Derrida e Lévinas: in/fieis herdeiros
1. Muito longe de ser um especialista
de Heidegger, conduzo o meu trabalho como seu herdeiro, assim como de Husserl e
de Lévinas, mas todos mediante a herança de Derrida, herdeiro deles e de mais
alguns outros, o que implica que todos sejam deslocados pela maneira como o
infiel herdeiro assim os põe em relação.
2. Sejam duas
citações de uma entrevista de 1967. “Nada do que eu tento teria sido possível
sem a abertura das questões heideggerianas”[1]. “[...] o texto de Heidegger é para mim duma extrema importância,
ele constitui um avanço inédito, irreversível e está-se longe de se ter
explorado todos os seus recursos críticos. [...] o que escrevo não se assemelha
a um texto de filiação heideggeriana [...] marquei, muito explicitamente, em todos os ensaios que publiquei um desvio
em relação à problemática heideggeriana [...] em particular em relação a esses
conceitos de origem e de queda. E entre outros lados, analisei-o a propósito do tempo, ‘horizonte
transcendental da questão do ser’, em Sein und Zeit, isto é num ponto estrategicamente decisivo[2]. Este desvio intervém também, correlativamente, quanto ao valor de
próprio (propriedade, apropriar, apropriação,
toda a família de Eigentlichkeit, Eigen, Ereignis) que é talvez o fio mais contínuo e mais difícil do pensamento
heideggeriano”[3].
3. Também Lévinas, de quem o motivo do rasto do
Outro (deslocado por Derrida) me vai interessar, é um herdeiro infiel de
Heidegger, guardando o ponto de partida do seu pensamento no ‘sujeito’, à
maneira da modernidade europeia, de Descartes a Husserl, ponto de partida esse
que Heidegger foi abandonando desde a ruptura do seu Dasein de 1927 com o Mestre (sejam quais forem as amarras a ele que tenha
guardado apesar do Ereignis a que enfim chegou),
o que parece sugerir que a reflexão de Lévinas ficaria dependente da oposição
metafísica entre alma e corpo[4], e portanto sem lugar significativo para a ‘natureza’ e para a
história. São limites de um projecto filosófico que quer subordinar as
questões ontológicas do conhecimento às da ética e da justiça, projecto que de
facto é em boa parte ele próprio ‘ontológico’, visto que não procura detalhar o
conteúdo ético da santidade (que ela não tem) mas descrever a estrutura do seu
‘sujeito’, aquém da sua consciência, o que permanece ‘de jure’ uma tarefa
ontológica. De certo modo, ele pega no humano por cima, por uma espécie de alma
não substancial, que não é ‘forma’ de matéria, próxima talvez do (ético) coração
hebraico, a que todavia o corpo permanece subordinado. Na verdade, parece que
o que ele tenta é desligar-se da concepção europeia de sujeito –
‘substancialista’ (cartesiana), ‘formalista’ (kantiana), ‘intencionalista’
(husserliana) e ‘de estrutura existencialista’ (Ser e tempo) –, implicando sempre, segundo ele, a prioridade de tarefas de
pensamento e conhecimento. Ele guarda, todavia, parece-me, uma espécie de insularidade
entre rostos, uma ‘transcendentalidade’, que torna necessário o rasto do Infinito
para torná-los próximos, duma maneira que lembra a representação clássica num
Leibniz. Por outro lado, parece que as suas críticas a Heidegger ‘ignoram’ que
este fazia um esforço em parte paralelo ao seu. Julguei compreender que o
prefácio muito entusiasta que em 1986 escreveu para o livro de M. Zarader, Heidegger
e as palavras da origem[5], dava conta deste paralelo, como ele próprio terá confirmado a J.
F. Lyotard, em Junho desse mesmo ano, ao aceitar a comparação que este faz
entre a sua obra e a de Heidegger[6], ele que tanto mal dissera da ontologia heideggeriana (e da
ontologia em si, como se esta fosse de um homogeneidade totalitária, semelhante
à que se ‘pode’ ler em Spinoza e Hegel), aceita respondendo muito simplesmente:
“estamos absolutamente de acordo, eu só falei no Heidegger de Sein und Zeit”[7]. O contexto da discussão não parece ser ‘alvo’ suficiente para este
“absolutamente de acordo” tão peremptório, que deve visar o conjunto da sua
obra. Se, por outro lado, levarmos em conta que no prefácio, P.-J. Labarrière
diz que Lévinas “fez questão de polir e por vezes completar o ‘script’ do
registo dos debates” (p.8), isto poderia valer como uma espécie de
‘auto-crítica’ dum herdeiro desavindo que reconhece que afinal não o é tanto
como julgava. Vamos então à herança.
O testamento
de Heidegger: “Tempo e Ser”
4. O próprio título desta conferência de 1962,
que fôra previsto para a continuação da primeira parte de Ser e Tempo que não houve, indica que aos 72 anos se está a tomar um certo balanço
da obra. A segunda parte do plano previsto - a respeito de Kant, Descartes e
Aristóteles, de aspectos da história, do tempo (ocidental) do ser - também não
foi escrita sob forma de tratado, mas Heidegger não se ocupou nunca de outra
coisa senão deste inacabado nos múltiplos textos que foi publicando após a
guerra. E, embora aberta a sua obra sem dúvida[8], Tempo e Ser é o seu acabamento
histórico. O motivo do retiro do ser é retomado
com uma amplidão nova, já que até aí era o ser em retiro que dava o ente que
vem à presença com sua duração temporal, enquanto que agora é uma outra figura
- a do Ereignis - que dá quer o ser quer o tempo
dos entes, como se o ser voltasse de novo ao sentido de ser-do-ente que
Heidegger tinha outrora largado ao propor a diferença ontológica entre ambos,
ser e ente[9]. Ora, o sentido habitual da palavra Ereignis, a saber ‘acontecimento’, é interessante no sentido em que: a) nele,
tempo e ser são indissociáveis; b) que ele é
sem-razão, imotivado (por definição, poderia não se ter passado), mas podendo
em seguida motivar; c) e ainda, e aí Heidegger ultrapassa outros estratos do
seu pensamento[10], que sejam precisos sempre mais do que um para que haja
‘acontecimento’, um e o outro, de tal maneira que cada um, sendo o mesmo, seja
também o outro em relação ao outro, sem predomínio a priori (sem o quê não
haveria surpresa, nem acontecimento): o múltiplo antes do próprio ser[11]. Toda a gente está de acordo em dizer que este motivo
heideggeriano, o Ereignis (desde o meio dos anos
30 que aparece em alguns dos seus textos), não designa os acontecimentos em
sentido ‘ôntico’, o que acontece aqui ou ali, mas é a ser compreendido ao nível
‘ontológico’, o da doação dissimulada. É com efeito o que nesta conferência
caracteriza o Ereignis, a doação
do-ser-e-do-tempo (doar os entes que assim vêm à
presença, à duração) que se dissimula essencialmente (deixá-los vir à presença, à duração).
5. Para ver um pouco mais claro, há que
perguntar o que é que é um ‘acontecimento’, já que Heidegger deve ter razões
para utilizar o termo. Há narrativa dum acontecimento quando algo de inesperado,
de surpreendente, acontece, sucede, se dá (es gibt). Trata-se portanto de aleatório, as diversas personagens duma
narrativa encontram-se, interagem em sequências de várias acções, como se diz,
e a narrativa con-juga-as, reúne-as numa espécie de constelação, nos seus
amores e diferenças, nos seus diferendos e conflitos. Para que eles con-venham
uns aos outros e possa haver um acontecimento, é
preciso que eles sejam apropriados uns aos outros em reciprocidade, de amor
ou de rivalidade, que eles sejam elevados a uma altura semelhante, ligados narrativamente,
destinados uns aos outros. O que é que dá esta apropriação recíproca, esta
con-jugação, esta con-veniência mútua? O que é que os dá no aleatório, sem
pre-determinação, os destina sem pre-destinação, no ‘respeito’ das suas
autonomias? Anteriormente, Heidegger teria dito: o ser, a Terra-Mundo. Agora,
em 1962, ele não fala mais dessas duas figuras, deixa essa dualidade
inseparável que guarda os traços da oposição metafísica natureza-cultura ou
natureza-sociedade; agora, ele diz: o Ereignis dá
ser-e-tempo[12]. O Ereignis (‘ser’ e ‘tempo’ indissociavelmente)
é o que dá tempo-e-ser, os faz vir à presença no que lhes é próprio, os dá; mas sendo ‘onde’ tempo e ser têm lugar, o Ereignis não é, nem ente (substancial) nem temporal, não é um
‘acontecimento’, não é susceptível de presença, é portanto necessariamente
retirado: é a doação que é retirada para que os entes sejam eles próprios,
na sua própria temporalidade. O termo que introduz
este motivo da propriedade é Eignen (a partir de
‘eigen’, próprio), “fazer vir a si mesmo em sua propriedade” (id., 42). “[...]
destinação e recção repousam no movimento de fazer vir a si na sua
propriedade”, por isso “é necessário que o retiro pertença ao próprio do
apropriamento” (id., 44). A doação dá ser ao
ente temporal, o seu retiro deixa-o ser ele
próprio: assim ele é destinado em sua autonomia.
6. Isto faz-se à maneira dum jogo. Este motivo
diz a maneira como as três dimensões do tempo, o porvir, o ter-sido e o presente,
fazem uma certa unidade dumas em relação às outras (e umas fora das outras).
Num texto cinco anos anterior, Le principe de Raison[13], o jogo é tomado no final como conclusão da caminhada do conjunto
do texto (pp. 240 sv.), duma maneira que podemos pensar próxima do lugar do Ereignis neste texto de 1962[14]: "devemos pensar o ser e o fundo, o ser como abismo, a partir
do ser do Jogo" (p. 241). O motivo do Jogo pode pois ajudar a compreender
o Ereignis. Voltemos ao nível ôntico, corrente.
Sabe-se que o velho Heidegger gostava de futebol. Trata-se de acontecimentos, a
que o aleatório é essencial; retirado do curso do mundo utilitário quotidiano -
é um retiro do tipo do das festas, sagradas ou não -, colocado num espaço (as
quatro linhas dum estádio) e num tempo (90 minutos com um intervalo)
específicos fora dos quais nada conta, as suas regras (há um árbitro que as
vigia) são feitas de maneira a tornar possíveis desafios apaixonantes entre
duas equipas à mesma altura, o resultado contando-se em golos, permitindo
campeonatos, jogadores profissionais, treinadores (com um outro tipo de regras,
as das estratégias), jornais, e por aí fora. todo este mundo gira em torno dos
desafios, das suas regras concebidas em vista do aleatório das competições.
Por exemplo, que um dos jogadores tenha o direito de jogar com as mãos na sua
área impede que haja golos a mais (como há no baskett-ball), assim como a
regra do fora-de-jogo, enquanto que os penalties,
ao contrário, evitam que haja de menos, etc.; além disso, o jogo institui certos humanos como gente do ofício (jogadores, treinadores,
árbitros, dirigentes do clube, etc.) e outros como adeptos ou espectadores,
‘institui’ designando uma certa qualidade de ente humano (para os jogadores:
talento, competência, força física, idade, etc.). Estas regras não se encontram
tais quais nos outros desportos de bola, são imanentes ao próprio jogo. É certo
que o futebol supõe leis físico-químicas, biológicas, sociológicas, psicológicas,
mas tal como os outros desportos, que têm outras regras: o que significa que
nenhum deles é determinado por essas regras, que o jogo é imotivado em relação a todas elas. Nem o físico nem o biólogo nem o sociólogo
nem o psicólogo podem deduzir as regras dum jogo a partir das leis das suas
ciências[15], já que ele não tem outra razão que a que lhe é imanente. Que esse
conjunto seja imotivado, basta compará-lo com os de outros jogos, desportivos
com bola (andebol, tenis) ou não (atletismo), de cartas (bridge) ou xadrez,
todos com as mesmas características: espaços-tempos concebidos segundo regras
tornando possíveis desafios essencialmente aleatórios, podendo por isso
apaixonar quer os jogadores quer os eventuais espectadores. São todavia todos
diferentes entre si, todos organizados estavelmente na duração. A unidade
indissociável das regra e do aleatório, do acaso e da necessidade, é essa a
essência do jogo (segundo Derrida[16]). Aquilo que a palavra futebol designa não ‘é’ os desafios nem os
jogadores e treinadores, tudo isso é ‘dado’ por ele, que não ‘é’ ente, ‘é’
nada, o que os ‘dá’ e dissimula essa doação: o futebol é um Ereignis. Que Ser e Tempo tivesse deixado o
nível apofântico da filosofia, como segundo, derivado, para vir ao do
quotidiano do Dasein, torna verosímil esta
‘aplicação’ ao futebol que corre o risco de chocar os puros.
O legado às
ciências: “uma tarefa do pensamento”
7. O futebol e os outros desportos são apenas
exemplos. Mas há muitos outros possíveis, como é óbvio. Onde quer que se encontre
um domínio de entes, de fenómenos, de acontecimentos que sejam dados de modo a
poderem ser pensados, compreendidos, conhecidos como ‘um’ domínio, haverá que
falar de Ereignis a seu respeito: Nada
ontológico que os dá e deixa ser. Ora, no protocolo das sessões de comentário
sobre a conferência de 1962 que a acompanha, diz-se a certo momento que nela
“nada é dito da presentidade característica dos diferentes domínios do
ente; isso permanece uma tarefa do pensamento: determinar o não-retiro dos
diferentes domínios das coisas”[17] (id., 83). Vejo dificilmente que se possa interpretar estes
“diferentes domínios das coisas, do ente” de outra maneira do que referindo
os que as diversas ciências estabeleceram ao longo da história ocidental do
Ser: os graves materiais de que se ocupam Física e Química, os vivos, plantas e
animais, de que se ocupa a Biologia, as sociedades humanas, suas línguas e
textos, seus psiquismos e por aí fora, de que se ocupam diversas outras
ciências (ou quase-ciências) sociais e/ou humanas. Que Heidegger seja conhecido
por uma certa ‘aversão’ às ciências, releva sobretudo dum certo folclore
jornalístico; obviamente que havia no seu horizonte a convicção de que a sua
obra deveria um dia permitir “operar uma transformação da ciência”, como testemunha
esta passagem da Introdução à Metafísica (1935):
“para operar uma transformação da ciência, e portanto antes de mais do saber
originário, o nosso Dasein tem necessidade duma
água de calagem[18] metafísica completamente diferente; ele tem necessidade antes de
mais de reencontrar uma relação fundamental, instituída e verdadeiramente
edificada ao ser do ente no seu conjunto”[19]. E é essa “relação fundamental” que ele busca, é ela que se diz de
forma acabada na figura do Ereignis de 1962. Se
for assim, tendo a convicção de que estava dando uma interpretação do seu testamento
aos seus herdeiros possíveis, aos leitores futuros dessa conferência, ele
precisa expressamente a certo passo o legado na direcção das ciências como uma
tarefa do pensamento: “isso permanece uma tarefa do pensamento: determinar o
não-retiro dos diferentes domínios das coisas”. Não tenho conhecimento de que
ele utilize esta expressão em relação a qualquer outro legado, embora nos tenha
deixado várias referências ao que ainda se deixa mal pensar. Creio todavia que
esta explicitação se justifica por uma certa convicção de que, no campo do
pensamento, tinha feito o que podia, nem sequer podia precisar algumas tarefas
exequíveis a curto prazo, digamos assim, enquanto que no que se refere às
ciências, se trataria duma tarefa para a qual ele próprio não tinha preparação,
caberia pois a outros que a tivessem, como se fosse possível levar a cabo essa
tarefa do pensamento sem mais delongas. Com efeito, Derrida foi esse seu
herdeiro como não sei doutros[20].
8. Essa tarefa, na medida em que me é dado
compreendê-la, extravasa a herança heideggeriana; tentarei em todo o caso
exemplificá-la na parte em que a argumentação se refere apenas ao motivo do Ereignis, sem ter que recorrer à gramatologia derridiana. O meu primeiro
exemplo dirá respeito à biologia, e para se poder avaliar também da novidade da
herança heideggeriana, contrapô-la-ei à physica que herdámos de Aristóteles. Nesta,
o ser-do-ente é a ousia, enquanto que o tempo
(assim como o espaço) releva do acidental, do particular: é o ‘momento’ do
acontecimento ôntico (como o ‘lugar’). Isto vale sobretudo para os vivos,
tomemos o exemplo de um cavalo. A ousia é o
próprio movimento (kinêsis) da ‘substância’ que
é ‘este’ cavalo (ousia-primeira das Categorias) que veio à presença, movimento que
é o ‘mesmo’ do que o dos outros cavalos e éguas, a sua ‘essência’ (ousia-segunda das Categorias), mas este
movimento que dura toda a sua vida de cavalo, desde o seu nascimento até à sua
morte, é vivido de forma singular, particular, diferente da dos outros cavalos
e éguas, segundo os seus acidentes, os seus acontecimentos ônticos, os seus
momentos e lugares. E é o que explica que a ousia se tenha alojado numa intemporalidade gnoseológica, a dos textos
que definem essências e com elas argumentam fora das circunstâncias e dos
contextos de que se ocupam as narrativas: Aristóteles era parmenidiano, as
suas categorias eram o modo de dizer-pensar (legetai) o ser dos entes (Categorias)[21], este ‘ser’ sendo substancial, a ousia-primeira ou substância (sujeito) tendo a primazia sobre a ousia-segunda ou essência (predicável, por género e diferença
específica, dum sujeito). Era nesta diferença entre ‘primeira’ e ‘segunda’
que o ente tinha a primazia ontoteológica da presença e o tempo se tornava
secundário, quer como acidentalidade em relação à primeira, quer como momento
qualquer em relação ao presente intemporal (da definição) da segunda[22]. Ora bem, o que é que se passa em termos de Ereignis? Se o movimento é o de vir à presença, a ousia, ser-e-tempo dados indissociavelmente[23], movimento ôntico, particular, este cavalo que acaba de nascer, de
ser pro-duzido, de vir à presença, vindo da sua égua materna e que no tempo
crescerá, comerá e dormirá, se reproduzirá. Ora, nada disto é ‘acidental’, no
sentido de ‘derivado’, ‘secundário’, mas tudo isto é bem ‘essencial’ ao
movimento ôntico, à existência deste cavalo particular: desaparecimento da
diferença primária / secundária da ousia. Com
efeito, o programa genético do ADN - retirado no núcleo de cada célula, para
se preservar como o mesmo em todas e cada uma e não se degenerar quimicamente
como sucede ao ARN, seu mensageiro - rege a síntese das proteínas, isto é, a
maneira como a substância de outros vivos (plantas, neste caso herbívoro) que
foram comidos se torna na ‘própria’ substância deste cavalo, e isto desde a
primeira célula até ao último dia de vida: os ‘acontecimentos’ de alimentação
vinda de outrem são constitutivos da substância do próprio ente. Uma visita
rápida à anatomia do nosso cavalo mostraria facilmente como ela está orientada
para garantir o metabolismo de cada célula: a circulação do sangue conduz até
ela o oxigénio e os nutrientes, enquanto que os aparelhos digestivo e
respiratório se encarregam da alimentação do sangue; os músculos e as patas, o
cérebro e os seus órgãos de percepção, aguilhoados pelo jogo hormonal (que é
accionado por via genética para garantir o equilíbrio homeostático do sangue),
devem reagir no território para encontrarem o que comerem, beberem,
respirarem. Só poderão comer ou fugir a um eventual predador se algo desse
território for inscrito duravelmente nas sinapses do seu cérebro, segundo os
grafos do neurologista J.-P. Changeux, os quais grafos são também regulados
para que acções aleatórias sejam possíveis, comportamentos regrados a partir
dos órgãos de percepção até aos músculos da mobilidade, depois de terem
atravessado o duplo cérebro, o emocional paleo-cortex herdado dos peixes e o
neo-cortex das aves e dos mamíferos[24]. Estes ‘acontecimentos’ de alimentação prolongam o acontecimento’ que foi a cópula dum
cavalo e duma égua, cujos meio-ADN se juntaram para formar essa ‘primeira
célula’ da substância do cavalo. O pai-cavalo logo a seguir, a mãe-égua após o
parto e o aleitamento, retiram-se enquanto entes doadores da autonomia do
funcionamento biológico do filho-potro. Entes, não são eles o Ereignis; o que é este então? É a espécie
equina que dá este cavalo e os outros cavalos e éguas. Uma espécie biológica
não é nenhum dos seus indivíduos (não sendo ‘nada’ fora deles), já que eles nascem
e morrem e a espécie continua a reproduzir-se nos seus descendentes. Ela não
é nenhum ‘ente’, ela é ‘Nada’ (não-ente) que tem a fecundidade, o poder da
doação dissimulado, de se reproduzir como o Mesmo nos entes individuais,
sempre não–idênticos entre eles. Nesta reprodução, ela é o Nada-de acontecimento
que dá os potros, as éguas e os cavalos. Ousia
deixa de ter oposição hierárquica ao acidente, uma vez que as suas regras
científicas se relacionam essencialmente com o aleatório. Se se pensa que em
português as palavras ‘acidente’ e ‘acontecimento’, uma conotada
negativamente e a outra valorizada, dizem a mesma coisa (o que sucede
implicando vários), percebe-se como é que, do acidente ao acontecimento, o Ereignis de Heidegger volta a Aristóteles e o transforma: a oposição
tenaz entre ser e tempo é enfim ultrapassada.
9. O segundo exemplo relevará da linguística
mas estender-se-á à questão do logos, à vez
discurso-e-pensamento. O poeta Manuel Gusmão dizia que não se dispõe para fazer
um poema senão das palavras dos outros: a linguagem é esse mecanismo fabuloso
doado totalmente de fora que - enigma dos enigmas - torna possível o talento
singular dum Camões, dum Shakespeare, dum Cervantes. Desse mecanismo recordemos
como a linguística de inspiração saussuriana nos deu a compreender a dupla
articulação da linguagem[25] e as propriedades sintático-semânticas dos verbos[26] das frases que nós dizemos muito espontaneamente, quase
automaticamente, segundo regras que são as mesmas em todos os falantes duma
mesma língua. Numa certa analogia com o retiro do ADN no núcleo celular, também
os gritos elementares dos primatas nossos antepassados foram retirados do
campo da comunicação e da significação directas e mudados em fonemas, isto é,
em sons sem significação nem imagem de nada, não querendo dizer nada, tal como
as letras do alfabeto: a partir deles, as línguas formam milhares e milhares
de palavras com as quais se pode comunicar, encadeando-as em frases muito
reguladas, segundo as regras sintáctico-semânticas de Gross a que ninguém
escapa, que se exercem em nós automaticamente (é esse automatismo que se perde
quando há ablação da área cortical de Broca). Essas frases, encadeadas por sua
vez em discursos, permitem também que o sentido das palavras mais frequentes
conheça uma variabilidade polissémica relativa e regrada, aumentando assim o
leque das possibilidades de dizer. Esta dupla articulação de Martinet é correlativa,
por um lado da economia fisiológica da nossa fonação, que não consegue
articular de forma distintiva senão algumas dezenas de sons simples, por outro
lado pela capacidade da nossa memória cerebral verbal, já que se diz que nós
apenas utilizamos 3 a 5 mil palavras, embora chegando a reconhecer umas 30 mil.
Então como é que funciona esta linguagem assim adequada à nossa anatomia? De
tal maneira que, por um lado, as palavras e as outras regras da língua são
comuns a todos, vêm-nos dos outros, e podemos entendermo-nos, por outro lado,
essas frases integralmente reguladas saiem de nós muito espontaneamente como o nosso próprio pensamento (sem
que se pense nelas, sem que se possa pensar em cada uma das suas regras,
raramente gaguejamos à busca duma palavra precisa) e isso de maneira bem adequada
à situação aleatória de conversa em que se fala. Com efeito, uma conversa -
onde cada um pega no fio do que acaba de ouvir para lhe acrescentar qualquer
coisa, concordando ou contradizendo - só tem sentido porque cada um dos
interlocutores é mais ou menos surpreendido pelo que o outro diz, não sabe de
antemão o que é que ele vai responder, tem que ser capaz de improvisar segundo
o fio aleatório da conversa, mas seguindo as regras da língua, comuns a
todos. E o que é a língua? Onde encontrá-la? Nos dicionários? são textos. Nas
gramáticas? são textos. É nas falas, nos discursos, nos textos, nessas ‘coisas’
(sons ou rabiscos com sentido), que a língua tem efeitos de inteligibilidade,
consistindo nas regras de vários níveis - fonológicas, morfológicas,
sintácticas, semânticas, textuais, as próprias palavras fazendo parte dessas
regras - que permitem que quem fale não faça apenas ruídos aos ouvidos de quem
ouve; mas a língua não ‘é’ nenhuma
dessas falas, nenhum desses textos. Não ‘é’ nada, apenas o que dá essas falas
e textos, temporais enquanto tais, o que dá essa
pujança de falar-pensar, com mais ou menos talento, de forma sempre singular;
a língua, que já cá está quando cada um nasce e cá fica quando se morre, não é
nada senão essa doação que se retira para que a fala se dê em autonomia. Tal
como a espécie biológica, a língua dos linguistas é Ereignis.
Do tempo da
herança
10. Para concluir, sublinhemos a questão da
‘propriedade’, essencial na concepção heideggeriana do Ereignis. Ao nível destes exemplos, a doação é a maneira que a vida, as
espécies vivas, e a linguagem, as línguas, encontraram para sobreviverem à
morte dos vivos e dos falantes. É a maneira como a sua transmissão, de vivos a
vivos, da falantes a falantes, se faz como hereditariedade, como herança, como
tradição, como aprendizagem. E é assim comum como regras essenciais: aos
indivíduos todos de uma dada espécie, aos falantes todos de uma dada língua.
Como se diz, mas se diz mal: porque nem a espécie nem a língua são dadas,
mas sim doadoras. Os pais são doadores que se retiram? sim, mas sem o saberem,
nem se é menino ou menina, feia ou bonito, e o que neles é doado, já a eles o
fôra uma vez, ainda menos então sabendo. Os mestres são doadores de saber? sim,
mas sem nunca saberem o que o discípulo aprendeu, com que alterações (para
melhor ou para pior). O que dá e se dissimula, espécie ou língua, o que não há
nem é, pujança doadora, dá o próprio ADN, a própria voz, o próprio pensamento,
aquilo mesmo que no novo ente será o cerne da sua singularidade, da sua
diferença, sem oposição no entanto ao mesmo da espécie ou da língua. E dá
através de doadores que antes foram também doados. Foi esta doação que Derrida
pensou de forma fulgurante no motivo do rasto do Outro: deslocando-o de
Lévinas para Heidegger e de ambos para a diferença fenomenológica de Husserl,
também ela deslocada gramatologicamente, como se o seu trabalho apenas tivesse
consistido em misturar heranças.
11. Tradição e lei ou regra versus liberdade e
talento singular, heteronomia versus autonomia, quantas e quantas outras
oposições a tradição metafísica construiu, desde Platão e Aristóteles. Heidegger
dá-nos a compreender como, com algumas das mais importantes descobertas
científicas suas contemporâneas, que ele ignorou e que o ignoraram, se torna
possível hoje pensar além dessas oposições. Poder pensar além das fronteiras,
além da tradição guerreira, assim leio a herança de Martin Heidegger. Leio
que o futuro está espantosamente aberto.
publicado na Revista Portuguesa de Filosofia, A Herança de Heidegger, tomo LIX, 2003, fasc. 4, pp.1229-1239
[3] Idem, p. 73-4.
[4] “Não ser autóctone, ser arrancado – por uma ausência que é a
própria presença do Infinito – à cultura, à lei, ao horizonte, ao contexto […]
assim é o rosto” (“Langage et proximité”, En découvrant l’existence avec
Husserl et Heidegger, Vrin, 19945, p. 231). Esta noção de ‘rosto’, retirada do seu contexto mundano e
da sua realidade empírica pelo rasto do Infinito nele, seria a ‘alma’ de Platão
desontologizada, des-substancializada.
[5] Lindíssimo livro, traduzido entre nós pelo Instituto Piaget.
[6] Nomeadamente: “[...] interrogo esta obra [de Lévinas] sem querer de
forma nenhuma subordiná-la à de Heidegger: não haverá entre as duas obras algo
que releva da mesma interrogação? Eu diria mais: da mesma preocupação [souci],
no sentido muito forte deste termo. Preocupação que precede justamente da
impossibilidade de se ficar nas descrições fenomenológicas, e que pede que se
reintroduza a dimensão da alteridade. Não se tratará da mesma coisa nas duas
obras? É certo que isso é chamado muito diferentemente num e noutro, e não é a
mesma coisa nomear: Être, ou nomear: Autre. [...] O Heidegger em que eu penso
não é do Sein und Zeit, o Heidegger
fenomenólogo, mas o das últimas obras [...]” (Autrement que savoir, ed. Osiris, 1986, pp. 88).
[7] Idem, pp. 86-88.
[8] Como diz com justeza R. Rodriguez Garcia, no seu lindo livro Heidegger
y la crisis de la Época Moderna, 1994, Ed.
Pedagógicas.
[9] Ao comentar esta conferência, depois de ter sublinhado a sua
novidade, o ser determinado a partir do tempo (Questions IV, pp. 64-6), chega a falar do “desaparecimento do ser” (pp. 77-78).
[10] A unicidade do ser, a busca do seu nome único, próprio (Derrida a
propósito de "a Palavra de Anaximandro", Marges, p. 29).
[11] Seria um dos pontos precisos em que Heidegger rompeu com
Aristóteles, que, na ousia, tinha privilegiado o
mesmo, o auto-, face ao acontecimento, o
acidente. Por outro lado, ele aproxima-se do Nietzsche de Deleuze: “a
correlação do múltiplo e do um, do devir e do ser, forma um jogo. [...] os
dados que se lançam uma vez são a afirmação do acaso, a combinação que eles
formam ao cairem é a afirmação da necessidade; a necessidade afirma-se do
acaso, no sentido exacto em que o ser se afirma do devir e o um do múltiplo” (Niezstche
et la philosophie, P. U. F., 1962, pp. 28-29).
Afirmar antes o acaso e só num segundo tempo a sua necessidade, antes o
múltiplo e só depois a unidade que assim se compõe, antes o devir, o acidente,
o acontecimento, e só depois o seu ser durável, é isso o Eterno Retorno: é
também afirmar antes os acontecimentos e só depois o Ereignis que os dá.
[12] Deste ponto de vista, ele retorna a Aristóteles: é o 'movimento' -
“a ousia, como um género e modo de entrada na
presença” (Heidegger, Questions II, p. 211), “o
acto do que está em potência enquanto tal [...] um acto sempre inacabado [já
que de] um ser contingente” (P. Aubenque, Le problème de l’être chez
Aristote, P.U.F., 1962, p. 454-6) - que é primeiro
em relação aos entes.
[13] Gallimard, 1962 [1957].
[14] Ou do Geviert, o Quadripartido, Céu
e Terra, Divinos e Mortais em seu jogo, que ocupa o mesmo lugar de conclusão em
"La chose", Essais et conférences,
Gallimard, pp. 211 sv.
[15] Se é esse o sonho do fisicalismo, é um disparate completo.
[17] Julgo que uma boa parte do trabalho filosófico de Derrida depois de
1962 pode ser interpretada como uma resposta a esta injunção, embora não à
maneira como Heidegger a previria.
[18] “Tirant d’eau” na versão francesa, a água de que um navio precisa
para ancorar em segurança. Esta metáfora diz que é preciso mudar a ‘metafísica’
em que os ‘navios’ das ciências modernas se constituíram desde o século XVII.
[20] O motivo do rasto (trace) da sua gramatologia
“deve fazer dele mesmo referência a um certo número de discursos contemporâneos
com a força dos quais entendemos contar [e depois de referir Lévinas,
Heidegger, Nietzsche e Freud, conclui:] enfim, em todos os campos científicos,
e nomeadamente no da biologia, esta noção aparece hoje dominante e irredutível”
(De la grammatologie, Minuit, 1967, pp.
102-103). Refere-se sem dúvida ao que há de ‘escrita’, de “grama” no conceito
de “programa genético”, central na biologia molecular que então se estava
constituindo, assim como nesse mesmo texto discutia a epistemologia da
linguística saussuriana, e noutros da mesma época a da psicanálise freudiana,
da ‘economia antropológica’ de Bataille ou da antropologia de Lévi-Strauss
(“Freud et la scène de l’écriture”, “De l’économie restreinte à l’économie
générale”, “La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences
humaines”, todos em L’écriture et la différence,
Seuil, 1967).
[21] “As categorias de Aristóteles são ao mesmo tempo de língua e de
pensamento: de língua enquanto são determinadas como resposta à questão de saber
como é que o ente se diz (legetai); mas também como se diz o ser, como
é dito o que é, enquanto é, tal como é: questão de pensamento [...]. O
‘pensamento’ – o que vive sob este nome no Ocidente - jamais pôde surgir ou
anunciar-se senão a partir de uma certa configuração de noein, legein, einai e desta estranha mesmidade de
noein e de einai
de que fala o poema de Parménides” (Derrida, “Le supplément de copule: La
philosophie devant la linguistique”, Marges. De la Philosophie, Minuit, 1972, p. 218).
[22] É esta secundariedade da essência que o nominalismo reenviará à linguagem,
separando definitivamente os dois sentidos de ousia nas Categorias.
[23] Como o Dasein de Ser e Tempo: pela antecipação da sua morte e a correlativa decisão de ser
si-mesmo’, é a sua existência, a sua temporalidade, que determina a sua
essência: se esta reside na sua existência, é já em 1927 que para o Dasein humano a disjunção ser / tempo (ousia / acidente em Aristóteles) é ultrapassada.
[24] O que tem como consequência: nada do que, num comportamento,
implique um qualquer conhecimento do território ecológico e das suas situações
aleatórias (de caça e outras) pode ser determinado geneticamente.
1 comentário:
E como o senhor explicaria o sentido positivo da destruição da historia da ontologia envolvendo a analítica do Dasein?
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