidade, que em Parménides consistia em falar do não-ser: “esta asserção implica a audaciosa suposição de que o não-ser existe, porque de outra maneira o falso não poderia ser” (237a). Tratar-se-ia de “dizer ou pensar o próprio não-ser segundo ele próprio (to mê on auto kath’auto)” (238c), de o dizer ou pensar enquanto eidos: eis o fracasso inicial, é dele que se terá de sair.
53. Para o conseguir, Platão põe uma questão impensável para o seu platonismo anterior, que detestava as imagens como cópias de cópias, como vivos mortos (§ 31). A imagem é um outro (heteron), semelhante ao verdadeiro (239d-240a). O que está em questão é que entre coisas semelhantes, encontra-se um eidos comum; mas se se tratar dum original e da sua cópia, não verdadeira, pintada, em imagem, em suma um retrato? será uma possibilidade de não-ser através do outro. Este ‘tal’ (ti) é o quê? Não é verdadeiro, mas semelhante. Contrário? Não existe? De certa maneira, o retrato, realmente uma imagem, existe, não-ser (ouk on) chamado imagem (eikona); portanto um certo (ti) entrelaçado do não-ser ao ser (tô onti). O jogo far-se-á entre duas formas gramaticais gregas de negação, entre ouk, ‘não’ que se opõe, e , ‘não’ mais suave (em latim, diferença que pode ser equivalente a aut e vel, em francês entre ‘non’ e ‘ne pas’)[62]. Portanto o não-ser existe duma certa maneira. Ora, a imagem introduziu a noção de outro, outro do que aquilo que a coisa é (o retrato da Sophia é a Sophia, sem ser ela mesma em pessoa). Tratar-se-á em seguida de passar ao discurso e ao pensamento. Isso só se pode fazer com violência, um parricídio, ou uma loucura, uma reviravolta de alto a baixo. O parricídio (patraloian)[63]: “provar com violência que o não-ser (doravante : to mê on, e não mais ouk on) é dalguma maneira e que o ser não é de de certa maneira”, condição para poder falar de discursos falsos, de simulacros, de imagens, de imitações, de aparências (241d-e). “Sou inexperiente para uma refutação assim [...] tenho medo de que após esta confissão, me tomes por um louco, vendo-me eu próprio a mudar de alto a baixo” (242a-b). É aqui que há ruptura, com Parménides, é certo (já que em consequência da sua refutação da teoria ‘substancialista’ do platonismo, baseada na oposição ser / não-ser), mas retomando com ele de outra maneira (é por isso que não podia ser Sócrates a conduzir a argumentação): trata-se, em suma, da sua ‘destruição’ (mudar de alto a baixo) – em sentido heideggeriano –, que se faz tendo em conta o ‘ser e não-ser’ da linguagem que nomeia e define, segundo o dizer-(que)-pensa-o-ser parmenidiano, jogado agora nas coisas deste mundo (contra Parménides pois). Com efeito, após evocação de várias doutrinas dos Antigos, já não se sabe o que é o não-ser e também não o ser (243b-c), faz-se pois tábua rasa, um pouco à maneira do inicial ‘saber que não sabe’ socrático, tudo na filosofia é a retomar. Se não há senão um ser, um e ser, são dois nomes para o único (tõ auto)? É desrazoável dizer que tal nome é (hôs estin onoma ti); chega-se à questão da pintura: a imagem existe? o nome existe? Tem que ter alguma existência, não ‘real’ como a das coisas: “colocar o nome como o outro (heteron) da coisa, é dizer (que há) dois em algum sítio (que são) tais” (244c-d). É assim que, como há pouco com a imagem, o heteron entra em cena com o nome e logo a seguir o mesmo (tauton). Ora, o nome, como a imagem, é outro e mesmo do que a coisa nomeada, mas, à diferença da imagem, ele também o é de outras coisas nomeadas com o mesmo nome. As quais, visto que têm o mesmo nome, tornam-se susceptíveis de serem definidas: era o que o Teeteto buscava no fundo, estabilidades susceptíveis de ciência[64]. “Colocar o nome como o mesmo (tauton) que a coisa (autô), é necessariamente dizer que ele (é) o nome de nada, ou então o nome dum nome, de nada de ente (on)” (244d), o que significa que o nome não é nada sem a coisa, que é nada de coisa. A sua função de introduzir o outro tendo sido cumprida, o nome desaparece da discussão que continua em torno das categorias do Parménides. Um pouco adiante, a questão da ciência – “conhecer ou ser conhecido” (248d), “o que é idêntico a si pode existir sem a estabilidade (chôris staseôs, sem o repouso)?” (249c) – é colocada à maneira do Teeteto: há que recusar a imobilidade universal (do um ou de eidê múltiplos) e o movimento do ser em todos os sentidos. Para que a ciência seja possível, há que recusar tanto Heraclito como Parménides, o movimento ou, em alternativa, o repouso, já que nenum deles permite a ciência: é necessário, golpe de génio, ambos ao mesmo tempo! Para não “abolir a ciência, o pensamento, o intelecto”, “é prciso imitar as crianças que desejam os dois ao mesmo tempos, reconhecer tudo o que é imóvel e tudo o que de move, dizer o ser e o todo juntos” (249c-d). Eis pois o Teeteto conseguido: nem Heraclito ou o movimento nem Parménides ou o repouso, mas ambos em conjunto. O que implica trazer o céu dos eidê, das Formas ideais, à terra da phusis, da geração, ultrapassar essa separação.
54. Parte-se de novo assim do movimento e do repouso ao mesmo tempo: “[...] ao dizer que os dois (movimento e repouso) e cada um existem igualmente [...] coloca-se o ser na alma (to on en tê psuchê) como uma terceira (coisa) acrescentada aos dois outros, [...] outro (heteron) do que eles” (250a-c). Portanto pensar[65] o movimento e o repouso implica acrescentar-lhes o ser, é isso a ciência; eis pois que volta o heteron, após a imagem e o nome, agora com o pensamento da alma: trata-se pois de Parménides (o dizer-(que)-pensa-o-ser) contra o Parménides do platonismo (a separação ser / não-ser), este deslocado para as coisas do mundo da geração e da corrupção. Os eidê não são ser, mas pensamento, discurso. Com efeito, é este que dá vários nomes à mesma coisa; ela é una, nós pomo-la como múltipla (251a-b). Nas coisas (unas) misturam-se (múltiplas) – sujeito e predicado, na linguagem da escola – aquilo que, ao nível do discurso que as define, não se mistura (os eidê, revindicação de sempre daquele que, discípulo de Sócrates, introduziu a definição em filosofia: as Formas ideais não se misturam). Assim as letras combinam-se, umas e não as outras, para formar as palavras[66], e também os sons musicais. Há artes para saber estas misturas, assim como é necessária uma ciência para discernir os géneros (ta genê), os que se misturam e os que não o fazem, a ciências das (pessoas) livres, a filosofia (253b-c). É a primeira vez que os géneros intervêm no debate que lhes diz respeito, é o que permite passar das ‘coisas’ à ciência. E “[...] será que nos sucedeu que, à procura do sofista, encontrámos primeiro a filosofia?” (253c) Era o que procurava o Teeteto.
55. O debate estabelece, como se sabe, os cinco géneros: o ente-ser (to on auto), o repouso (stasis), o movimento (kinêsis), o mesmo (tauton) e o outro (thauteron). Repouso e movimento não se misturam, mas o ser com eles sim; cada um é outro dos outros e o mesmo de si; o mesmo não é o mesmo que o ser; depois o outro: entre os entes (tôn autôn), uns eles mesmos segundo eles mesmos (auta kath’auta), outros relativos a outros (prós alla); acontece que (sumbebêken)[67] tudo o que é outro não é o que é senão pela sua relação necessária a outra coisa (245b-255d). O quinto género, o outro, penetra em todos os outros; pois cada um é outro do que os outros não pela sua natureza mas por participar da ideia do outro (metechein tês ideas tês thauterou) (255d-e) e, como ele é outro do que o ser, ele é não-ser (mê on) (256d). Em resumo, o movimento lógico foi o seguinte: Parménides teria pensado a relação ser / não-ser em termos de exclusão, tal como o movimento e o repouso se excluem, ou é um ou é o outro (ou grego, aut latino, non francês); aqui, ao contrário, pensa-se essa relação em termos de alteridade, segundo mesmo e outro (, vel, ne ... pas). “A natureza das espécies comporta uma comunidade recíproca” (257a), pois está-se agora no domínio do pensamento, do pensamento da geração (genos) terrestre que pede que os eidê que lhe dizem respeito – já que os vivos mudam – comuniquem entre eles. Tudo se passa como se o modelo da geração dos discursos em Fedro II e no Teeteto tivesse conseguido contaminar a solidão celeste: celeste e terrestre ao mesmo tempo, já não separados; segundo o Sofista, todas as outras doutrinas separariam, seja para o alto, seja para o baixo, incluindo o platonismo (“os amigos das Ideias”, 248a-b). Dir-se-ia Aristóteles a falar! A conclusão do debate dos géneros que se misturam (258e-259b), ao mesmo tempo difícil e belo (259c), é que a ciência é possível: não se deve “separar tudo de tudo”, já que “desligar cada (coisa) de todas (as outras) é abolir todos os discursos, pois que é pelo entrelaçamento recíproco dos eidôn que o discurso nos nasceu” (259d-e). Com efeito, esta batalha era oportuna “para (assegurar) ao logos ser entre (um d)os géneros dos nossos entes. Se estivéssemos privados dele, do mais importante, então estaríamos privados da filosofia” (260a). O discurso encontrou com efeito o seu lugar entre as coisas de que Platão fala: ele não é elas, sendo no entanto, duma certa maneira, tal como as imagens, o mesmo que elas. Assim o dizer-(que)-pensa-o-ser de Parménides foi restabelecido, se dizer se pode, em relação às coisas deste mundo. Mesmidade do dizer e do ser: “o discurso, desde que seja um, é necessariament sobre qualquer coisa, é impossível que ele seja sobre nada” (262e), e no entanto acaba-se de estabelecer a possibilidade do não-ser: este ‘nada’ era o não-ser de Parménides. E também mesmidade do discurso e do pensamento: “pensamento e discurso são a mesma coisa, só que o discurso interior que a alma tem sem voz consigo mesma recebeu o nome especial de pensamento (dianoia) [...] mas a corrente sonora que sai da boca recebeu o nome de discurso (logos)” (263e).

Pensar a geração
56. Os dois livros que se seguem, o Político e o Filebo, aplicam o novo método descoberto pelo Sofista, segundo o novo paradigma da mistura: um deles entre a coragem e a moderação, o outro entre a sabedoria e o prazer, assim como estabelecem uma hierarquia das “ciências” nos domínios respectivos, da politica e da ética. Em certo sentido, é uma confirmação da citação de Aristóteles que pusemos como fio de leitura (§ 3): Platão não se dedicou com a definição senão às questões politicas e éticas (e não às da phusis). Mas há um mas.
57. Encontra-se no Filebo, retomada em seguida pelo Timeu, uma tentativa de pensar os seres vivos, a sua geração: esta até aqui serviu de modelo de pensamento mas sem ter sido pensada ela mesma. A apresentação da aporia parece sugerir que Sócrates, regressado ao seu posto de antes do Parménides, retoma a posição do platonismo, sob forma de controvérsia, quiçá didáctica: “contesta-se se eles (o humano um, o boi um, o belo um, o bem um) são mónadas[68] verdadeiramente existentes (ousas), pois como é que cada uma sempre[69] una ela mesma (mian ekastên ousan aei tên autên), subtraída ao nascimento e à morte, pode ser assegurada desta mesma unidade nas coisas de geração em número infinito, quer dispersa e multiplicada, quer inteiramente cortada de si mesma – inadmissível[70] –, mesma e una ao mesmo tempo no um e no muitos (tauta kai hen hama en heni kai polla). São estas questões que causam aporias” (15b-c). Ora, logo a seguir, recorda-se o Sofista: “um e múltiplo sob os discursos (hupo logôn) em cada dizer” (15d), seguido do exemplo das letras e da “voz que sai da nossa boca (que) é una e ao mesmo tempo indefinida em número por todos e por cada um” (17b). Um novo pensamento ocorre a Sócrates-Platão: “presente dos deuses aos humanos, [...] os Antigos que viviam mais perto dos deuses do que nós transmitiram-nos esta tradição: todas as coisas ditas existir (provêm) do um e do múltiplo, tendo nelas o limite e o ilimitado (peras kai apeirian) unidos naturalmente (sumphuton)” (16c-d, ver também 20b e 25c); é preciso portanto procurar sempre em cada uma uma forma ideal (mian idean) [...] depois dois, três ou mais [...], mas também quantas [espécies] ela contém entre o um e o ilimitado e não passar sem mais do um ao ilimitado” (16d-17a). Exemplos do ilimitado: os que têm mais e menos, excesso e falta; se há limite, medida, deixam de ser o que são; critério: é ilimitado tudo o que é susceptível de devir mais ou menos, susceptível de ‘demais’ (24a-25a), como quente – frio, seco – húmido (estes quatro da medicina grega), o mais ou menos abundante, rápido ou lento, grande ou pequeno, forte e manso (para as acções, entre violento e tranquilo). Quanto ao limitado, é o que releva dos números e da medida (o igual, o dobro, o que torna comensuráveis os contrários, introduzindo neles o número[71]). Chega-se enfim à proposição que tenta compreender o nascimento (das coisas), como é que elas vêm ao ser: “penso que há nos entes ilimitado e limite, ponhamos duas espécies, e a terceira (que) da sua mistura juntos (faz) um. Um quarto: a causa da mistura mútua dos dois primeiros” (23c-d)[72]. Ou ainda: “o ilimitado, o limite, a essência (ousian) misturada e nascida dos outros dois, a causa da mistura e do nascimento”, esta última tendo sido dita demiurgo (27b).
58. O Timeu retoma e melhora esta proposta: deixando cair a mistura, substitui o ilimitado por chora (lugar, espaço, região) e a causa–demiurgo[73] pelo modelo reproduzido, um eidos. Agora já só há três géneros: “o que nasce (to gignomenon), aquilo em que ele nasce (to en ô gignetai) e o a partir de quê cresce (phuetai) o que nasce” (50d). É certo que o sentido mais geral de gignetai é ‘devir’, no sentido de ‘vir a um outro estado’, de ‘chegar’ uma das formas (no aoristo) do verbo ‘ser’ (einai); não impede que, tratando-se de pessoas, – e é esse o sentido original da palavra (em Homero) – ele significa ‘nascer’. Aliás, o uso de phuetai assinala que se trata aqui sobretudo dos seres vivos, cujas mudanças consistem antes de mais no nascimento e no crescimento. È com efeito assim que o texto prossegue logo a seguir: “alem disso, pode-se justamente assimilar o que recebe (dechomenon) à mãe, o a partir de quê ao pai, a natureza da mistura dos dois à criança” (ibidem). O que significa que quando Platão chegou, retomando o seu primeiro ensaio do Filebo, a pensar o que Heidegger chamava “a vinda ao ser”, pensou-a como nascimento e crescimento do que nasceu. Seria interessante seguir a utilização da palavra genos nele, nomeadamente antes da viragem, já que ele parece aqui muito bem ajustado, no sentido donde vem a palavra ‘genealogia’: esta é a forma social de delimitar a fecundidade dos humanos, de situar e de guiar o crescimento de cada um no seio da sociedade. Aqui Platão ‘generalizaria’ a palavra, isto é, delimitaria (definiria) o caos do que há que pensar, como os entes do mesmo nome e definidos segundo o mesmo eidos vêm ao ser. A geração foi nele durante muito tempo modelo do pensamento, para as coisasa nascidas dos seus Eidê eternos, o Sol filho do Bem, o discurso filho da alma que o dá à luz, chega enfim ao cabo, à própria geração. Ora, o Timeu dá-se como o acabamento do discurso de Platão, a sua cosmogonia, o seu “discurso sobre o universo” (92c). Discurso portanto sobre o começo, mas que a um momento dado do seu percurso (48a-b), é Derrida quem o assinala[74], se torna um começo antes do começo, onde, além dos “dois eidê que tínhamos distinguido” (48e) – e será o pai e o filho –, será necessário um terceiro género, chôra, nem ente nem ser, o que recebe eidê e dá lugar a entes. Na interpretação de Derrida, estes dois eidê seriam o inteligível e o sensível, a binaridade oposicional do platonismo, chora, o intervalo, o espaçamento não originário antes da origem, e sobretudo não a ‘mãe’, ‘nutridora’, com a qual se costuma no entanto fazer a comparação. Quer dizer que, sempre segundo Derrida, este último texto, após a viragem, guardaria o esquema pai-filho que serviu de modelo de pensamento ao platonismo: apesar do exemplo, ele não teria introduzido o feminino. A não ser que se pense que se trata da vinda ao ser de cada um dos entes terrestres, e que entre essas vindas, os nascimentos dos vivos, e singularmente os dos humanos, não são apenas um caso no meio dos outros (as produções das artes), os seus nascimentos são a vinda ao ser por excelência[75]; então talvez se possa dizer que este “chôra não é a ‘mãe’, ‘nutridora’” seja a ler também como denegação, que ela também o é, o texto explicita-o: portanto não e sim, tratar-se-ia já de filosofia e de phusis, já perto de Aristóteles. Porque é provavelmente impossível decidir nesta viragem (do) (após o) platonismo. Este é a separação (chôrismos) entre os Eidê, as Formas ideais que só elas são, e as suas reproduções terrestres que nascem e morrem, portanto não são. A viragem, ligada às discussões com o jovem Aristóteles, contradiz a separação, conduz à abordagem da geração (Filebo e Timeu). Difícil de decidir que ainda é platonismo (separação do pai e do filho) ou que já não é, chora não permitindo mais essa separação entre ser do um e não-ser do outro[76]. Parecer-me-ia que a leitura de Derrida, restringida ao texto do Timeu[77], decide pelo platonismo. Pode ser. Sim ou não? Sim e não?

A abertura do espaço para a Physica de Aristóteles
59. Ao ler estas tentativas de pensar a geração, não se pode deixar de pensar em Aristóteles, discípulo de Platão. É claro que haverá já algo do hulê e do eidos segundo o logos n’ “o ilimitado e o limitado” do Filebo, em “chora e o a partir de quê cresce o que nasce” (o eidos do platonismo ou o seu herdeiro), como confirma o exemplo do ouro, que recebe muitas figuras diferentes do artista (dir-se-á ‘é ouro’, como o equivalente ‘bronze’, exemplo de hulê na Physica, II 192b) “como a natureza recebe todos os corpos” (Timeu, 50c)[78]. Mas sem relação, em Platão, com o movimento (as mudanças dos vivos nomeadamente) que está no coração da Physica: Platão, matemático, teve sem dúvida sempre má relação com o tempo. Que Aristóteles tenha guardado o mesmo nome de ousia assinala que nele não há já separação entre substância (a coisa una) e essência (o seu eidos comum com outras coisas unas), entre as ‘coisas’ da phusis e as suas essências. O que me importa aqui – recordando que Heidegger escreveu que “a Physica de Aristóteles é, em retracção, e por essa razão nunca suficientemente atravessado pelo pensamento, o livro de fundo da filosofia ocidental” – não é todavia a oposição entre o discípulo e o mestre, mas o inverso. A leitura, há alguns anos, dos primeiros livros da Physica tinha-me deixado o sentimento duma admiração imensa pelo génio inventor do grande Estagirita. Acabo de compreender que Platão fez uma boa parte do trabalho relevando da invenção da definição, foi esse trabalho que Aristóteles – ainda que com a sua contribuição para ele, para a viragem do pensamento do mestre – encontrou na Academia, que lhe permitiu a invenção da sua ousia physica, assim como das suas descobertas por disciplinas. Pode-se com efeito sublinhar que no Timeu o discurso sobre os corpos, as sensações, os órgãos dos humanos, circulação e nutrição, respiração, etc., falando-se por vezes do Mesmo e do Outro, esboça o que a Physica fará: Platão ocupou-se portanto pela primeira vez destas questões, tornadas possíveis pelo Sofista. Auguste Diès escreveu o seguinte: “quando se vê que este segundo livro (dos Homoia, de Speusipo[79]) e a História dos Animais de Aristóteles enumeram frequentemente as mesmas classes, quase todas as mesmas espécies, não se poderá desconsiderar tudo o que estes exercícios dialécticos da Academia prepararam tanto de matéria como de método para a ciência aristotélica”[80].
60. Terá havido assim três épocas dos escritos de Platão: o período socrático, o platonismo e o que se poderá designar como pós-platonismo, uma espécie de pré-aristotelismo. Foi o segundo que sobreviveu, que é sempre designado com o nome de Platão.

Platão e Sócrates
61. Para terminar, há que reavaliar o lugar de Sócrates no texto assinado por Platão. Para começar, que a demonstração da imortalidade da alma tenha sido desenvolvida, por uma espécie de argumentação ‘existencial’, digamos, no dia da morte de Sócrates, quer dizer como se se tratasse antes de mais da demonstração da imortalidade da alma virtuosa e filosófica de Sócrates, isso implica a convicção filosófica de Platão de que a alma dele está definitivamente com os deuses, que ela não voltará a tomar corpo. A trilogia (típica do teatro trágico) da Apologia, o Criton e Fédon I, condenação politica injusta, recusa de fuga clandestina e execução aceite, pode ser comparado, mutatis mutandis, com a narrativa da paixão de Cristo e à sua ressurreição e divinização pelos que o seguiram: nos dois casos, trata-se da proclamação da grande qualidade humana, sobre-humana, do que eles fizeram, como viveram, ensino duma nova maneira de fazer, duma nova maneira de viver, mais do que de novos saberes ou doutrinas. Poder-se-ia então compreender o que chamei pseudo-epigrafia um pouco à semelhança da maneira como a ‘prática – saber’ de Jesus foi a fonte do cristianismo. Sócrates seria em Platão, que se quer seu discípulo fiel, Sócrates porta-voz que ultrapassa Platão, como se falasse dum lugar quase divino, se se tratasse duma quase revelação em sentido grego. Talvez que, mais do que um laço entre uma busca da virtude (da santidade, em categorias judaicas e cristãs) e do saber, haja que falar da sua unidade prévia, acentuada pela demonstração da imortalidade da alma feita a partir da condenação à morte do justo e sábio Sócrates. Foi essa viragem do que chamei pós-platonismo que veio a dissociar as duas dimensões. Tratar-se-ia de compreender que Sócrates terá sido para Platão – que já conhecera Heraclito por intermédio das lições de Crátilo e conheceu depois Pitágoras e Parménides – uma espécie de revelação de algo de totalmente novo, esta busca da virtude politica pelo jogo dialógico para as definições. Foi a partir dele, começando por escrever os seus diálogos, que ele empreendeu a continuação dessa busca, procura mais do que saber.
62. Eis então a minha ficçãozinha. No tribunal, Platão, amigo e discípulo, está presente enquanto testemunha da ‘vida’ de Sócrates. Mas não está na prisão – “Platão, creio, estava doente” (Fédon, 59b) –, não é testemunha da sua morte, este desenlace fá-lo doente, não pode testemunhar da partida, o seu pensamento não parte, continuará na escrita dele, Platão. Pense-se no que pode ter sido para um ateniense a leitura da República em que Sócrates propõe – num ‘eu’ permanente, caso único em Platão – a reforma da cidade: uma espécie de desforra do veredicto que o condenou, que um ateniense lê uma dezena de anos após que a cidade o tenha condenado à morte, esse texto em que Sócrates diz constantemente ‘eu’ para pedir a reforma total da cidade, das suas leis[81]. O pensamento dum ausente daqui, do lugar do corpo, que se passeia por céus e terra (Teeteto, 173e, § 39), retrato de Platão aliás mais do que de Sócrates. Ora ele ausenta-se por sua vez da sua escrita, Platão, quando se o lê é Sócrates que se encontra, ligados para sempre, inseparáveis, o filósofo e o seu discípulo querido (como outrora Parménides e Zenão visitando Atenas). O regresso de Sócrates no Filebo, cujo nome evoca a philia, a amizade, o amor da sabedoria: ele regressa para ficarem ligados de novo, após todo este processo de intelectualização escolar da philia-sophias, para religar os prazeres puros da alma e a sabedoria, o amor dos rapazes como entrada para a sabedoria, na filosofia, para que nunca se possa decidir entre mestre e discípulo, entre quem e quem, entre Sócrates e Platão, entre Platão e Sócrates. Reforçar nos começos da grande aventura que, de maneira geral, não se pode nunca, na obra de quem quer que seja, dissociar, a favor ou contra, o que reenvia aos seus mestres, ou até a toda a gente com quem ele dialogou, entre escuta e fala.
63. Sem ser o pai do platonismo – já que ele não ‘sabia’, era estéril – Sócrates terá sido o parteiro de Platão. Aparentemente Aristóteles conseguiu provocar uma nova viragem em Platão, o que seria o reverso da maiêutica, o discípulo que não obedece ao mestre, o parido que se impõe ao parteiro. Esse golpe foi merecido, já que Platão também o tinha feito ao seu parteiro. Nestes partos entre homens, nunca se pode estar certo dos papeis de cada um.
Colares, Junho / Outubro de 2005








[1] No início do diálogo do Parménides, suposto passar-se antes do nascimento de Platão, encontra-se uma ficção sobre a transmissão deste diálogo sem escola nem escrita, por alguém que na sua juventude o tinha decorado dum testemunha e agora o conta, alguém que não se dedica já à filosofia, que voltou à equitação, aos negócios das casas. Ora, trata-se de Antifão, meio irmão de Platão (também são citados os dois irmãos que são interlocutores da República) : confirma-se o autor da ficção e evocam-se, uma após a outra, as duas formas de herança.
[2] Dever-se-ia reflectir sobre o facto de muitos diálogos de Platão são ‘contados’, “cuja origem ou a primeira enunciação parece sempre retransmitida (relayée)” (Derrida, Chora, p. 65), “cada narrativa sendo o receptáculo doutra”, “lugar de acolhimento ou de alojamento” (idem, p. 75). Eis uma possibilidade, que não impede outras: tratar-se-ia do jogo do texto ‘gnosiológico’, enquanto intemporal, fora do aqui e do agora, que ele, Platão, está inventando; deslocaria os contextos de enunciação para os desvalorizar, para esconder as suas marcas singulares de escrita.
[3] É a justificação que o Fedro dá para a escrita : ajudar mais tarde o que escreveu (adiante, § 31). Assim o personagem Euclides no prólogo do Teeteto: “logo que cheguei a casa, pus por escrito as minhas recordações e redigi em seguida tudo o que me lembrava e, sempre que ia a Atenas, interrogava Sócrates de novo sobre aquilo de que me não lembrava e voltando aqui, corrigia as minhas notas, de forma que tenho essa conversa [o texto do Teeteto] escrita quase inteiramente” (143a).
[4] Sigo aqui a lição de G. Colli, Nature aime se cacher (ed. L’éclat, 1994, original italiano de 1948), sobre as três edições do Fédon (respectivamente Fédon I, 57a-69e e 114c-118 depois Fédon II, 69e-95e e 107b-114c e Fédon III, 95e-107b) e as duas de Fedro (Fedro I, 227-257b e Fedro II, 257b-279c), repartições apoiadas em análises estilísticas cerradas. A Apologia, o Críton e o Fédon I, formam uma espécie de trilogia trágica (mas com lição anti-trágica, que o virtuoso tem que aceitar, desejando a morte), como o próprio Platão dá a entender: “para mim, é neste instante que o destino me chama, como diria um herói de tragédia”, Fédon I, 115a. Para os concursos, os poetas compunham três tragédias em torno duma casa, a regra sendo, segundo a Poética de Aristóteles (4.1449b12-13), que a acção deveria durar apenas um dia (durante o qual se contaria tudo o que aconteceu antes), regra que Platão observa. Parece que serão os três primeiros textos que Platão terá escrito. Para as citações de Platão, servir-nos-emos da tradução de Chambry (Garnier Flammarion, Baccou para a República), por vezes com pequenas correcções no sentido da literalidade.
[5] Bem diferentemente, a psicanálise de Freud, a destruição do substancialismo por Heidegger, a desconstrução de Derrida, todos herdaram desta maiêutica socrática: desfazer-se do aprendido na cidade como condição de acesso a um saber libertador.
[6] Os novos interlocutores são dois irmãos de Platão, Glauco e Adimanto. É porque Platão vai defender a abolição das casas (da propriedade privada, do casamento, da paternidade e da maternidade) que ele quer gente da sua própria casa como testemunhas? Pode-se também observar que, sem nenhuma espécie de prólogo, é o próprio Sócrates que conta logo do início este longo diálogo, incluindo o seu quadro inicial, usando o ‘eu’ e sem nenhum interlocutor a quem conte, como sucede, por exemplo, no Protágoras e no Eutidemo, Ora, parece que fora o caso particular da Apologia, apenas procede desta maneira o Carmide, onde se trata dum primo de Platão (e dum tio, Critias, que volta com Timeu nos diálogos que têm os seus nomes). Neste caso, pode-se suspeitar que o seu jovem primo seja uma maneira discreta de Platão contar o seu próprio encontro com o mestre. A questão é: qual seria a razão desta enunciação em ‘eu’? Ela talvez sublinhe a pseudo-epigrafia (o ‘eu’ de Sócrates é também o ‘eu’ de Platão, que está a afastar-se do mestre), quiçá sob forma de denegação, quer porque ainda não pensou em substitui-lo, quer ao invés porque aqui – na grande tese de Platão – não haja que o fazer, antes ‘reforçar’ o ‘eu’ do mestre (a tal denegação).
[7] Método que, assinala Baccou detalhadamente (nota 65, p. 394), é seguida sistematicamente nos livros II-IV e VIII-IX, mas não nos outros.
[8] Os livros V-VII são chamados “a grande digressão”, sem que, tanto quanto eu saiba, se tenha dado pela costura. No entanto, segundo o testemunho de Aulu-Gelle, Xenofontes teria conhecido duas edições, que ele teria refutado. Houve portanto primeiro uma edição do livro I, entre os outros textos socráticos sobre as virtudes, de seguida uma primeira edição da República, compreendendo os livros I-IV e VIII-IX, onde era questão da comunidade de mulheres sem ser argumentada, o que teria tido consequências desagradáveis, nomeadamente uma comedia de Aristófanes, brincando com esta doutrina inverosímil, o que terá levado Platão a responder de maneira argumentada, na segunda edição, a nossa, juntando-lhe a teoria das Formas ideais. Sem que Colli fale delas, as costuras entre Fedro I e Fedro II e entre Fédon I e II são feitas de maneira que não se dá por elas, enquanto que a que há entre Fédon II e Fédon III é um belo artifício literário: “estas palavras de Sócrates foram seguidas dum silêncio que durou muito tempo. Ele próprio estava visivelmente absorvido pelo que tinha sido dito durante a conversa e a maior parte de nós também. No entanto, Cebes e Símias conversavam entre eles em voz baixa e Sócrates, tendo dado por isso, dirigiu-se-lhes [...]” (84c), esta frase final sendo semelhante à da costura entre os livros IV e V da República.
[9] “A cidade de que traçámos os planos [...] situa-se em discurso, já que não exista que eu saiba em lugar nenhum da terra. Mas há talvez um paradigma dela no céu para quel quiser olhálo e olhando-o residir nele. De resto não importa qe essa cidade exista ou deva existir um dia: é às suas leis, só dela e de mais nenhuma, que o Sábio conformará a sua conduta” (529a-b).
[10] O admirável livro de G. Colli, Nature aime se cacher, critica os seus predecessores de terem privilegiado a dimensão intelectual em detrimento do que chama ‘mística’, e que tinha ilustrado nos chamados Pré-socráticos, mas por sua vez, fiel demais a Nietzsche porventura, ele reduz esta dimensão intelectual a uma decadência do velho Platão, lamentando que o racionalismo (e o pessimismo religioso e o ascetismo romântico) tenha(m) ganho ao misticismo dionisíaco (não religioso). “Nasce então a ciência, como sistema de saber destacado da vida: o conhecimento é um fim em si, apenas subordinado a uma unidade construtiva” (p. 313). A própria preocupação com o politico e com a paideia, com a educação dos jovens em vista da vida politica, seria tardia e faria parte da decadência (p. 270). É pena todavia que as suas análises se teçam, ao invés de Nietzsche, nos conceitos da descendência europeia desse intelectualismo censurado, da oposição sujeito / objecto, númeno / fenómeno.
[11] A dificuldade principal das nossas leituras destes textos é que nós dependemos deles nas nossas categorias, seja para os aceitar ou para os criticar. É impossível lê-los como se fôssemos leitores do 4º século antes de Cristo, de tal maneira o debate Platão / Aristóteles, ao longo da história do cristianismo e depois da Europa, foi ‘fundador’ da nossa modernidade tanto filosófica como cientifica.
[12] Exemplo da antiguidade destes textos, Criton 47d faz alusão à alma sem a citar, o que obriga o comentador a explicitá-lo na nota 43, p. 184.
[13] É o que mostram os retratos admiráveis de Parménides, Héraclito e Empédo­cles por Colli.
[14] Esta palavra grega é traduzida habitualmente ou por Forma ou por Ideia, a primeira dizendo nas nossas línguas a relação quase metafórica à visão (eidos, de eidein, ver), a segunda a ancestralidade platónica das ‘ideias’ europeias. Ambas as conotações devendo ser guardadas, opto por Forma ideal.
[15] O sonho chega e impõe-se ao que dorme, insiste com ele, são as imagens que têm a iniciativa, não o que sonha. Trata-se pois dum pensamento que não é de Sócrates, que lhe é imposto pela sua repetição. Nietzsche dirá que “o pensamento vem quando ele quer, não quando eu quero” (Além do Bem e do Mal, § 17).
[16] Sem que Platão se reclame dele; tanto quanto sei, o nome de Parménides não é citado por Platão antes do texto que tem o seu nome, e depois pelo Teeteto e pelo Sofista. Mas o 1º e o 3º destes textos seriam incompreensíveis se não tivesse havido decisão relativa a Parménides em torno das Formas ideais: porque é que isso não foi confessado?
[17] Que os nomes sejam insuficientes, é uma evidência : todos, mesmos as crianças, se servem correntemente dos nomes das coisas sem conhecerem as ‘essências’ das coisas nomeadas. No entanto, a definição é feita também de nomes e ela é essencial à aprendizagem que ele tenta nos jovens sem o conseguir.
[18] Um pouco mais longe: “já que tu designas essas coisas múltiplas [figuras] com um só nome” (74d).
[19] Como Diotima. Trata-se duma 3ª hipótese a acrescentar às do § 4 : quando Sócrates invoca uma experiência deste tipo, sonho ou revelação ‘de origem divina’, é Platão que assinala mais um ponto de afastamento do mestre, o que aliás reforça a dúvida sobre esta hipótese como vinda dele.
[20] Saber é oida : tenho sob os meus olhos e conservo-o, no meu pensamento ; conjuntivo eidô ; aoristo eidon, infinitivo : idein, o qual serve de aoristo a oraô, ver, observar, examinar ; ver em pensamento, considerar : eidos, aspecto, forma, aparência, rosto ; carácter próprio duma pessoa ou coisa, sua natureza ; grupo com os mesmos caracteres, espécie. Oida e eidos são pois da mesma família semântica, como se em português ‘saber’ tivesse relação com ‘ver’ e ‘rosto’.
[21] “nem ciência nem ignorância” (Banquete 202a), escapando assim à oposição parmenidiana entre o ser (a ciência) e o não ser (a ignorância), República 477d-478).
 [22] Como a posição das filosofia europeias que derivaram dela, de Descartes a Husserl (Heidegger, Questions IV).
[23] Aristóteles fará da alma a ‘forma’ do ser vivo, mas também princípio dos sentidos corporais: a linguagem, fazendo parte do logos, permanece o obstáculo escondido dos Europeus, parece, até Nietzsche e Heidegger.
[24] “O facto de colocar o ‘bem’ como um ‘fim’ introduz a concepção piramidal do mundo, que marca uma viragem decisiva na história da filosofia. […] o real diferencia-se num múltiplo não coexistindo já num mesmo plano como xunon (contínuo), mas disposto sobre uma escala de valores morais subindo de baixo para o alto” (Colli, p. 285). Para o Um mais tarde, acrescente-se: tratar-se-ia da viragem para a ontoteologia.
[25] Retomada do que acaba de ser lido no Banquete, que nele era contado com grandeza e agora citado sem mais: parece clara a precedência dum sobre a outra.
[26] É a definição que separa os contrários, nomeadamente o bem e o mal (§ 28).
[27] Atenção Filebo: não será novo, tratar-se-á de pensar o que já tinha sido dito havia muito tempo.
[28] O dia como semelhante à presença do eidos em Parménides 131b (objecção de Sócrates que Parménides não aceita).
[29] Motivo que Aristóteles criticará: a ideia de humano não gera os humanos, as ideias só geram ideias, os humanos só geram humanos. Seria preciso ver se este motivo aparece noutro lado em Platão, não encontrei, como não encontrei também esta critica aristotélica que ouvi ou li não sei onde nem quando.
[30] O Bem antes das coisas do mundo, o lugar aberto no gnosiológico grego para o Deus da Bíblia, quando as duas escritas se encontrarem em Alexandria para dar origem à teologia cristã (Orígenes, após Filão).
[31] Andros : um homem, não anthrôpos, um humano (homem ou mulher).
[32] É a problemática do sofrimento do justo no livro bíblico de Job (do final do V século a. J.C. talvez), que termina num impasse ; dois ou três séculos mais tarde encontra-se (no 2 Maccabeus 7, 9-36 et 12, 43-46 nomeadamente) entre os Judeus, que não têm a noção de alma, um testemuho da crença na ressurreição dos mortos (recebida dos Persas provavelmente). Em Platão, a problemática recebe como solução a recompensa duma vida feliz da alma além da morte, que triunfarára no cristianismo (a ressurreição ficando num canto do Credo, sem insistência teológica).
[33] Nota do editor : tradição órfica, dos pitagóricos, Empédo­cles e Píndaro.
[34] Como já República III 613b, citado no final do § 28.
[35] Relevemos a distinção entre palavras de uso corrente, como ‘ferro’ e ‘dinheiro’, sobre os quais todos estão de acordo, e palavras como ‘justo’ e ‘bom’, que relevam da ética, sobre as quais as opiniões são divididas (263a), as únicas a pôr problemas de persuasão pelo discurso.
[36] A escrita ‘dentro’ da alma, denegada assim a oposição dentro / fora que governa esta subordinação da escrita, que serve para a excluir.
[37] É a este esquema que obedece o prólogo do evangelho de João, o Logos de Deus do primeiro versículo é dito Filho no último.
[38] “Desprezado ou injuriado injustamente, ele precisa sempre do auxílio do seu pai, incapaz de se defender sozinho [o que é o ‘pai’? o que se retirou, como após a cópula e que tem que conservar a sua criança enquanto ela é pequena; aqui é como o órfão [equivalente na carta de Paulo aos Gálatas, http://phenomenologiehistorique.blogspot.com/2010/10/la-lettre-aux-galates.html com pai e herdeiro órfão]. Como o la­vra­dor que trata a sério das suas sementes, para as ver crescer oito meses mais tarde, aquele que tem o saber do justo e do belo e do bom [...] não escreverá seriamente na água [inútil, provérbio grego] semeando com tinta pela pena discursos incapazes de se defenderem, incapazes de ensinarem suficientemente em verdade. [...] É melhor plantar e semear com a ciência numa alma, segundo as regras da dialéctica, discursos capazes de se defenderem a si próprios e àquele que os semeou e que, em vez de permanecerem estéreis, dão uma semente que dará nascimento noutras almas a outros discursos, que assegurarão à semente sempre renovada a imortalidade, e tornarão os seus depositários tão felizes quanto se pode ser na terra” (275d-277a).
[39] Anunciado pelo discurso de Diótima, foi esta viragem que incomodou fortemente Colli. Mas intelectual e espiritual não se separam em Platão, trata-se mais duma questão de acentuação das questões. Ppr exemplo: “quando a opinião realmente verdadeira e firme sobre o belo, o justo, o bem, e os seus contrários, se produz nas almas, digo que é o divino que nasce numa raça de demónios” (Politico, 309c). Estas figuras sobrenaturais só foram demonizadas na luta dos cristãos contra os ‘falsos deuses’, como diziam.
[40] Referindo que tem que ir saber da acusação em tribunal (que o condenará), o que faz com que o Eutifron, que começa nesse lugar e momento, sendo um texto da primeira época de Platão, deveria ter-se passado depois do Teeteto e antes do Sofista! Não há que fazer destas encenações fictícias um critério rígido. Nesse texto mais antigo, o motivo deste detalhe biográfico deverá ser o tema do dialogo, a piedade para com os deuses e a impiedade de que Sócrates foi acusado (Eutifron, 3b).
[41] Lidas do ponto de vista de Platão; passarão assim à posteridade, o que, na sequência de Nietzsche, Colli contesta, como por seu lado Heidegger.
[42] O jovem Platão, antes de ter sido discípulo de Sócrates, fora-o do heraclitiano Crátilo.
[43] Esta hipótese de leitura tem como consequência o adiamento da redacção destes textos, talvez a partir do Fedro II, para 362, para dar tempo a Aristóteles de amadurecer um pouco, antes da última viagem de Platão (361-360). Ou então seria depois do regresso?
[44] Seria que Platão não teria compreendido o papel da Parménides no seu próprio pensamento antes das discussões com Aristóteles? Uma hipótese mais verosímil, seria a de que Platão afastou-se de Heraclito e Crátilo sem se encostar ao seu oposto, mas namorando a imutabilidade do Ser para as suas Formas ideais; as discussões com Aristóteles levaram-no a explicitar mais claramente a sua relação com o Eleata.
[45] Bonito exemplo que parece reenviar ao lugar da luz na República (507c-508c).
[46] O que parece anunciar a ‘ideia’ europeia clássica, que já se percebe em Occam, no seu ‘nome mental’, crítica nominalista do realismo medieval, antes de ser a descoberta de Descartes.
[47] Mas o verbo grego gignomai (devir, vir à vida, nascer) pode ser aqui apenas ‘provém’.
[48] Li este contra-argumento algures faz tempo e infelizmente não consegui encontrá-lo, apesar do recurso a uma colega especialista.
[49] ‘Concepção’ esta que será anterior a Platão: pensar é antes de mais, pensar a geração, ou as suas consequências (como diz ‘concepção’, o nosso ‘conceito’). Ora, é o que eu procuro aqui (relação com o ser-se pai do seu discurso, que encontrámos no Fedro II), questão que encontrei nos trabalhos de Teresa Joaquim sobre a relação entre as duas ‘concepções’, a das crianças e a dos conceitos. “Geral (général): o que convém a vários indivíduos (ou grupos, de que cada um é considerado como um todo indivisível), oposto a singular, individual, particular” (Lalande). Na origem, genos opõe a família como um todo a cada um dos seus membros.
[50] Aristóteles também pensou que o seu Primeiro Motor não conhecia nada fora dele, como seis séculos mais tarde o Um de Plotino.
[51] A interrogação da possibilidade do discurso falso no Sofista implica restituir a linguagem (e as imagens) como sendo alguma coisa sem ser realmente uma coisa.
[52] É por elas serem pensadas como ‘substanciais’ que se cria ‘separação’ em relação às coisas correspondentes. Parece que as três objecções de Sócrates para salvas as (suas) Formas ideais já as desubstancializaria, apesar do anacronismo duma tal afirmação, já que foi Aristóteles quem criou a categoria traduzida em latim por ‘substantia’. Creio no entanto que o aristotelismo medieval fez uma amálgama entre os Eidê de Platão e as ousiai de Aristóteles. O que avanço aqui, teria a vantagem de ajudar a compreender que a desontologização europeia (já em Newton, Kant, Nietzsche, Husserl, Heidegger e Derrida) terá começado muito cedo na história da filosofia, mesmo antes do Liceu, já na própria Academia. Mas o Deus criador cristão terá pesado fortemente na substancialização.
[53] « [...] a um homem que pensa que fala com justiça, [...] é singularmente difícil fazer mudar de opinião” (135a).
[54] Apesar de ela ter sido colocada com o exemplo da geometria! Mas é certo que a questão das virtudes quase desaparece também destes textos intelectualizados (referências em Parménides 130b-c e Teeteto 176b-c).
[55] O que Protágoras negava (170a-c) e será a questão essencial para definir o sofista.
[56] Excepto no saber copulá-los, ciência das parteiras; também Sócrates reenvia a Pródicos ou a outros professores os jovens que não estão em estado de gravidez.
[57] Nem sequer o deus do parteiro, que tem relação com o parto. Se a experiência de pensar, numa alma imortal que irá ter com os deuses quando for filosoficamente virtuosa, que está portanto conotada com o mundo divino, fosse, segundo Platão, devida directamente ao deus, por certo que ele o teria dito de maneira mais ou menos clara. Teria sido mais fácil a comparação com Paulo.
[58] Traduzamos assim antes da sua definição por Aristóteles.
[59] A discussão ultrapassa a minha competência e os meus interesses filosóficos. Há uma análise e recapitulação das principais posições dos especialistas em Francesco Fronterotta, « ‘Que feras-tu, Socrate, de la philosophie ?’ L’un et les plusieurs dans l’exercice dialectique du Parménide de Platon », Revue de Métaphysique et de Morale, nº 3, juillet-septembre de 2000, pp. 273-299.
[60] A viragem não implica que Platão tenha abandonado a teoria das Formas ideais, como cheguei a suspeitar durante a minha leitura, ela diz respeito à mudança de problemática, das Formas ideais para as coisas terrestres. O interesse dos diálogos é justamente de trocar argumentos que se opõem: que por vezes eles fiquem sem consenso sugere que esses argumentos não eram necessariamente adoptados pelo próprio Platão. Pode-se dizer que o Estrangeiro do Sofista seria o porta-voz da critica do jovem Aristóteles e que Sócrates regressa no Filebo (prolongado pelo Timeu) defender uma visão do platonismo compatível com a admissão do “parricídio”: a “alteridade” como um dos “géneros” no mundo sublunar.
[61] Mas sucede que se encontre genos em vez de eidos e vice-versa. Provavelmente genos em Platão diz respeito à geração mas, ao contrario de eidos, permanece um motivo vago, de tal maneira que possa ser utilizado como eidos. Ou será que genos é o rasto da concepção própria do platonismo, das Formas ideais gerando as suas coisas respectivas?
[62] Um exemplo em português seria o ‘negro’ como ‘não, ouk’ do branco, e o vermelho como ‘não, ’ do branco: o primeiro diz o contrário, coloca o negro fora da paleta das cores, o segundo diz a diferença entre cores da paleta. Duma pessoa ou dum prato de gastronomia, podemos dizer ‘não gosto’ porque a odeio, porque não o consigo comer, ou ‘não gosto’ porque me é indiferente, porque gosto doutros pratos.
[63] Por duas vezes Parménides é dito ‘pai’ : genealogia transposta para a relação escolar, mestre e discípulo. Isso nunca foi dito de Sócrates, ou amante ou parteiro. É a segunda vez que Platão põe em questão a lógica do patriarcado, a primeira em politica, propondo o argumento feminista na República (450c-457b), agora em filosofia.
[64] De facto, é sobre os nomes que se exercem definições, isso não é todavia tido em conta por Platão, seria renegar o Crátilo.
[65] “ao dizer … coloca-se o ser na alma”, é o mesmo do dizer-(que)-pensa-o-ser parmenidiano.
[66] Mais adiante, são o nome o verbo que se misturam para formar a frase ((262c-d). Platão põe assim o dedo nas duas articulações da linguagem neste argumentário do Sofista, sintoma da importância que o tipo de ser do discurso, do logos, tem na viragem do diálogo. Mas não podia compreender que se trata, não de duas articulações (ele nem sequer refere uma à outra), mas duma dupla articulação (A. Martinet).
[67] Já se encontra algo da terminologia da Physica de Aristóteles: ele meditou este debate em que Platão lhe oferece a ousia (auta kath’auta) e o acidente (to sumbebêkon).
[68] A ciência: sobre o ser (to on), o ‘real’ (to ontôs) e o que é sempre o mesmo por natureza (pephukos) (58a). O eidos eterno permanece portanto o domínio da ciência, mas será que o ‘por natureza’ indica a viragem, já que a natureza é o que nasce e morre? Encontra-se uma oposição entre “os seres eternos (aei, de sempre)” e “as (coisas) que devêm (ta gignomena) e devirão e devieram” (59a), e depois “o firme (bebaion), o puro, o verdadeiro, o íntegro (eilikrines, simples, puro, sem mistura), os que são sempre segundo eles mesmos (ta aei kata ta auta), da mesma maneira (hôsautôs), sem mistura nenhuma (ameikotata echonta)” (59c). Platão continua portanto a pensá-los sem mistura, por definição! A mistura só diz respeito às coisas cá de baixo, a viragem terá sido o ocupar-se delas contra Parménides, que elas deixem de ser ditas não-ser apesar da geração.
[69] Põe-se aqui um pequeno problema de tradução: aei, é ‘sempre’, ‘sem cessar’, corresponde à intemporalidade do texto gnosiológico que define os eidê, as essências, por assim dizer. Estas, em Platão, são celestes, traduz-se habitualmente aei por eterno+, o que para o platonismo é justo. E agora, após a viragem, há que guardar ‘eterno’ ou pôr apenas ‘sempre’? Decidi por este último, com má consciência, pois não se pode decidir.
[70] Recordando o Parménides.
[71] Na música, é claro, quando os sons excessivos (± graves, agudos, longos, breves) se tornam sinfonia.
[72] Parece ser do tipo ‘causa primeira’, o que restava da Forma ideal do Bem. Importante para compreender como o cristianismo foi absorvido por Platão com Orígenes.
[73] Que ocupa o lugar primordial na formaççao do mundo. As duas questões de que parte o discurso do Timeu ilustram claramente a constância de Platão: “Em que é que consiste o que existe sempre, sem ter tido nascimento? Em que é que consiste o que devem sempre e nunca é? [...] tudo o que nasce procede necessariamente duma causa [...] o mundo nasceu, tem uma causas [...] difícil de encontrar [...] que teve os olhos postos no modelo eterno” (27d-29a).
[74] Num belo ensaio inacabado, Chora, sobre este motivo no TImeu.
[75] A dizer verdade, há uma comparação curiosa com Heidegger que me desmentiria para dar razão a Derrida: é que o II Heidegger andou constantemente em torno da “vinda à presença” sem nunca ter, que eu tenha dado por isso, referido o nascimento como o ‘exemplo’ mais importante. Filósofo que se preze não trabalha sobre ‘exemplos’! Assim sei que não sou filósofo: só fui capaz de entender alguma coisa do Heidegger quando percebi alguns exemplos em torno de Aristóteles.
[76] Por exemplo: “o que não é nem na terra nem algures no céu não é nada” (52b) parece outorgar o ser tanto ao celeste como ao terrestre; “eis o resumo do meu discurso: ser (on) e chora e geração são (einai), os três triplamente e nascidos antes do céu” (52d), parece por seu lado distinguir o primeiro e o terceiro: chôra não teria papel nenhum na antiga separação? O seu papel tem a ver com o fim desta? (difícil então que a ‘mãe’ não tenha a ver com esse papel).
[77] A continuação anunciada de Chora era pelo texto de Aristóteles: porquê não foi levada a termo? Por falta de tempo, outras escritas mais urgentes? Ou porque Aristóteles se furtou à linha começada?
[78] Aristóteles juntou à hulê e ao eidos a sterêsis (privação do eidos) para formar os três princípios que tornaram possível de dizer e pensar a ousia e as suas mudanças (Physica, I, 190b30-191a23).
[79] Sobrinho de Platão que dirigiu a Academia uma dezena de anos, após a morte do seu tio em 347.
[80] Citado por Chambry na “Introduction” ao Politique Garnier Flammarion, p. 156.
[81] Que aceitara no entanto no Criton

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