É um texto muito ambicioso que pretende propor uma definição de sociedade que seja válida para todas as sociedades humanas de que antropologia, história e sociologia se ocupam. Uma tal definição não existe confessadamente entre os praticantes dessas ciências, só mesmo um filósofo podia ter 'peneiras' de o conseguir.
Definição e laboratório científico
O motivo fenomenológico de duplo laço
A questão da definição de sociedade em geral
A lição de Lévi-Strauss: interdito do incesto, logo exogamia
Paradigma de usos e costumes
Para definir sociedade
A invenção da agricultura: organigrama das sociedades agrícolas enquanto
regiões autárcitas
Cosmopolitismo da Antiguidade greco-romana e Cristandade medieval
Organigrama das sociedades modernas: das autarcias à heterarcia
A escrita do conhecimento e do pensamento
As duas primeiras grandes etapas da Modernidade
Os três duplos laços transversais das sociedades modernas
A lógica destes duplos laços modernos
A questão da democracia
Do lado das famílias, dos cidadãos
A mutação do ano de 1968
A terceira etapa da Modernidade é a actual
A questão do tempo de trabalho
1. Entre os quatro grandes tipos de
fenómenos com história científica – da gravitação os astros, da alimentação os
vivos, da habitação as sociedades humanas e da inscrição os textos ocidentais
do saber –, as ciências pertencem à última delas, aliás aos seus últimos quatro
séculos (em vinte e quatro, contando a partir da invenção socrática da
definição nos textos de Platão e
de Aristóteles, século IV a.C.); as que se ocupam das sociedades são dos dois
últimos séculos, mas manifestam actualmente uma notável multiplicação disciplinar.
Quanto à história das sociedades, ela situa-se no prolongamento da evolução
biológica dos mamíferos humanos, sem que haja separação entre ambas, ao contrário
do que dá a entender a maneira como as ciências das sociedades se destacam das
biologias; não se trata apenas das dificuldades em datar cortes entre evolução
de bípedes primatas e pré-história de humanos, entre biologia e paleontologia,
mas também de ter em conta que a cena da evolução biológica foi fortemente
alterada a partir da invenção da agricultura e está hoje ameaçada na sua
condição ecológica: um dos problemas capitais em ciências das sociedades reside
justamente no lugar que elas reservam (ou não) à constituição biológica dos
humanos, a especificidade do parentesco, da alimentação, doença, fome e morte.
Definição e laboratório científico
2. Assim como não é frequente os filósofos
interrogarem-se sobre a razão filosófica de ser da definição, também não será costume que
cientistas e filósofos das ciências se interroguem sobre o estatuto
epistemológico do laboratório[1]. Ora, trata-se das duas maiores
invenções da história gnosiológica do Ocidente, dos Gregos a primeira, dos
Europeus a segunda. Que definição e
laboratório científico permaneçam desapercebidos da grande reflexão filosófica
e filosófico-científica, isso dever-se-á a tratar-se de duas operações de
escrita violentas sobre a chamada ‘realidade’ que essa reflexão
busca conhecer, donde são abstraídos os ‘definidos’ e os ‘laboratorizados’, arrancados ao contexto que lhes permite
existirem, lhes dá possibilidades de se movimentarem. A violência da abstracção
é bem conhecida da pedagogia escolar, é o que é mais difícil de conseguir que
se aprenda, e talvez se possa dizer que é por ser ‘violenta’ que há que a
dissimular para lhe enobrecer os frutos como ‘conceitos’, ‘ideias’, idealidades
dignas de quem pensa e se pensa acima dos ‘andaimes’, dos meros instrumentos.
Com efeito, encontramos aqui o que Jacques Derrida nos deu a compreender ao
abordar a escrita na história do pensamento ocidental pela primeira vez e
diagnosticar a economia geral dessa história como logocentrismo. Este consiste no privilégio do pensamento, da
alma, da consciência, da teoria, sobre a escrita e não só, sobre a própria
estrutura significante da linguagem: é assim que a ‘ideia’ e a ‘razão’
europeias se pretendem ‘universais’, não sujeitas às regras das línguas
‘particulares’. A Filosofia da Linguagem que ensinei durante mais de 25 anos na
Faculdade de Letras de Lisboa é uma disciplina que se constituiu apenas no
século XX, sobretudo no mundo anglo-saxónico com o seu “linguistic turn”.
3. Onde claramente se dizem, no que às ciências
modernas diz respeito, efeitos dessa economia logocêntrica do nosso saber, é na
oposição entre o ‘sujeito’, o
cientista que conhece, e o ‘objecto’ que lhe é exterior, que faz parte da tal
‘realidade’, oposição essa que é sucedânea dessoutra grega e cristã entre
‘alma’ / ‘corpo’, ‘mundo’[2],
e que, ao colocar a relação de conhecimento entre o cientista e a realidade,
apaga o laboratório como um instrumento, uma técnica, uma linguagem, um meio de
conhecimento ou de comunicação, tudo termos que dizem o que não é digno de
figurar na grande aventura da descoberta científica.
4. A definição é uma operação violenta de escrita feita sobre as narrativas
e os discursos retóricos enquanto particulares, que abstraiu o termo a
definir, arrancando-o aos seus contextos,
ou seja que reduziu esses contextos e
as suas particularidades, incluindo a ampla morfologia dos próprios verbos das
narrativas, e constituiu o texto filosófico enquanto texto que trata de
generalidades (e não mais de particulares, acontecimentos ou opiniões), de
essências impessoais e intemporais, sem lugar nem circunstância, sem contextos
pois, e argumenta sobre elas, nomeadamente indagando de causas e efeitos como
razão de ser das coisas.
5. A especulação medieval tendo
mostrado os limites do conhecimento alcançado pela definição, o laboratório de
física do século XVII acrescentou à teoria científica de definições feita o ‘labor’, o trabalho, a
experimentação sobre movimentos detectados por instrumentos de medição. Mas
embora acrescentando, o laboratório não deixou de ser filho da definição, já
que, como esta, opera uma redução do contexto donde retira o fenómeno a analisar
laboratorialmente, retira-o do alcance das narrativas e opiniões para o alçar
ao saber gnosiológico intemporal, digamos ‘universal’, se entendermos por ‘universo’
os laboratórios que repitam as operações experimentais, assim como as escolas e
bibliografias onde se ensinam essas ciências. Poder-se-á então dizer que o que
o laboratório consegue e o torna condição estrutural dessa verdade científica
universal é a criação de condições experimentais de determinação que justamente não existem nos
contextos habituais da chamada ‘realidade’, de que se ocupam narrativas e
opiniões. Pode haver alguma
reticência no leitor que tome o termo laboratório à letra dos muros em que os
físicos e os químicos se encerram com o seu ‘material’ experimental e pense que
as ciências sociais não têm laboratório, são ciências de terreno. Não é preciso
todavia procurar muito para encontrar o que é o laboratório destas ciências de
terreno, que está naquilo que mais afadiga os seus cientistas como a mais
complicada e subtil das suas tarefas: as respectivas metodologias. É que, fora do
laboratório não havendo determinação, essa dita ‘realidade’ permanece
indeterminada, razão justamente pela qual as ciências sociais precisam de
‘métodos’: para isolar fenómenos sociais, retirá-los da realidade complexa
demais: ruínas arcaicas, documentos escritos, arquivos, estatísticas, estão
entre as componentes de vários laboratórios dessas ciências.
6. O motivo de laboratório tem uma vantagem
equivalente à do paradigma de
Kuhn, a de incluir tanto a teoria como a experimentação sem oposição entre elas[3],
já que nenhuma existe sem a outra e é de ambas que resulta a redução do
contexto do fenómeno recolhido para análise de conhecimento: assim se anula a
oposição sujeito / objecto, este último termo podendo guardar o sentido
etimológico forte de ‘objecção’ à teoria que o seleccionou. Vantagem ainda de o
laboratório permitir marcar a diferença entre ele – como ‘labor’ em vista do
conhecimento científico, necessariamente fragmentado em experiências e
‘observações’ variadas – e a cena social complexa donde se retirou o que foi
analisado e conhecido, o que leva a colocar, tendo em conta a operação de redução, a necessidade da restituição teórica dos conhecimentos fragmentários adquiridos pelo
laboratório ao contexto que foi antes reduzido.
7. Visualizemos sumariamente a redução e
restituição em física. O que a teoria coloca é uma equação em que as variáveis
correspondem aos resultados da experiência, que permitem verificar a equação e
conhecer a sua incógnita. No exemplo mais elementar que se possa imaginar: com
a equação v= e/t, medindo o
espaço e percorrido por um
móvel no tempo t, conhece-se a
sua velocidade média v. O que
o laboratório acrescentou à geometria, foram instrumentos de medição variados,
a começar pela possibilidade nova de a geometria ter em conta o tempo. Com
instrumentos de medida de pesos, intensidades de electricidade e outras
dimensões, os laboratórios criaram uma variedade de equações físicas que a
matemática desconhecia. Ora, o que se mede reduz a ‘substância’ empírica
daquilo que é medido, diferentes móveis (ou substâncias) verificando a mesma
equação. Usando uma expressão de Galileu na primeira experiência de física
moderna de que temos o relato, são apenas “proporções e diferenças” (de espaço,
de tempo, de velocidade...) que dizem a cientificidade, como confirma ser esta
que é utilizada pelas técnicas de origem laboratorial que ‘restituem’ a física
à cena extra-laboratorial ao aplicarem a artefactos inventados as medidas
resultantes das equações. É por isso que, embora a teoria da relatividade
jogando para velocidades perto da da luz, tenha invalidado as noções de espaço
e tempo absolutos de Newton, a física deste continua cientificamente válida para velocidades terrestres, os
engenheiros continuam a utilizar as equações clássicas, que resistem
laboratorialmente à variação das interpretações teóricas dos cientistas.
8. Seja uma dada ciência social, a linguística saussuriana[4].
O seu laboratório consiste numa operação sobre frases e sobre palavras,
segmentando-as e substituindo os segmentos noutras frases ou palavras, de forma
a que as novas frases ou palavras sejam providas de sentido, pertençam à
língua. A comutação, constituída por estas duas operações, permite constituir
paradigmas quer fonológicos, comutando sobre palavras (Troubetzkoy), quer
sintácticos e morfológicos sobre frases (Hjelmslev). A pérola deste laboratório
linguístico foi o trabalho de M. Gross, Méthodes en syntaxe, régime des
constructions complétives (Hermann, 1975), que, contra a tradição duplamente milenar de analisar as
regras sintácticas a partir de alguns exemplos, efectuou uma análise semântica
dos 3000 verbos franceses mais frequentes classificados em 19 tabelas que abrem
à unificação da sintaxe e da semântica (Belo, 1991). É uma das descobertas
científicas mais portentosas do século passado. Ora, o que é que opera a
comutação? Ela exige que o material oral[5]
que vem ao laboratório tenha sentido na língua em estudo, mas reduz esse
sentido, isto é,
não o tem em conta na análise, o que implica que reduz o referente a que esse
sentido reenvia; reduz igualmente a empiricidade das vozes sobre que opera bem
como as intenções dos falantes. Ou seja, os paradigmas linguísticos são
constituídos apenas por diferenças linguísticas entre as respectivas unidades, como
propusera a revolução do Curso de Linguística Geral de Saussure (1916, 1922): “na
língua não há senão diferenças, sem termos positivos”. Isto é, tal como na
física, é a ‘substância’ oral que é reduzida. Quanto à restituição, ela é
feita, creio, pelo uso dos paradigmas em usos escolares ou, de forma geral, no
ensino da língua[6].
O motivo fenomenológico de duplo laço
9. Aproveito este exemplo para
apresentar brevemente o motivo fenomenológico de duplo laço do pensador francês Jacques Derrida
(recebido do psicólogo americano Gregory Bateson) cuja fecundidade será aqui
testada epistemológica e
metodologicamente[7].
Seja em que campo for da vida e da actividade, nunca se tem a ver com coisas
‘simples’, mas sempre com algo que é composto de ‘elementos’ enlaçados, a
assemblagem desses elementos formando uma dada unidade susceptível de movimento
num certo domínio, aquele em que essa assemblagem é reproduzida e circula.
Sejam dois breves exemplos, um da ordem da técnica, outro da vida animal. Um
automóvel é uma assemblagem de peças que se move por receber energia dum motor (cilindro de explosão) e se orienta numa estrada
por via dum aparelho adequado às
manobras face ao aleatório do seu trajecto e do tráfego que encontra. Motor e
aparelho não existem por si sós, eles foram inventados para jogarem indissociáveis um do outro. Mas são regidos por duas leis
inconciliáveis: lei
termodinâmica dos gases da explosão
da gasolina (cilindro hermeticamente retirado do resto da máquina) que move um êmbolo
repetitivamente, cego a tudo o resto), lei do tráfego aleatório, que pede a habilidade aprendida dum piloto para se adequar à circulação. Duas
leis indissociáveis e inconciliáveis comandam, não dois laços,
mas um duplo laço: após o
estádio dissipativo da
explosão, o cilindro liga
estrictamente essa energia que move o êmbolo em ordem a poder fornecê-la ligada
como energia de trabalho ao aparelho do automóvel, susceptível de
oscilações, desde o ponto morto até à alta velocidade, para se adequar ao
aleatório das situações do tráfego na estrada. Teremos então três estádios
entrópicos na energia dum carro: em expansão caótica dissipada no cilindro, ligada ou inibida pelo cilindro e êmbolo e, vinda pela embraiagem, capaz de trabalho no
aparelho. O terceiro estádio, oscilante consoante a sua situação na estrada, é
manifestamente instável mas de forma paradoxalmente estável, sempre diferente
da pura dissipação (a qual no entanto continua necessária, tanto quanto a
ligação forte conseguida pelo êmbolo, para que a oscilação seja possível). Ora
bem, este estádio instável, oscilando entre limites, corresponde – nos fenómenos
biológicos onde Prigogine teorizou a entropia como
estrutura dissipativa – ao motivo de homeostasia: estrutura em equilíbrio
produzida pela entropia positiva[8]. Este caso – seja um mamífero carnívoro – é mais complicado do que este modelo
geral ‘inerte’, já que tem mais do que um nível de duplos laços, que lhe dão
possibilidades de crescimento na cena onde foi gerado. Além do nível de cada
célula, com os seus genes repetitivos e metabolismo dependente do aleatório da
alimentação, o nível mais importante é o do laço do sistema alimentar de todas
as células (enlaçando os órgãos de digestão, respiração, circulação e jogo
hormonal) e o do sistema do movimento (enlaçando os órgãos de percepção, cérebro,
membros e seus músculos): o primeiro é bastante repetitivo e obedece ao ciclo
dos átomos de carbono bioquímico vindo do CO2 atmosférico por
fotossíntese, regulado por via hormonal que o cérebro comanda em função de
algum aleatório alimentar; o segundo tem que se adequar às possibilidades de
encontrar presas para se alimentar e de se proteger de ser presa para outrem. A
lei que rege o motor alimentar é a da auto-reprodução bioquímica, a que rege o aparelho do movimento é
a lei da selva na cena ecológica
que implica que todos os animais só se auto-reproduzem comendo outros vivos:
indissociáveis na unidade de um só laço que alimenta todas as células de ambos
os sistemas (mas retirados,
genes e hormonas são ‘cegos’ para a cena ecológica, por isso os animais precisam
de olhos e ouvidos no sistema do movimento) mas inconciliáveis, já que é
questão para cada um de vida ou de morte. Assim como a lei do tráfego determina
as anatomias de carros, motas e autocarros, também a lei da selva determina as
anatomias das diferentes espécies animais.
10. Voltemos ao exemplo da linguagem humana. Quando
falamos, uma frase é um laço de palavras com dadas regras, uma palavra é outro
laço de fonemas (letras) com outro tipo de regras. Pode-se dizer que qualquer
palavra é duplamente enlaçada ou ligada, sendo que não falamos só por palavras,
mas pelo menos por frases. A lógica desta “dupla articulação” é a de que os
fonemas (de phônê, voz), da
ordem das poucas dezenas, correspondem à capacidade das nossas gargantas
reproduzirem sons distinguíveis facilmente pelos ouvidos dos outros mas que,
tal como as letras do alfabeto, não têm sentido nem são imagem de nada de
exterior à língua: prestam-se assim a formar muitos milhares de palavras, que
os nossos cérebros memorizam para poderem construir frases indefinidamente.
Como se trata duma realidade social, podemos todos comunicar uns com os outros
com as mesmas regras. Ora, a voz feita de fonemas sai-nos pressionadas da
garganta para fora (ex-) como
um ‘motor’, uma ex-pressão que
é indiferente ao que diz nos seus elementos que não têm sentido, já que foram retirados da significação que as palavras constroem (igualmente
os nossos dedos fazem im-pressão no teclado do computador). Mas as palavras das frases têm que ser
ordenadas pelas regras do ‘aparelho’ da sintaxe (táxis, ‘ordem’ em grego), consoante as conversas peçam
respostas a improvisar aleatoriamente. Vantagens deste duplo laço: vale para
qualquer frase ou língua quaisque que sejam as regras linguísticas, exibe as
duas ligações como um duplo laço,
já que nenhum deles subsiste sozinho, o ‘aparelho’ jogando ao rés do contexto a
dizer segundo o aleatório da situação e o ‘motor’ retirado dando o movimento à
fala ou à escrita. Tal como um automóvel no tráfego, as regras científicas da
sua construção estão ao serviço do aleatório deste na estrada. O duplo laço
faz-se através das regras que os cientistas estudam em seus laboratórios, que
escapam à competência do fenomenólogo: não só é possível ter um modelo
epistemologicamente rigoroso como metodologicamente maleável, para uma dada
língua ou comparando com qualquer outra língua, como também se tem a explicação
do movimento dos fenómenos correspondentes. E ainda: cada laço releva duma dada
lei e a unidade do duplo laço resulta das duas leis serem indissociáveis, mas também o seu movimento é possível apenas
porque essas duas leis são inconciliáveis, contraditórias. As falas individuais têm que ser corrigidas, se se foge
de mais à lei social é-se proscrito, como idiota ou louco: o saber que se vai
recebendo da tribo (família, escola, médias) e elaborando como ‘seu’ dar-lhe-á
uma reputação valiosa. Enfim, este motivo vale também para a física e química,
para os seus compostos de átomos e moléculas, para biologia molecular e
neurologia e seus compostos de órgãos e células, para a linguística e para a
psicanálise, como para qualquer máquina e, procurarei mostrá-lo aqui, para os
fenómenos sociais, mais rebeldes porque tratando-se não de ‘coisas’ mas de estruturas
complexas. E presta-se assim para articular as fronteiras das várias ciências,
os seus patamares (mineral, vivo, social, linguístico), como se pode ver no manifesto deste blogue (textos de 2008).
A questão da definição de sociedade em geral
11. Como então definir sociedade
humana, tendo em conta que se trata duma sequência da evolução ecológica?
Aristóteles evita a separação, ao definir, no início do seu tratado sobre A
Politica, a sociedades humana (polis) como formada de várias aldeias em autarcia e
como “natural” (segundo a phusis), porque composta de vivos (zôoi) ou animais
naturalmente políticos, os únicos animais com discurso (logos), enquanto que as ciências sociais, multiplicando
as dimensões das sociedades que abordam sem as saber relacionar entre elas numa
sociologia articulada, aparentam uma dificuldade razoável em definir sociedade
em geral. Quer se trate dum excelente livro – Metodologia das Ciências Sociais, coordenado por J. Madureira Pinto e A. Santos
Silva – de jovens autores hoje consagrados que há cerca de 30 anos se situavam
em plena pujança da renovação das disciplinas na segunda metade do século XX,
quer se trate de Questões preliminares sobre as Ciências Sociais do iniciador destas em Portugal, A. Sedas Nunes,
não se encontra nos autores a necessidade de apoiar as argumentações dos seus
textos numa definição de sociedade. A crer dois
sociólogos franceses, F. Dubet e D. Martucelli, que sublinham no início do
livro Dans quelle société vivons-nous? (Seuil, 1998) que “a ideia de sociedade […] não é nunca definida
nitidamente” (p. 12), ela só se torna “precisa e operatória quando à ideia de
sociedade é associada um adjectivo: ‘moderna’, ‘industrial’, ‘capitalista’
[oposta à] de ‘comunidade’ (sociedades tradicionais, concepções românticas)”
(pp. 21-23), deduzir-se-á que a variedade de sociedades de que as ciências
sociais se ocupam e sobretudo a multiplicação de ‘dimensões’ das sociedades
contemporâneas em que elas se têm especializado terão feito parte do obstáculo
a encontrar uma definição comum a todas elas. Este fenómeno de especialização
tem também efeitos nas sociedades menos complexas que, no entanto, podem dar
jus ao que se chamaria ciências de sociedades, que teriam a ambição de descrever de forma mais
ou menos consensual o conjunto da sociedade estudada, e que seriam, segundo o
grau de complexidade, a etnologia ou antropologia, a história e a sociologia, esta sem dúvida aquela que resiste mais à utopia
de ser uma ciência das sociedades integradas, ainda antes de se ter em conta a
globalização. Aquém destes três níveis científicos, as ciências que se praticam
tendo como alvo dimensões das sociedades melhor ou pior determinadas mereceriam
o nome comum de ciências sociais, a Linguística, a Economia, a Demografia, as várias Sociologias do ensino,do
direito, dos médias, da religião, etc.
A lição de Lévi-Strauss: interdito do incesto, logo exogamia
12. Mas não haverá também um outro
obstáculo de tipo filosófico nos seus paradigmas, da ordem do que Heidegger
chamou ontoteologia? Viremos
mais adiante à questão. Ganhámos todavia no parágrafo anterior uma razão que
permite justificar a maneira fenomenológica de entrar no problema da definição
de sociedade através da ciência que a si mesma se designa como ‘antropologia’,
ciência dos humanos, como quem põe o acento do ‘social’ no ‘humano’ sem temer o
risco de psicologizações. Com efeito, foi na abordagem das sociedades
caracterizadas pelas suas privações – sem história, sem Estado, sem escrita,
numa palavra, ‘primitivas’ – que se formulou o que creio ser a teoria do âmago
do que chamamos sociedade, duma dimensão hoje recoberta pelas complexas
estruturas modernas e por isso mesmo sofrendo uma crise sem precedentes. O que,
segundo Lévi-Strauss, essas sociedades inventaram, inventando-se a elas mesmas,
foram as lógicas de parentesco que se distinguem das relações biológicas de
reprodução da espécie, dando a estas um sentido novo. Com efeito, não houvera
interdito do incesto e a coincidência entre reprodução biológica e reprodução
social far-se-ia adentro da chamada família consanguínea mas de forma tal que
não haveria ‘famílias’, apenas grupos de humanos formando ‘ilhas’ : o
paradoxo é que, não devendo haver incesto, cada família tem no seu coração
reprodutivo uma mulher de outra família. O laço de
aliança que une duas genealogias diversifica-se entre as várias genealogias,
criando um sistema de parentesco que coincide com a sociedade, constitui-a como rede de alianças entre
as suas várias unidades locais. A
questão aqui é a de saber como é que o antropólogo pensou para chegar lá, que
laboratório construiu, que redução operou no ‘material’ das tribos que analisou e comparou. A resposta parece
ser a seguinte: a patrilinariedade (ou a matrilinearidade em certos casos), a
linhagem que privilegia o homem, o pai, no casal em cada grau de reprodução, é
uma construção social de
genealogias de nomes e alianças que reduz todas as outras reproduções biológicas; se Ego tem 2 pais, 4 avós, 8
bisavós, 2n avós na geração n, a genealogia só retém um em
cada grau, n nomes em n graus. Ainda hoje herdamos o nome do pai,
do avô paterno... os nomes dos avôs maternos vão sendo eliminados. Esta redução,
que tanto é operação das sociedades como da ciência antropológica, permite aos indígenas ter uma regra social para
descriminar os incestos interditados e as exogamias permitidas ou porventura
obrigatórias. Acrescenta-se assim um nível social de endogamia ao que a
evolução biológica criara para as espécies definidas como endogâmicas, isto é
com interdito das relações de reprodução entre indivíduos de espécies diferentes,
o que a espécie humana obviamente mantém. O que cada tribo faz é instaurar uma
dupla fronteira de mesmidade endogâmica, por um lado a de cada linhagem – ultrapassada por uma mulher em cada
casamento, em cada aliança exogâmica entre duas linhagens – e por outro a da
ordem geral do parentesco que liga as várias linhagens aliadas, ficando
excluídos os indígenas de outras tribos, aos quais se fará facilmente guerra, como
é manifesto na seguinte citação do antropólogo francês Pierre Clastres que
evoca o silêncio do discurso etnológico recente sobre a guerra nas sociedades
primitivas, em contraste com a unanimidade, desde o sec. XVI, dos viajantes,
exploradores, missionários, comerciantes, estudiosos: “americanos (do Alaska à
Terra do Fogo) ou africanos, siberianos das estepes ou melanesianos das ilhas,
nómadas dos desertos australianos ou agricultores sedentários das florestas da
Nova-Guiné, os povos primitivos são sempre apresentados como apaixonadamente
dados à guerra; é o seu carácter particularmente belicoso que impressiona,
sem excepção, os observadores europeus. [...] o que é suficiente para
autorizar uma constatação sociológica: as sociedades primitivas são sociedades
violentas, o seu ser social é
um ser-para-a-guerra” [9].
A partir do contraste entre “a guerra de todos contra todos” de Hobbes e “as
sociedades tribais como sociedades de troca de mulheres, bens e palavras” de
Lévi-Strauss, Clastres enuncia o que vale como lei geral das sociedades
humanas: trocas adentro das fronteiras e guerra com os estranhos estrangeiros
além delas. Tendo em conta que
também entre irmãos (e vizinhos) a rivalidade é a regra (§ 16)[10],
a rivalidade de quem quer ser considerado o melhor e o mais forte, pode-se
dizer que a dupla lei das sociedades humanas é a lei da aliança e a lei da guerra, a troca e a sua razão sendo o antídoto desde
sempre contra esta. É a primeira
que dá origem às unidades locais de habitação, constituídas por um laço entre os seus indígenas sob a lei que interdita o
incesto entre eles e é para evitar que as rivalidades da segunda desfaçam a
tribo que há um segundo laço,
o da aliança geral de trocas sustentada pelo sistema de parentesco: duplo laço
porque dupla lei, nenhuma vai sem a outra, unidade parental e tribo,
indissociáveis apesar dos conflitos permanentes.
13. Porquê interditar a sexualidade
adentro duma unidade social consanguínea? Porque, invenção precoce da evolução,
a sexualidade tem uma lógica contrária à das anatomias animais, que regulam
fortemente as dimensões dos diversos órgãos adentro da pele, numa como que
‘racionalidade anatómica’ (que a exuberância das plantas ignora), enquanto que
a sexualidade ‘joga à estatística’ sobre o acaso da conjugação entre duas
gâmetas, de fêmea e de macho, multiplicando excessivamente o número delas, que
se percam a esmagadora maioria para que algumas tenham sucesso. Ora, nas
espécies animais vertebradas as épocas de cio limitam no tempo os
inconvenientes desse excesso, o que não sucede nas mulheres: aparentemente, o
interdito do incesto quotidiano é um controle social desse excesso de energia
pulsional que tornaria caótica a organização da vida quotidiana (Georges
Bataille), a qual conhece um outro constrangimento de ordem biológica: há que
alimentar os membros de cada unidade social todos os dias, o que implica
tarefas variadas e uma certa disciplina social. A psicanálise convida aliás a
considerar que o recalcamento das energias da sexualidade desloca estas
justamente para outras tarefas sociais e culturais, processo a que Freud chamou
sublimação e de que Norbert Elias esboçou uma história europeia (que, segundo
Elias, a civilização chinesa também conheceu).
Paradigma de usos e costumes
14. Como tematizar este motivo da
necessidade duma certa disciplina quotidiana? As tarefas da alimentação
implicam antes de mais colheitas e caças de outros vivos, em seguida a sua
elaboração culinária e enfim os rituais de comida, processos esses, seja dito
de passagem, que alternam as tradicionais ‘natureza’ e ‘cultura’, tornando-as
indissociáveis e impossibilitando de as utilizar como fronteiras estanques
entre ciências biológicas e sociais, ainda que elas devam reduzir-se
reciprocamente em seus laboratórios. Não é fácil, pois que os mitos ameríndios
que Lévi-Strauss analisou têm sobretudo enredos que relevam da culinária, desde
o “cru e cozido”, como diz o título do primeiro volume das suas Mythologiques. Ora, as análises procedem pelo relevar de códigos mitológicos e seus cruzamentos, tendo como fio
condutor que se trata igualmente de códigos do que o autor chamou uma lógica
das qualidades sensíveis, uma
lógica que guia o “pensamento selvagem” nos seus usos quotidianos, os tais que
reclamam uma certa disciplina contra o caos duma sexualidade sem lei. E o
que é um uso? é uma sequência de
gestos de um ou mais indígenas ou useiros, com certos materiais em usos
técnicos, certos rituais em costumes, uma sequência difícil de inventar e mais
ou menos fácil de aprender, à qual sequência os humanos que a usam também
pertencem. É esta pertença que é rompida pelo ‘sujeito’ filosófico, mas também
pela ‘acção’ (Touraine), pela ‘prática’ (Althusser), pelo ‘habitus’ (Bourdieu),
tudo maneiras de justapor os humanos ao ‘social’, de os colocar em oposição,
maneiras de ignorar o motivo de aprendizagem pela qual os usos sociais fabricam o indígena
como humano tribal, o que se pode chamar a operação elementar de socialização.
15. Estes usos repetem-se nas várias unidades
locais, são adequados à situação ecológica da tribo que se encontra sujeita à lei
da selva tal como os outros mamíferos
e aves, devendo caçar alimentos e defenderem-se de serem caçados. É a
omnipresença desta lei que torna a situação biológica (ou ecológica) dominante
em toda a vida social. A importância desses usos é decisiva assim, e não há
sociedade que não a realce ao proceder sistematicamente ao ensino progressivo
desses usos às novas gerações como condição de reprodução da sociedade como tal
além da morte das gerações. Pode-se mesmo pensar que os desenvolvimentos da
linguagem acompanharam os dos usos inventados, fornecendo-lhes as ‘receitas’
que ajudam fortemente à aprendizagem. Ao conjunto dessas receitas e usos –
unidade da teoria e da prática desde sempre – convém de forma geral o motivo de
paradigma, o que Kuhn
tematizou para os laboratórios científicos sendo um caso particular duma lei
geral das sociedades humanas. Onde quer que haja unidades locais de habitação,
familiares ou de actividades especializadas, elas exigem um conjunto de regras
a respeito dos usos da sua reprodução diária, sazonal ou anual, a que todos têm
que ser iniciados pois que a todos dizem respeito, embora as idades, o género e
a ‘condição’ (senhor e servo) impliquem diferenças entre os indígenas, já que a
participação de cada um como ‘useiro’ competente seja condição de beneficiar do
conjunto, mormente como alimentação e segurança. O critério da morte das
gerações como comandando a aprendizagem dos que nascem e crescem explicita a
necessidade de rituais evocativos de narrativas míticas ancestrais perdidas no
tempo, de antepassados de quem os nossos pais e avós receberam os usos que
aprendemos para repetir, a repetição estrita desses mitos vindo ritualizar
acontecimentos sociais fortes em que toda a tribo, apesar das suas rivalidades
internas, se reconhece como uma sociedade diferente e rival das vizinhas.
16. Os que nascem aprendem os usos
que já existem socialmente antes deles, recebem-nos passivamente de fora, e ter aprendido manifesta-se não apenas
na maneira activa como começam
a usar o que não sabiam, mas também na anulação desta diferença entre passivo e
activo que é a habilidade espontânea dos useiros: manifesta-se assim que o que do fora social lhe
veio se tornou coisa sua, a partir da qual se afirma diante dos outros como
participante do paradigma que os une. Esta afirmação é ratificada socialmente
com louvor ou castigo consoante, o que leva a que quem de outrem aprendeu queira
ser como os outros mais velhos e ainda melhor do que os da sua geração: estará
aí, na aprendizagem como desejo de ser indígena adulto apreciado pelos outros,
a raiz da rivalidade entre irmãos e depois entre vizinhos, semente da lei da
guerra que se tece com a da
aliança que preside às trocas. E será justamente a guerra em relação a tribos
estranhas quem anula provisoriamente a dimensão tribal interna dessa lei,
obrigando à solidariedade do conjunto e manifestando o laço social que enlaça
as várias unidades locais. São estas os elementos constitutivos das sociedades,
não os indivíduos: estes tornam-se indígenas sociais ao serem integrados no paradigma como laço da unidade local por
via da aprendizagem dos seus usos e costumes[11].
Para definir sociedade
17. Podemos agora retomar a questão da definição de sociedade a partir
destas considerações genéricas sobre sociedades relativamente simples nas suas
estruturas. O que é que há que reduzir do conjunto social, das suas variações por assim dizer acidentais, para
nos atermos a uma definição válida? Já encontrámos o motivo de sistema de
parentesco composto de várias genealogias que se aliam trocando mulheres como
construção social além da esfera da reprodução biológica. Esse motivo reduz a
variação empírica das gerações através da qual o sistema foi restituído, isto
é, encontra um motivo que transcende a sucessão das populações e a diferença
que há entre as gerações, já que, passados 50 anos por exemplo, se trata
empiricamente de outra população. Ou seja, a população (actual ou
antepassada) não é um elemento da definição de sociedade[12]. Creio que está aqui a raiz dum obstáculo de
ordem filosófica nas epistemologias do social. Uma população é uma multidão que
se observa, uma estatística que se conta, mas uma sociedade não é uma população
que.... O que define a sociedade – território ecológico habitado – é a maneira
como se organiza a sua população em unidades locais e essa organização é
transmitida por aprendizagem de geração em geração. O que propus chamar
paradigma dos usos das unidades locais, que mantêm uma mesmidade relativa ao longo das gerações e que implica os
indígenas como componentes dos usos, será o que definirá a sociedade: ela habita uma dada terra
ecológica que a alimenta, repartindo-se em unidades locais com seus paradigmas
de usos e costumes e defendendo-se de estranhos: cada unidade local enlaça os
seus useiros e por sua vez é enlaçada com as outras pela tribo por via do
sistema de parentesco, duplo laço social. O motivo de ‘humanos’ (indígenas, useiros) é-lhe essencial, mas não é a
partir dele que sociedade se define: nem ‘população’ nem ‘indivíduos’ são o
sujeito da definição. Porque sendo a aprendizagem o seu momento decisivo, o da
sua reprodução além da morte dos indígenas, é a sociedade em seus paradigmas
que institui os useiros como a
sua população: assim como física, química e linguística é das diferenças (entre
medidas e entre sons, respectivamente) que se ocupam, também nas ciências das
sociedades são as diferenças entre paradigmas que se repetem mais ou menos nos usos de unidades
sociais vizinhas, empiricamente distintas: aquilo que em indivíduos (populações) empiricamente diferentes se repete
como o mesmo, repetições
cíclicas (diárias, em estações, anuais...). O
paradigma dos usos enlaça os indígenas de cada unidade social, o conjunto de
todas é enlaçado por um laço político: não é na ‘substância’ dos usos mas nas
suas diferenças
que consiste a sociedade, no que cada um aprende deles à sua maneira, a maneira
singular, individual, como as diferenças paradigmáticas se reproduzem, na aprendizagem
e na sua continuação hábil, incessante aprender. Como se depreende facilmente da Linguística, ciência social da língua, em
que é esta que é aprendida pelos falantes, só existindo aliás nas falas deles[13],
mas em que eles são reduzidos como condição da restituição das estruturas da
língua (os paradigmas linguísticos, aonde Kuhn foi buscar o seu motivo
epistemológico). A noção corrente das línguas como ‘convencionais’ enferma do
pressuposto de que são os humanos que, quais demiurgos, criam a língua, o qual
pressuposto releva do que Heidegger chamou ontoteologia, o ‘homem’ ou o ‘sujeito’ tendo ocupado o lugar
do ‘Criador’. Basta reparar como cada humano usa a sua língua espontaneamente,
até para pensar sozinho, com uma quantidade de regras fonológicas, morfológicas,
sintácticas e semânticas que ele ignora, para se perceber que estas nunca foram
‘imitadas’, como se julga, mas foram instauradas nos falantes, passivos
tornados activos sem que se possa separar o social da língua e o individual da fala e do pensamento singulares. Assim se
faz plena justiça à pretensão dos sociólogos de que a sua ciência se ocupa da
socialização dos indivíduos.
Trata-se aqui de levar essa pretensão a uma maior exactidão, de procurar
esclarecer o que inadvertidamente resta nela de ‘ideológico europeu’, de
‘ontoteológico’. Para saber se qualquer discurso de ciências sociais releva
deste pressuposto, basta indagar do lugar que nele tem o motivo da aprendizagem,
quer da língua, quer dos restantes usos. Tão pouco nenhum dos grandes filósofos,
até ao próprio Heidegger pelo menos, se ocupou dele, que é de serem filhas da
filosofia que as ciências padecem neste ponto crucial. E os acontecimentos, que
por definição escapam à repetição estrita? Esta objecção obriga a indagar o que
é que em ciência do social é um acontecimento: só merece ser tratado
cientificamente aquele que alterar, parcialmente, é bem de ver, um paradigma
estabelecido de
repetições cíclicas, o que Kuhn chamou ‘revolução’.
18. Ter-se-á percebido que o fenomenólogo não
intervém no laboratório metodológico dos cientistas sociais, que é a parte da
experimentação especializada; mas acrescente-se que o que ficou releva da parte
social da fenomenologia enquanto filosofia com ciências, que teve que indagar do ‘social’ dos
humanos como do biológico, da linguagem, da sexualidade, dimensões que a filosofia
europeia reduziu com Descartes e Kant (e que Hegel e Marx recuperaram aliás,
ficando essas tentativas como ‘doutrinas’ desses pensadores). O que se pretende
é questionar a parte teórica do paradigma das ciências sociais, aí aonde se diagnosticou um obstáculo
epistemológico que as emperrará. Por exemplo, pôr a questão de saber quais são
os usos das tribos que colhem plantas, caçam, pescam, que estão portanto
envoltas na lei da selva, de que a lei da guerra ainda não se distingue claramente[14],
como acontecerá após a invenção da agricultura e da criação de gado. Ora bem, a
resposta é a de que os seus usos são sobretudo – além das festas, ornamentos,
rituais de invocação mitológica dos antepassados – os que relevam da condição
mamífera dos seus indígenas, busca do que comer e proteger-se de quem os queira
comer ou agredir, são usos que relevam da biologia (sem oposição todavia entre
natureza e cultura, pelo menos desde a invenção do fogo): a primeira função
das sociedades humanas é assegurar melhor para todos essas duas condições
básicas dos mamíferos, alimentação e segurança. Sendo pois os usos tribais antes de mais
resposta ecológica à lei da selva, à constituição biológica dos humanos, e sendo
as invenções que vierem com a história acrescentos a essa dimensão tendendo a
subordiná-la, como diremos, poder-se-á da definição dada inferir uma espécie de
axioma científico social que
privilegiará, se dizer se pode porque contra todos os ‘privilégios’, a
salvaguarda dos usos que têm a ver com a alimentação e a defesa contra as
agressões físicas: esses usos deverão ser garantidos a todos e a cada um dos
indígenas em todas e cada uma das unidades sociais a esses usos atinentes. Dever-se-á encontrar-se uma maneira de as
ciências das sociedades poderem zelar pela observação deste axioma, contra a
fome e a insegurança dos mais vulneráveis. As ciências sociais podem ter um tal
papel? Sim, nem se vê que outro papel possam ter, tal como a biologia dos
humanos, isto é, a medicina, é ciência para os curar.
A invenção da agricultura: organigrama das sociedades agrícolas enquanto
regiões autárcitas
19. Partindo desta definição, a
questão agora será a de discernir as alterações dos sistemas de usos que vão se
estabilizar na história do Ocidente, primeiro como sociedades agrícolas,
reinos, impérios, em seguida como civilizações cosmopolitas, com um retrocesso
‘medieval’ entre o cosmopolitismo da Antiguidade e o europeu. Uma maneira simples
de abordar o capítulo referente às sociedades de agricultura predominante é
procurar desenhar a lógica das sociedades indo-europeias cuja mitologia
trifuncional foi objecto de análise por Georges Dumézil, antes de vir à sua
maneira de desembocar numa civilização cosmopolita em torno do Mediterrâneo.
Esses mitos exibem as três funções sociais que estruturam essas sociedades, a
que correspondem três tipos de usos exclusivos uns dos outros: uma função sacerdotal e/ou soberana, uma função
guerreira e política e uma função produtiva, económica, que supõe tanto
agricultores e pastores como artesãos e comerciantes. Esta disjunção só foi
possível devido à invenção da agricultura e da criação de gado, que introduziu o
trabalho como tempo em
diferido, entre plantação e
colheita, entre parto de crias e sua maturidade nos rebanhos. Em consequência
essas sociedades subtraíram-se à lei da selva, ganharam sobre ela uma certa
mestria que lhes permitiu produzir alimentação em excesso em relação às necessidades de
agricultores e pastores, e portanto libertar uma (pequena) parte da população
para outros usos produtivos de tipo artesanal, mas também para as duas outras
funções, sagrada e de guerra, cuja especialização se tornou necessária a partir
dum certo desenvolvimento da ‘riqueza’ produzida.
20. Até à industrialização, a forma
base de riqueza consistiu na acumulação dos produtos da terra, o que convida à
guerra para além dos saques e rapinas, para ganhar terras e escravos, impor
tributos, a casta guerreira de senhores dessas terras a si se justificando em
reciprocidade com as outras vizinhas, mais ou menos poderosas, de quem devem
defender-se. Reinos e impérios têm aí a sua lógica elementar, a da lei da
guerra ao nível político: somos
guerreiros para defender o ‘nosso’ povo de outros guerreiros que ‘nos’ atacam.
Quanto à função sacerdotal em torno de templos religiosos, ela parece justificar-se
pela incerteza dos humanos sobre a fecundidade das plantações e dos rebanhos,
fecundidade essa que, com a das mulheres das casas (e as vitórias nas guerras),
os humanos não controlam e é motivo de grande parte dos mitos da função
produtiva; também os cuidados de regulação da justiça cabe a essa função soberana. A
produção artesanal corresponde à primeira forma de divisão do trabalho económico, com especialização em certas artes e
produção deliberadamente excedentária, destinada a outras casas, sejam as dos
guerreiros e dos sacerdotes, sejam às trocas com outras casas de produtores;
estão assim na base da formação de cidades, aonde se juntam as casas artesanais
e comerciais em torno de templos e de palácios reais, formando regiões com os arredores de aldeias de actividade
agrícola que concorrem para a alimentação dos citadinos (Lisboa e os saloios).
Há que acrescentar um outro tipo de actividade especializada, a da invenção da
escrita e das contas, que virá a introduzir uma instituição diferente ligada à
sua aprendizagem, a escola. A divisão dos indígenas em funções e
especializações diferentes quebra a unidade da ordem do parentesco e do laço
político tribal, levando à transformação das unidades locais de habitação em casas, que se caracterizam pela unidade do parentesco e da actividade
económica, as alianças fazendo-se
doravante entre casas da mesma casta, as que dominam zelando pelas respectivas
genealogias de antepassados e suas divindades de proximidade. Todas estas
sociedades saídas da invenção da agricultura são caracterizadas por a forma de
energia das suas actividades ser essencialmente de ordem biológica, quer
bioquímica das plantas e alimentações, quer muscular humano e animal no que diz
respeito a trabalho: a fecundidade da vida é o seu
âmago.
21. Sendo óbvio que não se trata aqui senão de
delinear estruturas, a investigação histórica dando conta das suas variações
geográficas e temporais, das oscilações conjunturais, é possível descrever o jogo dos duplos laços
sociais no organigrama das sociedades de casas. Em cada casa, o respectivo paradigma inscreve-se
enlaçando cada humano pelos usos que aprendeu e exerce com os outros, com
diferenças relativas a género e idade, pelo menos. Este duplo laço, de todos no
paradigma da casa e de cada um no seu ser no mundo, enlaça em seguida as casas
em alianças de parentesco segundo endogamias de castas, as casas das aldeias
trocando suas filhas, e as das cidades: temos assim duplos laços políticos de
aldeia e de vila; mas na medida em que as trocas desenvolvam algum mercado,
este joga como um (outro) laço económico entre as casas que trocam e até com as
das aldeias, se forem estas que os alimentam. Por sua vez, as castas que
comandam e governam, além dos laços entre si por alianças, enlaçam-se com o conjunto
das casas da região num duplo laço político e religioso que se estende a outras
regiões, de cujos conjuntos formam reinos, de vários reinos conquistados
impérios. O termo ‘região’ introduzido no parágrafo
anterior tem em conta que as
deslocações eram muito limitadas e que a esmagadora maioria dos indígenas não
saía dos seus limites geográficos, excepto para a guerra fora e as caravanas de
comerciantes em zonas mais desenvolvidas. O que é típico é que as casas
agrícolas se autosustentem em grande parte, a sua ligação interna, o seu
paradigma, sendo uma forma de autarcia, incluindo as casas senhoriais a que pertencem seus escravos ou servos,
enquanto que as casas artesanais e suas trocas inauguram formas de alguma heterarcia, a da divisão do trabalho. Mas a região, conjunto
de casas duplamente ligadas em proximidade de deslocações, obedece à mesma
lógica de autarcia, e é assim que Aristóteles definiu “a comunidade formada de
várias aldeias como cidade (polis) perfeita (ou acabada, teleios) que atingiu o nível de autarcia por assim dizer completo; tendo-se
constituído para permitir viver, ela permite, desde que exista, conduzir uma
vida feliz. É por isso que qualquer cidade é natural” (Politica I, 2, 1252b28-31): esta última caracterização inclui portanto tudo o que
diz respeito à dimensão biológica – o ‘natural’ é o que nasce, a phusis o que cresce – e às formas de energia
respectivas, a dos animais e dos humanos que trabalham e a dos combates
guerreiros (antes das armas de fogo). E encontra-se aqui uma outra
característica de ultrapassagem parcial do biológico pelas castas senhoris em
que aos senhores repugna qualquer trabalho de tipo muscular, a que se chamará
na tradição europeia ‘trabalhos servis’: a dominação que exercem exclui-os de
serem fornecedores de energia em sociedades em que esta é, de forma
praticamente exclusiva, de tipo biológico, tanto na aristocracia antiga como
europeia. Os filósofos não costumam salientá-lo, mas toda a filosofia até Hegel
foi escrita neste tipo de sociedades, de dominância energética biológica[15]
e em que os pensadores, pertencentes às castas que não trabalham, puderam
permanecer na ‘filosofia perene’ dos sujeitos sem corpo nem mundo que lhes vinha
das almas platónico-cristãs. Mas também os cientistas ainda hoje padecem de não
saberem que ocupam essa posição filosófica e é provavelmente a razão pela qual
apenas com Marx tenha sido pensado o social em sua autonomia própria, não
ontoteológica, que só após ele se tenham manifestado e desenvolvido ciências de
sociedades.
Cosmopolitismo da Antiguidade greco-romana e Cristandade medieval
22. Em sociedades de dominância
agrícola, o desenvolvimento dos usos técnicos, importados pelos Gregos,
acrescentados pelos Romanos que eram bons engenheiros, levou ao desenvolvimento
das cidades, o império dos Césares, a única forma extensa possível que resultou
das guerras de conquista, tendo sido garantido pelo exército e por alguma
administração. As migrações e mistura de gentes variadas nas
cidades gerou um cosmopolitismo com
atenuação da incidência dos mitos religiosos (guardados pelos que trabalham com
plantas e gados, os futuros ‘pagãos’), coberta nas cidades gregas pela multiplicação
de manuscritos que discutem ética e sabedoria a partir das tragédias representadas,
assim como pela instituição de escolas para jovens. O célebre “só sei que nada
sei” de Sócrates ilustra bem a desconsideração dos saberes tradicionais aprendidos
e a inovação crítica que as escolas buscam. Também no império romano se
propagarão diversas escolas espirituais e filosóficas de importação asiática.
Ora, a crise cosmopolita das tradições religiosas, de que é eco no século III a
sucessão alucinante de assassinatos de imperadores por generais que os
substituem até serem assassinados por seu turno, levará às reformas
administrativas de Diocleciano e Constantino e, a partir deste ao longo do século
IV, à substituição dos ritos civis tradicionais por uma nova religião, surgida
da transformação acelerada dum movimento espiritual de origem judaica que fora
intelectualmente reelaborado pela filosofia platónica (Orígenes, início do
século III).
23. Esta substituição é compreensível se se
perceber que o laço politico imperial, que se manifestara com ligação ao laço
religioso no culto dos imperadores, não conseguia sobreviver só com os
exércitos, sem recorrer à dimensão espiritual que se forjara nas escolas
cosmopolitas, as igrejas cristãs exibindo uma concentração monoteísta das divindades
e uma acentuação ética forte, duas facetas que seduziram as elites de então.
Mas se já o império romano, forma expansionista e globalista da ordem da conquista levada até aos limites
possíveis do mundo mediterrânico, é na história ocidental a excepção do cosmopolitismo
e a sua extenuação[16],
esta introdução que transformou o cristianismo de igreja espiritual (buscando
converter adultos e baptizá-los) na religião do império (de tendência
holística, com o baptismo dos bebés a triunfar) veio a revelar-se outra excepção:
as administrações imperiais não desaparecem totalmente, são frequentemente supridas
por formas civis cristãs, com o papado a recuperar ritos e ornamentos litúrgicos
de Roma e os bispos a tornarem-se, sempre que foi necessário, os garantes da
administração civil das ‘regiões’ a que as suas dioceses correspondem. Mas
tornado religião de toda a população, o cristianismo também herdou o
expansionismo globalista do império e expandiu-se pelos povos ditos ‘bárbaros’,
tendo criado algo de inédito (parcialmente repetido pouco depois pela
civilização muçulmana): um conjunto de sociedades – com seus paradigmas de usos
e línguas tais que não se entendem entre estrangeiros – com laços políticos de
tipo feudal e episcopal, em que o laço eclesiástico alcança essas sociedades
todas ligando-as a Roma, no que se chama a Cristandade medieval, cujos limites
a leste são os dos povos eslavos que conhecem um fenómeno eventualmente
equivalente a partir das igrejas cristãs ortodoxas de língua grega.
24. É preciso dizer que as sinagogas judias, desde
os séculos V ou VI a.C, e as igrejas cristãs primitivas, ambas espalhadas pelo
mundo grego e romano, são, de uma outra maneira porque segundo uma outra
tradição de escrita, equiparáveis às escolas filosóficas gregas, com a
diferença de nestas ter jogado igualmente a dimensão intelectual além da
espiritual (é a elas que se deve a invenção da definição, por onde começámos).
Equiparáveis no sentido em que a leitura de textos e a reflexão sobre ética e
sabedoria tem nelas um papel essencial, juntamente com os outros ritos
litúrgicos, e foi o que permitiu a confluência com o platonismo em Orígenes
(185-253) que fabricou a teologia cristã em conceitos filosóficos. Ora bem,
esta confluência voltou a dar origem a instituições medievais igualmente excepcionais
na história das sociedades ocidentais: as universidades são simultaneamente
escolares e eclesiásticas, comunidades de mestres e discípulos que ensinam e
discutem textos vindos da Antiguidade mas que são também clérigos susceptíveis
de suspeita doutrinal da parte dos bispos da diocese. Só no século XIX haverá
reformas das universidades que as desligam completamente deste laço
eclesiástico, mas as discussões científicas e filosóficas, Giordano Bruno e
Galileu, indicam como elas tinham a ver com os grandes laços sociais, políticos
e religiosos, que lentamente se vão desligando, mas necessitando de revoluções
e contra-revoluções.
Organigrama das sociedades modernas: das autarcias à heterarcia
25. Sugeri no texto citado, Da Natureza à
Técnica, como entre 1450 e 1520
houve uma viragem, cujas inovações – impressão de livros que tornou possível o
protestantismo, descoberta marítima do globo, renascimento humanista (por
exemplo, L. da Vinci, 1452-1519) e nova relação gráfica entre olhos e mãos
(pintura, arquitectura, cartas náuticas, desenhos de plantas, anatomias,
engrenagens) – permitem perceber que só depois disso o nome de Europa começou a
ser vulgarizado (Erasmo, Camões, Tasso), como se só então se desse o
‘nascimento’ da Europa, já com o laço da cristandade dividido em conflito
doutrinal (e de armas de fogo) que abriu o grande espaço céptico que as descobertas
de mares, estrelas, povos, usos e costumes tão diferentes e desconhecidos dos
Antigos, reforçaram como dúvida em relação à autoridade dos seus textos nas
disputas escolares, espaço céptico esse em que Copérnico, Descartes, Galileu e
tantos outros vieram colocar novas questões e buscar-lhes respostas inéditas.
Ao filósofo espanhol Osvaldo Markett, que disse que as universidades são a mais
bela invenção da Europa, há que contrapor que é a Europa que é a invenção
das universidades medievais, mas
também das comunas de ‘burgueses’ (as cidades!) que necessitaram delas para os
novos jogos entre olhos e mãos que “clero, nobreza e povo” ignoravam: os calvinistas
de Max Weber, burgueses cristãos sem laço com Roma, e a filosofia e outras
artes universitárias são parte decisiva do segredo da Europa[17] que lhe permitiu aparecer no século XIX no panorama
global do planeta como uma modernidade inédita. Trata-se de delinear os seus
grandes traços, o seu organigrama.
26. A grande diferença é de ordem energética,
contraposta às formas biológicas das sociedades de dominância agrícola e
pastoril: a partir da invenção da máquina a vapor, a energia será doravante
produzida industrialmente, com dois grandes saltos posteriores, o da
electrificação social e o da electrónica. Como se disse para o automóvel (§ 9), esta invenção consistiu em reproduzir de forma muito
simplificada os duplos laços que permitiam aos animais serem auto-móveis: criação dum ‘motor’ retirado estritamente do
resto da máquina, do seu ‘aparelho’ (estes diversos na produção fabril, comboio, navio a ‘vapor’), um
duplo laço que permite a autonomia de movimentos a partir da energia fornecida
pelos cilindros do motor. Todo o processo da modernidade é progressivo na geografia
regional e nacional, começando na Grã-Bretanha e exportando-se a outras
sociedades já capazes do esforço industrial: a paisagem das regiões foi
progressivamente sendo transformada pela exigência de novos edifícios de grande
dimensão que a invenção dos comboios (transporte de carvão, matérias primas e
mercadorias) permitiu construir nos subúrbios das cidades, juntamente com as
habitações mais ou menos miseráveis do proletariado que foi chegando do êxodo
rural. Foi assim que se inverteu o eixo que prevaleceu desde a invenção da
agricultura entre os campos, lugar da riqueza aristocrática, e as cidades, onde
a divisão do trabalho, o comércio e a escrita de pensamento e investigação: foi
assim que a aristocracia sem mãos teve que ceder o poder ao capital burguês com
máquinas que unificou administrativa e politicamente as regiões sob a égide
duma capital e duma língua de circulação nacional, marginalizados os dialectos
regionais. Que a fecundidade tenha cedido à produtividade
e a uma nova abundância explica que a religião tenha deixado de ter a função de
integração holística que passou para a escola obrigatória.
27. A consequência mais óbvia deste processo foi o
corte operado nas casas de
antanho, que dissemos serem a unidade social do parentesco e da actividade
económica (§ 18) e a respectiva autarcia, mormente nas casas agrícolas de
auto-subsistência: a modernidade dividiu a dupla função dessas casas em duas
novas redes de unidades sociais interdependentes, as instituições especializadas em funções de trabalho, com locais e horários
limitados, e as famílias que
sobrevivem com as funções de parentesco predominantemente relativas à dimensão
biológica dos humanos, incluindo o descanso e o divertimento, tendencialmente
limitadas aos casais e seus filhos, para as quais se construíram prédios de
andares alugáveis nas cidades. Esta duplicidade de unidades sociais só foi
viável devido a dois laços sociais da Antiguidade cosmopolita que sobreviveram
de forma mais ou menos marginal: por um lado, a escola da leitura, escrita e contas recebe as crianças
das famílias para as entregar mais tarde às instituições de trabalho, supre a
aprendizagem familiar no que diz respeito às tarefas civis que foram abertas,
recapitulando os conhecimentos que ao longo da história foram tornando possível
a modernidade; por outro o mercado implica que as instituições que produzem retribuam às famílias em salário a energia
dispendida no horário de trabalho, esse dinheiro permitindo o poder de compra das coisas produzidas das
famílias para a sua subsistência. A escola, prolongada nos livros e nos outros
médias[18]
de massa, cria um laço cognitivo entre os indígenas (e mediante tradução além
da língua própria) e deles com os antepassados como fazedores de cultura literária, científica e
de pensamento. Obrigatória, a escola tende a substituir as religiões holísticas
que estabeleciam uma relação sagrada com todos os antepassados de quem eram recebidas; a relação que a escola e
os médias estabelecem é de ordem cultural e histórica, passível de escolhas e rejeições. À fecundidade
dos campos e dos rebanhos que as religiões buscavam na transcendência, sucede
agora a abertura de janelas para a curiosidade humana de conhecer e compreender
além dos contextos quotidianos: há assim uma modificação da relação de tradição
aos antepassados de quem se recebem os usos, do sagrado de todos os
antepassados à cultura dos antepassados cujos nomes constam da história que
trouxe, dos gregos, romanos e hebreus, à modernidade, passível de escolha e
discussão critica[19].
O mercado, por sua vez, faz uma charneira vital entre as instituições de
trabalho e as famílias, de forma tal que o desemprego consiste em exclusão
social, acabada quase sempre a autarcia de antanho que mantinha hortas e
criação para suprir dificuldades de subsistência.
28.
Este organigrama genérico implica que os indígenas doravante não ficam ligados apenas a um
paradigma, o da casa em que nasceram ou da que vierem a constituir, mas desde
muito pequenos se liguem à escola além da família e mais tarde à instituição em
que trabalharão: esta pluralidade dos paradigmas que jogam na sua ligação ao
social é o que caracteriza o indivíduo
moderno, o que torna possível a sua liberdade. Mas é ao mesmo tempo uma situação de mútua
interdependência resultante da divisão do trabalho – heterarcia é o poder dos outros sobre nós, em vez do meu, da
aut(o)arcia – entre instituições diversas, das famílias também em relação a
elas, com o inevitável aumento de rivalidades, tornadas aliás norma do que se
chama ‘concorrência’ entre fabricantes dos mesmos produtos, entre números de
capitais quer de instituições, quer de nações diversas. O que implica que às
duas instituições inter-redes, escola com médias e mercado, se tenha acrescentado
outra de regulação política geral, separando as casas reais e seus haveres das
‘coisas públicas’ do Estado, o
qual ganhou uma institucionalidade bastante complexa, multiplicando unidades
locais de actos oficiais diversos e de trabalho administrativas (repartições).
Mas o que veio tornar mais complicadas as tentativas de análises foi a
interdependência das instituições produtivas e comerciais num todo global a que
calha bem o nome que Heidegger lhe atribuiu há mais de 60 anos, o Gestell, digamos o sistema técnico financeiro dos usos
enquanto rede de empregos.
29. A questão que põem estes dois organigramas, o
da autarcia das regiões das sociedades de casas e o da heterarcia
contemporânea, é a de saber se os vários duplos laços do primeiro podem servir
de fio inquiridor da viragem europeia de vários séculos entre ambas as
civilizações. O mínimo que se pode dizer é que não é evidente.
A escrita do conhecimento e do pensamento
30. Não conhecendo a história rural e económica da
Europa, permito-me dizer que as aldeias e campos das regiões da sociedades de
casas terão oscilado conjunturalmente segundo as transformações políticas e
religiosas até ao êxodo rural do século XIX, as inovações a ter em conta
dizendo sobretudo respeito a movimentos de cidades. Nelas sábios escrevem e
lêem textos uns dos outros, textos científicos e filosóficos do saber que se
publicaram, além de cartas que escrevem e de conversas e discussões; essa
textualidade tornada possível pela imprensa enlaça-os enquanto gente que,
usando olhos e mãos, ganha saber colectivo, o escrever e ler linhas alfabéticas
sendo motor do laço geral que gera a ‘comunidade dos sábios’, primeiro em
latim, depois em línguas vernáculas. Ora, estes laços textuais fazem-se entre
as casas dos escritores / leitores e as escolas que frequentaram e lhes deram
competência de ler e escrever, de inovar além do que aprenderam, trate-se quer
de experimentações com técnicas laboratoriais, quer de reflexões filosóficas
metafísicas e sobre política, direito e religião, que irão construindo pouco a
pouco paradigmas que desaguarão, após o Iluminismo da Enciclopédia e de Kant,
na reforma das universidades do século XIX e dos liceus e institutos técnicos,
e na exigência de escola primária obrigatória. Não será fácil para o historiador
analisar estes laços nos textos dos seus arquivos (as semióticas não terão
cumprido as suas promessas dos anos 1960-70), mas as possibilidades que eles
abrem, manifestadas nas revoluções politicas inglesa, francesa, americana e
latino americanas e na exigência de escolarização que elas veiculam, mostram
bem como a atenção dos historiadores que querem entender a singularidade da
Europa tem que se focar também nesta cena de inscrição textual revolucionada a
partir de Gutenberg. Que a exigência escolar se tenha desenvolvido sempre com a
industrialização é bem a confirmação da importância desta história da escrita
pensante, que não tem que ser escondida debaixo de pretensas ‘histórias das
mentalidades’, essas sim, realmente inacessíveis[20].
Será possível um trabalho de historiador, das ideias, como se diz, que
estabeleça a relação entre as da contemporaneidade e a sua história? Sobre o
qual se poderia continuar em digressão por textos de instituições modernas que
relevam de outras tradições civilizacionais, chinesas, indianas, muçulmanas, e
tentar perceber até que ponto é que os motivos tradicionais destas continuam,
ou não, e se os ocidentais não directamente técnicos têm algum cabimento nesses
textos, são ou não necessários à modernidade dessas sociedades que tanto
importaram ao Ocidente, isto é, à Europa (de que as Américas são herdeiras também).
Se suceder que eles os introduzem na semântica das suas línguas, como as nossas
têm termos gregos e as línguas germânicas também latinismos, poder-se-á
compreender melhor o que está aqui em jogo.
31. Enquanto que a história da descoberta dos
oceanos pelos Europeus, da globalização dos mares e das guerras e comércios, da
escravatura de africanos e da redução dos indígenas americanos, é conhecida
como parte decisiva da acumulação de capital que tornou possível a
industrialização, é menos frequente dar-se atenção à nova relação entre os
olhos e as mãos que o Renascimento instaurou, uma nova inscrição que até então terá sido interdita pela dominância
das castas guerreira e clerical, só esta tendo acesso às letras na Cristandade
medieval, partilhando o privilégio da nobreza de não usar as mãos (§ 19). Conta
Plutarco (46-125 da nossa era) que Arquimedes “não se dignou nunca deixar por
escrito nenhuma obra sobre a maneira de construir [as máquinas]” porque achava
“que toda essa ciência [de engenheiro] era vil, baixa e mercenária”[21].
Ora, o que pintores, arquitectos, desenhadores, cartógrafos, engenheiros como
Da Vinci, fazem vai ter como consequência – nomeadamente visível em Galileu e
em Newton, de que se sabe que ambos tinham jeito de mãos e faziam os artefactos
de que necessitavam as suas experimentações – que gente de conhecimento deite
mãos à obra sempre que necessário. Que nobres tenha havido a partilhar esta
aventura europeia do saber, é a excepção que confirma a regra: são artesãos e
intelectuais burgueses que a conduziram, como diz o laço da inscrição que passa
nas suas casas de escritores, leitores, inventores e descobridores, onde
começaram por improvisar seus laboratórios. Quanto às engrenagens mecânicas, é
sabido que as que foram precisas para as máquinas a vapor já haviam sido
inventadas durante o Renascimento, já aparecem na Enciclopédia de Diderot e
d’Alembert. Quando D. Landes, o historiador da técnica europeia, pretende que a
invenção de J. Watt foi ‘empírica’ e não ‘científica’, já que a sua teoria
física, a termodinâmica, só foi elaborada um século mais tarde, ele estabelece
uma dicotomia entre ciência e empirismo que parece ignorar que Watt trabalhava
em mecanismos para laboratórios de física, que era portanto alguém do mundo da
ciência do seu tempo. Quanto à história da electricidade, a dúvida já não se
põe, embora o inventor do motor eléctrico, o que chamavam dínamo, o marceneiro
belga Gramme, possa servir de exemplo a Landes: é que foram precisos experimentadores
como Volt e a pilha que inventou para se obter a corrente eléctrica, a partir da qual a teoria da
electricidade pôde ser desenvolvida experimentalmente (a electricidade não existia, ao
contrário do carvão e do petróleo). Justamente, estes engenhosos antepassados
dos nossos engenheiros também eram enlaçados pelos laços de textos dos saberes,
que as separações e oposições entre teoria e prática, ciência teórica e
experimentação, cientistas e engenheiros, são coisa mais recente, vinda do
desbravar que se foi fazendo mais complexo, da necessidade de especializar mais
e melhor.
32. Entre os elementos de comparação entre a
civilização europeia e as outras equivalentes que Eric Jones[22]
releva, a ausência de impérios duradouros tem como correlato a relativa
autonomia da actividade comercial desenvolvido numa Europa dividida e com
muitas costas marítimas e rios navegáveis ; foi um comércio de grandes
volumes de mercadorias correntes, o interesse dos reis sendo mais o de as
tributar do que de as confiscar e matar a galinha dos ovos de ouro, enquanto
que, segundo Jones, os mercadores dos impérios asiáticos, enriquecendo, nunca
estavam seguros de não atraírem a confiscação arbitrária dos imperadores, os
quais, ao contrário dos reis europeus, “não queriam estar sujeitos à lei e não
proporcionaram legislação imparcial aos seus súbditos” (Jones, p. 61). Ora,
esta mobilidade relativamente autónoma do comércio internacional é frequentemente acompanhada
pela mobilidade dos textos, impressos ou manuscritos: o que releva da escola e
o que releva do mercado, movimentos que mantiveram uma marginalidade relativa à
dualidade da nobreza e dos camponeses, ao domínio da riqueza da terra e do
poder nas mãos da aristocracia, de que o rei é a cúpula. Até que, inventando
as máquinas e a electricidade, a burguesia impôs o mercado e a escola, ou seja
a regra das cidades, a esta economia de energia biológica.
33. Seria possível contrapor uma segunda charneira
de 70 anos à da transição da Cristandade para a Europa (1450-1520), agora entre
a Europa clássica e a Europa moderna: 1750-1820. No prolongamento da invenção
dos livros e do protestantismo como sua possibilidade aberta, a Enciclopédia (1750-72) diz como no
meio do séc. XVIII se estava atolhado de textos, antigos e recentes, sendo
precisa uma triagem para seguir em frente, pondo o acento resolutamente nas
descobertas modernas sem ter que se começar sempre pela repetição dos Antigos.
O Iluminismo abriu o caminho à reforma das universidades nos inícios do século
XIX, despejando o aristotelismo e a teologia que ainda dominassem e colocando
os cientistas e pensadores, marginais quase sempre durante os tempos clássicos,
como professores, como à criação dos liceus e à escola obrigatória (ler, escrever
e contar) para todos que rivalizará com os livros sagrados das igrejas. A
invenção da máquina a vapor (1776) veio a dar origem aos comboios (1814) que
vieram a conseguir unir as várias regiões num espaço nacional. No campo
político, a Revolução Francesa (1789) e o Código Civil napoleónico instaurando
uma ordem burguesa, as revoluções das independências americanas dos Estados
Unidos (1776) ao Brasil (1822), esta a única que não foi republicana.
As duas primeiras grandes etapas da Modernidade
34. Interpretámos a proposta de Lévi-Strauss para
pensar as sociedades humanas a partir das alianças entre genealogias familiares
que trocam mulheres para evitar o fechamento incestuoso endogâmico e o laço
global que a ordem do parentesco instituída por esses laços de aliança representa.
A questão a colocar é o que sucede a esse duplo laço no que diz respeito às
sociedades actuais. Creio ser possível pensar que essas alianças, tendo
conhecido as limitações de endogamia de casta, não deixaram no entanto de ser
as bases das estruturas sociais das sociedades históricas de dominância
agrícola, com o jogo dos usos das castas guerreiras e sacerdotais a garantirem
o laço político-religioso mais poderoso, o do reino, que cobre os laços
regionais das ordens do
parentesco. Na minha ignorância do ofício de historiador, imagino que estes
laços são relativamente visíveis para que as análises os tenham implicitamente
em conta. A questão que se porá é a de se saber o que é que constitui hoje a
base da unidade das sociedades complexas compostas de duas redes fortemente
diferenciadas, por um lado a das instituições em que se trabalha e por outro a
das famílias e lazeres, sabendo-se que os humanos pertencem a ambas as esferas,
mas em lugares e tempos diferentes, segundo laços sociais que também não coincidem.
Se é certo que o casamento incestuoso continua hoje a ser interdito como regra
social em todo o lado, as alianças dos casamentos continuam a vingar mas tendo
enfraquecido a força dos seus laços, como se viu a partir do ano charneira de
1968. Mas como é que a rede das famílias se enlaça socialmente com a razoável
variedade das unidades de trabalho? E estas, que unificação conhecem? As
respostas a estas questões serão esboçadas seguindo uma análise (de leigo) das
alterações maiores provindas das grandes fases das sociedades dos dois últimos
séculos.
35. A primeira fase da revolução industrial
ocorreu desde a segunda metade do século XVIII (em Inglaterra) até aos finais
do século XIX. Foi caracterizada pela máquina a vapor, o carvão, o ferro e a
primeira química, tendo multiplicado as fábricas em torno das cidades de
algumas regiões, os comboios tendo permitido que quer o carvão quer as matérias
primas e as próprias máquinas fabricadas pudessem circular vindos das minas.
Uma primeira rede de caminhos de ferro atravessou as paisagens, criando
ligações entre as principais regiões, abrindo a geografia das jovens nações
modernas, assim como os oceanos atravessados pelos navios a vapor facilitaram
as trocas entre a Europa e as suas antigas colónias tornadas independentes
pelos novos ventos da modernidade. As regiões industrializadas ganharam
cinturas de fábricas e bairros de habitação do proletariado vindo dos campos
como nova classe trabalhadora, fábricas e bairros frequentemente péssimos do
ponto de vista ecológico (com algum paralelo com a escravatura, base da agricultura
dos nobres guerreiros de outrora). Criou-se assim uma paisagem urbana fortemente
contrastada, por um lado as cidades onde se constroem prédios para as
burguesias que a indústria promove e por outro os subúrbios de miséria, propiciando
antagonismos sociais fortes, animados por sindicatos reivindicativos, bem como
disputas políticas eleitorais que por vezes não impedem verdadeiras guerras
civis, se as disparidades proporcionam centelhas que fazem explodir os ânimos.
Penso que este movimento de populações vindas do campo para as cidades, as
fortes lutas em torno das suas condições de trabalho com as organizações que as
enquadram, merece o nome genérico de socialismo histórico:
nunca terá havido até então movimentos
de população tão grandes na
história social do Ocidente. Este quadro de afrontamento, em que a luta de
classes se oferece com evidência, torna difícil falar de unidade social, as
relações de parentescos sendo claramente de exclusividade social: nem sequer se
poderá falar de língua comum, o calão do proletariado analfabeto sendo
incompreensível para as elites escolarizadas que lêem livros e jornais. Mas o
ensino primário obrigatório e liceal instaurados criam franjas de
intelectuais e activistas que fazem pontes para as massas proletárias.
Entretanto o novo proletariado que esvaziou os campos tornou também
improcedente a escravatura que serviu de base parcial de apoio ao mercantilismo
europeu e colonial, e foi possível abolir essa chaga social que já viabilizara
a ‘modernidade’ cosmopolita da Antiguidade grega e romana: em princípio os novos proletariados que substituíram os
escravos seriam cidadãos de pleno direito, mas tiveram de se organizar e lutar para o conseguir.
36. A segunda fase foi desde o final do século
XIX até aos três quartos do século XX, por altura do nosso 25 de Abril. Aonde a
máquina a vapor e o seu carvão servem de emblema à primeira fase, poder-se-á
dizer que a electricidade por cabos é o emblema da segunda. Inventada durante a
primeira fase, ela caracterizou-se pela iluminação das ruas e das casas em vez
do gás e do azeite, assim como pela substituição das máquinas a vapor e carvão
por motores eléctricos (o que veio a beneficiar extremamente a ecologia interna
das fábricas e dos arredores das cidades) e de explosão (além dos motores de
jacto e nucleares). Além dela, também as invenções do petróleo e da química do
plástico, assim como as do aço e do cimento, do betão armado que tornou
possível a explosão da construção civil. A transformação das paisagens
geográficas trouxe o fim do isolamento das regiões tradicionais, já que os
transportes por automóveis e autocarros se acrescentaram aos comboios e aviões
para generalizar as viagens de todo o género, migrações, negócios, turismo. A
que se acrescenta, os elevadores eléctricos permitindo subir os andares a alturas
antes proibitivas, o crescimento desmedido das cidades iluminadas por prédios
de betão que se enchem de populações da classe dita média saída dos liceus
generalizados a muito mais gente, classe dos empregados de escritório e de
serviços, dos técnicos de inúmeras especializações. Com efeito, depois de ter
aligeirado fortemente a dureza do trabalho operário nas fábricas, esta fase
levou à diminuição do proletariado nos países mais industrializados, como na
fase anterior sucedera com os trabalhadores da agricultura. Mas também levou
inúmeras mulheres a descobrirem o caminho dos empregos outrora masculinos e a
sairem da zona habitacional das famílias onde a maioria ficara acantonada desde
o fim das casas, tendo frequentado a escola e beneficiado dos novos
electrodomésticos que se vão inventando: este movimento social extremamente
forte poderá chamar-se feminismo, que não apenas as suas intelectuais e
activistas. Do ponto de vista das linguagens, esta fase caracteriza-se pela
invenção de novos médias além
dos livros e jornais, capazes de sons, tanto vozes como músicas, como de
imagens em movimento (a fotografia relevou da fase anterior). Na primeira
metade do século, esta segunda fase foi dilacerada por duas tremendas guerras
mundiais, resultantes da maneira como as economias das sociedades mais
avançadas eram exacerbadamente nacionalistas e concorrentes no comércio global
que os navios tornaram possível, globalização incipiente essa que a Inglaterra
quis que se fizesse de forma liberal, isto é, desprotegida, e a que a Alemanha
quis (sobretudo da segunda vez) impor meios militares de ocupação territorial
de quase todas as nações da Europa. Após a derrota dessa guerra ignóbil, a recuperação das economias
a partir das ruínas permitiu uma época de consolidação que deu espaço às reivindicações
sociais, permitindo criar nas sociedades europeias mais avançadas um complemento
à esfera das instituições de trabalho voltado para carências específicas da
esfera do parentesco que os salários não conseguiam colmatar: relativas a
saúde, educação e pobreza, o chamado estado social, resultado em grande parte do revisionismo
marxista como social democracia, embora frequentemente os partidos se
reclamando da democracia cristã tivessem feito parte da implementação política
desse estado social.
37. É durante esta segunda fase que as novas das
invenções e descobertas europeias (termo que aqui inclui os Estados Unidos e
exclui Portugal e outras periferias) vão chegando às outras sociedades que vão
recebendo ecos desses progressos e se deixam seduzir pelas suas promessas. A
dificuldade geral, a que parece só o Japão ter escapado, é
a de, tendo permanecido em estádios pré-modernos, não poderem importar indústrias,
já que nomeadamente elas exigem uma escolarização que demora tempo a dar os
frutos desejados. Além disso, muitas sociedades estão colonizadas, nomeadamente
as de África e até na Ásia a Índia e a Indonésia, ou algumas das islâmicas,
submetidas a administrações e tropas de sociedades mais desenvolvidas. Para
todas estas, o primeiro problema será o de se baterem para conseguirem
independência política. A dificuldade geral será então a da aceleração
social necessária para se poder
chegar aos patamares das sociedades pioneiras da modernidade. A demora na
instauração duma rede industrial e do respectivo mercado salarial interno teve
como consequência a neo-colonização inicial das periferias europeias e latino
americanas por empresas multinacionais avant la lettre, presença frequentemente arrogante que suscitou
revoluções, com o modo temporário de solução que foi a liderança imposta por
partidos únicos, uns reclamando-se do marxismo seguindo a directiva leninista[23],
os outros seguindo progressismos de direita nacionalista. Entre comunismos e
fascismos pois, mais ou menos tempo consoante, este processo fez-se na segunda
fase, em que o isolamento das fronteiras de cada sociedade era ainda possível,
controlável por policias e censuras impiedosas. Façamos uma pausa metodológica,
regressando à compreensão destas transformações em termos de duplos laços.
Os três duplos laços transversais das sociedades modernas
38. Assim como nas sociedades de dominância
agrícola as paisagens das populações exibiam a diferença abissal entre a
nobreza com seus criados em palácios e as casas do povo, com o clero aliado à primeira, nas
sociedades em que uma classe média predomina na população, a diferença crucial
é agora a que resulta da ruptura das casas: entre as duas redes de unidades
sociais, as que têm funções de trabalho especializado e as que cuidam das
questões de parentesco, de reprodução das gentes e dos seus lazeres. Os dois
laços dessas unidades excluem-se liminarmente, devido às respectivas funções,
umas de forma geral da ordem da Natureza e as outras da Técnica que, por via da
maquinaria inventada e multiplicada indefinidamente, gerou a modernidade. Se se
invocam estas categorias que nunca jogaram nestas análises por falta de pertinência
da sua disjunção, é no intuito de ajudar a percepcionar com esta oposição
metafísica entre natural e artificial que as relações entre ambas as esferas
são fortemente antagónicas: quem sofre esse antagonismo são os que participam de ambas,
numa consumindo energias e noutra devendo poder restaurá-las satisfatoriamente.
É também onde se situa a questão ecológica que nos ameaça a todos cada vez
mais.
39. Enquanto que a esfera do parentesco é
homogénea no sentido em que as suas grandes funções são as mesmas, não
obstantes as divergências de usos segundo as tradições antropológicas e as diferenças de
classe social, a esfera da produção é por definição especializada segundo maquinarias e produtos
diferentes, desde os que relevam da actividade agrícola às diferentes indústrias
e aos serviços que se têm multiplicado após a última grande guerra. Nesse
sentido, a esfera do trabalho é composta por sectores que se enlaçam com razoável autonomia entre eles.
Por exemplo, o que diz respeito às actividades de alimentação em geral, desde a
agricultura e a criação de gado à agro-indústria, as lojas de alimentos,
cantinas, restaurantes, sector que se destaca pela importância dos prazos mais
ou menos apertados de validade dos seus produtos resultante de vegetais e animais;
a este sector liga-se o da saúde, com as suas diversas componentes clínicas e
hospitalares, indústria farmacêutica, farmácias e análises, centros de saúde, e
por aí fora. Outros sectores são os dos transportes, quer por estrada com as
diversas componentes de construção e reparação, de vendas e alugueres,
carreiras de autocarros e táxis, regulamentação da circulação e sua vigilância
policial, quer por caminhos de ferro, quer por avião ou por navio, todos
enlaçando as suas componentes de maneira específica. Construção civil,
mobiliário, e por aí fora. Outros sectores, como o do turismo, cruzam alguns
destes.
40. A estes sectores que fazem laços justapondo-se
ou cruzando-se parcialmente, mas parecem todos relativamente autónomos entre
si, três duplos laços se acrescentam, tipicamente desenvolvidos com a
modernidade, que atravessam estes sectores assim como são transversais à esfera
do parentesco. A análise do duplo laço relativo à esfera da produção e do mercado foi feita
de forma luminosa por Marx, ao distinguir o que chamou “forças produtivas” e “relações de
produção” e ao insistir na sua unidade contraditória. O primeiro laço releva da técnica, é a relação de manuseio que os trabalhadores têm
com as máquinas, matérias primas e produtos; ela tem como operadores de topo o Engenheiro, que predominam na organização interna da produção e no que diz respeito à qualidade dos produtos (também em produções não
industriais, por exemplos, o chefe de cozinha dum restaurante, o chefe de
redacção dum jornal). O segundo laço releva do mercado, é a relação de propriedade do capital com as
máquinas, matérias primas e produtos, e é do alcance do Economista, tem a ver com as contas de dinheiro e
mercadorias no exterior da
empresa, compras e vendas, empréstimos e pagamentos, lucros e salários.
Reenviando para “A Economia Política por vir enquanto ciência terapêutica”[24]
para a análise de conjunto, basta aqui dizer como o mercado enlaça
transversalmente o conjunto da sociedade, todos os seus sectores e ambas as
esferas, sendo a moeda o ‘motor’
que lhe dá o movimento de troca incessante, mudando constantemente de mão em
mão, de loja em banco, adequando-se à imensa aleatoriedade dos negócios e das
necessidades de consumo. Na sua base, a moeda é um factor da liberdade de
compra de cada um, dentro dos limites do seu orçamento.
41. Os duplos laços relativos à esfera do
parentesco implicam que as diferenças entre as famílias continuam a ter relação
às duas genealogias que o casamento aliou, heranças, rendas ou lucros dumas
distinguindo-as como mais ou menos ricas do que as que se relacionam com o
mercado por via de salários, maiores ou menores; em ambos os casos, o nível de
educação conseguido na escola faz parte também da distinção, dos laços que são
possíveis entre famílias de ascendências diferentes. Com o fim das autarcias de
antanho e das hortas e galinhas, os assalariados das cidades dependem apenas do
salário e sujeitos a despesas eventuais que ultrapassam o orçamento familiar,
como doenças e estudos prolongados, o que levou a complementar a esfera do
parentesco por um estado
social que se acrescenta à esfera da produção, hospitais e
escolas públicas gratuitas ou de preços moderados, maneira social-democrata de
criar igualdade de condições entre as diversas unidades sociais, de atenuar o antagonismo
entre as duas esferas. Uma outra maneira foi a organização de eleições
democráticas dos detentores do poder politico sobre ambas as esferas ser feita
a partir dos locais do parentesco, sendo que, em princípio, os critérios dos candidatos em relação a
salários, saúde e educação deveriam ser dirimentes. Acrescem as questões de
segurança e ordem pública, de legislação e administração, para caracterizar o
duplo laço político do Estado que enlaça transversalmente o conjunto da sociedade, todos os seus sectores
e ambas as esferas.
A lógica destes duplos laços modernos
42. A diferença crucial das sociedades modernas,
disse-se acima (§ 38), é a que resulta da ruptura das casas entre as duas redes
de unidades sociais, as que têm funções de trabalho especializado e as que
cuidam das questões de parentesco, de reprodução das gentes e dos seus lazeres,
os dois laços dessas unidades excluindo-se liminarmente, devido às respectivas
funções. As casas de antanho eram duplamente enlaçadas segundo essas funções, mas
nas predominantes, casas agrícolas e de criação, elas não se excluíam: os frutos da fecundidade
desse trabalho alimentavam a fecundidade do parentesco, a sua reprodução
quotidiana, a qual por
sua vez permitia que os humanos e os animais trabalhassem no campo. O paradigma
tinha oscilações diárias (comer, trabalhar, dormir), como aliás sazonais, mas a sua unidade não se quebrava,
quero crer. Ora bem, a ruptura crucial entre as duas esferas na modernidade é o
lugar decisivo da teorização fenomenológica que aqui se busca, já que elas não
podem deixar de se corresponderem numa ‘unidade social’, por
exemplo de ordem ‘nacional’ (com
unidades regionais internas e relações internacionais externas), na medida em
que foi a constituição das escolas (e médias), mercados e estados das novas
‘nações’ que caracterizou a transição dos antigos regimes para as várias
sociedades modernas. A função social destes três laços transversais é justamente
a de tornar
possível a unidade do todo social apesar da ruptura entre as duas esferas (por regra toda a gente tem lugar em ambas), é o que há que procurar compreender. Os salários da esfera dos empregos
(nem todos são produtivos de mercadorias) destinam-se estruturalmente aos
orçamentos familiares, mas nem tudo o que se produz (e se trabalha como
emprego) se destina ao consumo de reprodução familiar, uma boa parte do que entra no mercado vai para
outras instituições produtivas ou outras. Assim como dentro duma empresa de
grande dimensão as diversas oficinas formam uma rede de relacionação entre umas
e outras, pode-se considerar que também as relações de mercado entre as
diversas empresas produtivas (ou outras) forma uma rede muito mais gigantesca, diferentes e concorrentes,
mas cuja saída final do mercado se faz na esfera familiar, mas também sobre o
que sustenta ambas as esferas e todo o conjunto social, o que se pode chamar a
terra ecológica (vulgo ‘ambiente’), a Terra dos vivos em seus lugares de habitação
(eco-). Dizia Heidegger que o
próprio dos humanos é habitarem a Terra, a phusis dos gregos, a natureza dos latinos, que há que pensar, não como um passivo
ambiente, mas como Aquela que
dá tudo o que é vivo, todo o
social portanto também. Social e ecologia são indissociáveis, a economia, a
politica e os saberes são parte desta unidade. Para saber como, há que indagar
da estrutura destes três duplos laços, quais os respectivos motores e
aparelhos.
43. A escola e o mercado são o par de aparelhos que
institui a relação entre ambas as
esferas: a primeira recebe as crianças das famílias para as entregar adultas
aos empregos para onde se orientaram, o segundo retribui a energia e o saber
colocados nesses empregos com o salário do orçamento familiar, sendo que o
estatuto social que cada um conseguirá atingir depende dos dois factores, o saber
profissional e civil (cultura) e o salário, que serão os motivos do seu percurso social, que lhe dão movimento,
estímulo, ambição. Tratar-se-á de se apropriar, de fazer ‘motor’ do ego, se se pode dizer, esses
dois ‘motores’ sociais, o saber (§ 10) e o dinheiro (§ 40). Ora, a moeda só pode ser
motor das trocas no mercado por ser ‘propriedade’ daquele que a detém, passando
da propriedade do que compra para a do que vende, segundo a equidade (a lógica
dos contratos é serem em benefício de ambos os contratantes) de acordo com a língua
conjuntural dos preços; do mesmo modo, só se pode conversar (ou escrever para
outrem) por as palavras e frases serem ex-primidas pela boca (ou caneta) de
cada um que fala ou escreve, segundo a verdade e as regras da língua. O que
implica ser apropriado o que vale estruturalmente como factor de intercâmbio cultural e de troca
mercantil, ser desejado por ele mesmo, aquém das relações de troca, como
possibilidade de posição social nessas relações: ser-se sabedor, hábil, inteligente
e ser-se rico, são os desejos que, a nível individual e familiar, movem as
sociedades, dão-lhes ânimo no âmago das respectivas unidades sociais, tanto
familiares como de emprego, com fortes oscilações entre solidariedade e
individualismo. O dinheiro não vale para Robinson Crusoé na sua ilha, e o saber
linguístico recebido
de outros, duma longa ancestralidade como cultura, pouco lhe presta além da
habilidade de sobrevivência, já que a cultura não é narcísica e só alimenta
cada um em ‘conversa’, no sentido etimológico de verter-se solidariamente
(con-) para outrem. Ambos os factores são estruturalmente sociais, vindos da
tribo para à tribo volver e alargá-la, mas esta apropriação que pode virar
ambição, boa e/ou pejorativa, afectando as motivações mais fortes de cada
indígena, em sua família ou em seu local de trabalho, a sua maneira de usar nos
respectivos paradigmas, é algo sem o quê as sociedades modernas não podem
funcionar, para o bem como para o mal. É onde estará a raiz da necessidade do
terceiro duplo laço transversal, o do Estado.
44. Em termos muito gerais, este deve ser o
garante de que todos os cidadãos o sejam de facto, em suas condições básicas de
vida, as que lhes vêm de serem mamíferos; a organização social moderna
justifica-se por tornar essas condições melhores, não só do que na selva dos
selvagens por onde as nossas histórias começaram, mas também nas sociedades de
regimes escravagistas e feudais: o imperativo fundamental do Estado é a garantia
de que, seja qual for o regime social, haja para todos os cidadãos alimentação,
respiração e descanso nos funcionamentos quotidianos, abrigo e segurança face a
agressões de terceiros. Trata-se
de ‘direitos elementares’ que se poderão dizer pré-democráticos, devidos à
constituição biológica dos humanos: nas sociedades modernas é através da Lei
que a ordem e a segurança da sociedade civil, a ‘outra’ do Estado, devem ser
efectivadas, é ela que motiva todo o seu funcionamento: segundo a antiga
fórmula, o Estado age ‘em nome da Lei’. Antes mesmo de se dirigir a cada
cidadão, a Lei visa a boa ordem do conjunto das unidades locais, quer produtivas e outros
empregos (mormente escolas, médias e bancos), quer familiares.
45. Ora bem, qual é o ‘motor’ daquilo a que se
chama frequentemente o ‘aparelho’ do Estado, o que é que o motiva, lhe confere
o seu específico
movimento? Abordemos a questão, de forma necessariamente sumária, tendo também
em conta os duplos laços dos dois outros aparelhos transversais, o mercado e a
escola (e médias). Como se disse (§ 10), motor e aparelho dum duplo laço jogam
indissociavelmente (é só um
laço, que é duplo, nenhum existe por si só) mas segundo lógicas inconciliáveis
que lhe permitem mover-se de forma adequada à respectiva circulação. A lei que
rege o motor retirado da cena dando-lhe energia, é cega para a cena de circulação
(como o cilindro do carro ignora a circulação da rua e os genes e hormonas
animais ignoram a cena ecológica), a energia tem pois que ser disciplinada
(embraiagem do automóvel, aprendizagem de receitas que disciplinam as pulsões
hormonais) pelo aparelho na sua adequação a essas circunstâncias. No caso da moeda,
motor do mercado, ela é retirada de ser mercadoria para as fazer circular em trocas (Marx), compras e vendas
em que ela circula de mão em mão. É esse retiro – dela mesma, a moeda é cega
para aquilo que o seu proprietário de momento compra, a língua dos preços é da
ordem do aparelho – que a torna capaz de tesourização, de acumulação financeira
para empréstimos bancários, para ser ‘alugada’ à economia como capital que
lança um investimento que venha a dar lucros susceptíveis de devolverem o
empréstimo e pagarem os lucros do seu aluguer. É nesta acumulação financeira de
moeda, que cresce especulativamente, dinheiro que busca dinheiro de forma
‘cega’, sem relação às trocas da economia, ao mercado propriamente dito, é
aonde os desejos de enriquecimento intervêm como factores de risco no retorno
posterior à economia, quando provocam turbilhões em que várias ‘ganâncias’ se
alimentaram em vazio e as falências e as crises sucedem, como se viu na cascata
de empobrecimento que caiu sobre nós a partir de 2008. Se sem finanças não há
economias modernas, se elas são indissociáveis, as crises são o revelador da
sua inconciliabilidade, quando o apetite sem freios de alguns dá cabo da boa
ordem quotidiana dos que estão excluídos desses apetites (ou se limitam a jogar
nas lotarias). Seria possível fazer um paralelo da economia com os saberes que
a escola ministra: retirados por abstracção dos usos e costumes das famílias
que é normalmente sua função implementar (as receitas do que se deve fazer),
aprendem-se em exercícios que se poderiam dizer ociosos, gratuitos, de forma a
estruturar as inteligências – conhecimentos, pensamentos – resolvendo problemas
abstractos relativos à complexidade social e humana. Este retiro, que artigos e
livros prolongam como complemento da escola, que buscam explicar, desdobrar o
que se dá como complexo demais nas cenas terrestres e sociais (como aqui se
tenta, abstractamente !), presta-se ao que se poderia chamar acumulação
especulativa que se afasta do que é cena complexa reduzindo os saberes a formas
ideológicas simplificadas e susceptíveis de parecerem verdadeiras. Fascismo,
nazismo, comunismo, foram ‘pensamentos únicos’ que, por um desejo de
compreender excessivo, afastaram outros discursos – mais difíceis porque
atentos à dificuldade dos problemas – para se proporem como solução (cega) de
todas as problemáticas, manifestando-se a sua inadequação nas formas
ditatoriais de se imporem, na incapacidade de dialogar para se adequar às
questões e soluções. Este motivo do ‘pensamento único’ indica um motor a
funcionar em vazio, especulativamente, ignorante das circunstâncias que
complexificam qualquer conhecimento ou pensamento digno desse nome: se as
sociedades modernas não podem funcionar sem os discursos de conhecimento e pensamento
da escola e dos médias em tantos e tão variados aspectos das vidas, as
ideologias que se extremam em pensamento único e total – a arrogância do neo-liberalismo
com que uma direita descentrada nos governou entre 2011 e 2015 – mostram como
os saberes podem ser inconciliáveis com a reprodução das sociedades. O agente
do Estado, como outrora o rei (Hegel), enquanto age para implementar a autoridade
da Lei, é retirado do estatuto corrente de ‘cidadão’: governante,
deputado, juiz, polícia, eventualmente funcionário público, recebe da Lei um
estatuto de ‘fazedor de ordem pública’, se se pode dizer, que lhes confere autoridade
em nome da Lei para ser ‘motor’
do Estado em situações concretas face a cidadãos. Há várias maneiras de
exemplificar como é que esta autoridade em nome da Lei, indissociável da boa
ordem social e pedindo uma democracia justa, como diremos a seguir, se pode
mostrar inconciliável com essa função de ordem e segurança, a mais óbvia sendo
o abuso da força das armas para resolver conflitos sociais, assim como as
ditaduras que nessa força se apoiam. Ao nível dos agentes, pode-se dizer que a corrupção, que consiste em receber dinheiro pela calada em
troca de favorecimentos particulares, é a maneira do agente do Estado usar do
seu bolso de cidadão; igualmente a maneira autoritária e por vezes brutal de
agir, a coberto da autoridade, é uma espécie de ‘corrupção do pensamento’ que
faz daquele que deve ser neutro em nome da Lei um cidadão exasperado.
A questão da democracia
46. As sociedades modernas escolheram a
democracia como regime mais adequado
para controlar a lei da guerra (§ 12), tendo em conta quer a complexidade da
sua organização, em que ninguém tem saber abrangente das suas inúmeras
questões, quer a maioridade politica da Razão (Kant) que o saber da escola e o
efeito sobre ele dos médias conferem aos cidadãos, cujo conjunto forma a
chamada opinião pública.
Pode-se incluir a democracia e a respectiva autonomia dos cidadãos como inerente
ao motivo de sociedade moderna, como estou propondo? A dificuldade é que se trata
de motivos que abrangem as noções de justiça e de ética que estão fora do
âmbito dos motivos das ciências sociais, com que a fenomenologia que aqui se
pratica se liga. Talvez se possa enfrentar esta dificuldade através do motivo
de possibilidade de Heidegger
(Ser e Tempo) que caracteriza
o ser no mundo. As
possibilidades de cada humano (de cada família, de cada empresa) são
simultaneamente desse humano e do mundo tribal em que ele se fez e se faz dia a
dia: tanto são de ordem da estatura e do sexo como do estrato social e dos
estudos, como da idiossincrasia, das suas paixões e ambições, de tudo isto se
tendo feito um dado estilo
singular de ser no mundo. Ora
bem, o horizonte democrático da acção do aparelho de Estado será o de
respeitá-las e de fomentá-las, de deixar serem (ainda Heidegger)
essas possibilidades nos
limites do jogo social. O que implica pôr em questão a noção de ‘poder’ como
substantivo, que tem alcance sobre outrem, cerceando-lhe as suas possibilidades
no seu mundo, cortando-lhe o que ele pode (‘poder’ como verbo). A autoridade em nome da Lei, ainda quando condenar e
prender um criminoso (há que lhe deixar outras
possibilidades suas, de estudar por exemplo frequente), não se deve confundir com
‘poder’, a exemplo dos pais e professores que têm autoridade sobre filhos e
alunos mas em ordem a deixarem de a ter à medida da evolução das suas
possibilidades. Esta perspectiva permite entender o triunfo da palavra politica
de Barack Obama em 2008, “Yes, we can”, que terá inspirado o partido de
renovação politica espanhol “Podemos”. Mas assim como os pais e professores,
também os proprietários de empresas de produção e outras, ao contratarem
cidadãos para nelas ocuparem um lugar no organigrama, deverão atender às
possibilidades de cada um no lugar atribuído, deixar-lhe a autonomia que é boa
para ele e para as suas funções na empresa, fazer jogar relações de autoridade na indispensável disciplina e
não de ‘poder’, já que se trata de concidadãos seus. Há que esperar que o
conjunto da empresa beneficie desse funcionamento democrático.
47. Tentemos dizer qual é o interesse teórico
deste motivo de duplos laços nas sociedades modernas. A primeira observação a
fazer é que ele não faz nenhuma concorrência aos historiadores ou sociólogos,
no sentido em que é a eles que pertence dizer os ‘elementos sociais’ que em
qualquer investigação relevam de tal ou tal duplo laço e guarda a competência
de analisar esse conjunto, segundo as suas metodologias, o seu laboratório. O
interesse do motivo consiste em permitir aceder à autonomia do ‘movimento’
desse conjunto que dependerá de duas leis, por um lado indissociáveis, o que
faz dele uma unidade, e por outro inconciliáveis, o que dirá como essa unidade
se move temporalmente em convergência e conflito com outras. Voltemos ao caso
duma fábrica. O laço técnico
dá conta do que nela se faz, entre gabinetes de concepção dos produtos e
cadeias de fabrico, da vigilância do engenheiro sobre a qualidade programada,
assim como acompanhar a efectivação do organigrama do pessoal nas suas várias
competências. A lei a que este laço obedece é a do que se pode chamar o ‘valor
de produto’ que as oficinas têm que conseguir entregar ao laço dos que encaminharão
os produtos para o mercado. O laço do economista encarregar-se-á de atribuir um
preço de venda como ‘valor de troca’, tendo em conta os custos consentidos, os
impostos e as amortizações de máquinas, etc., buscando conseguir a maior mais
valia possível. Duas leis – a melhor qualidade e o maior ganho – isto é, a do
engenheiro indissociável da do economista, mas este querendo baixar os preços à
custa, dirá o engenheiro, da qualidade, as leis são inconciliáveis no que se
busca como a melhor qualidade e preço. Por outro lado, os salários pagos
correspondem aos laços da empresa com as famílias dos trabalhadores e aqui,
lucros e salários são indissociáveis (capital e trabalho) mas as leis são
outras, as da reprodução da fábrica e da família do proprietário e as da
reprodução das famílias dos trabalhadores: é onde a inconciliação se esconde
nas contas do economista e se manifesta na insatisfação dos trabalhadores e nas
lutas dos sindicatos. Com efeito, os salários são vistos pelo economista como
‘custos’, à maneira das matérias primas, na lógica da esfera de produção,
enquanto que os cidadãos assalariados os recebem na lógica do parentesco como
paga mais ou menos justa. Só que não há nenhum critério neutro, aritmético ou
científico, para decidir na repartição das mais valias obtidas entre salários e
lucros, a decisão é sempre política – greve, concertação, contrato colectivo,
imposição estatal –, o que tem como consequência que as contas dos economistas,
com pretensão científica, escondem de facto a favor do capital uma relação
política que assinala desde este primeiro nível uma falta de cientificidade da
economia, as posições tomadas pelos economistas sendo por regra uma tomada de
partido oculta pelo lei do capital sobre a da produção técnica, incluindo as
condições qualitativas de trabalho. Antagonismo pois entre as duas grandes
esferas, que a economia, enquanto ciência social, deverá por a nu a dimensão
politica.
48. O duplo laço da escola, relativo à escrita e às contas que qualquer
cidadão tem que dominar para os seus próprios interesses, desenvolveu-se em
patamares sucessivos de especialização que determinam os lugares a ocupar nas
hierarquias da esfera do trabalho, o que sublinha o seu carácter transversal,
como que de distribuição dos cidadãos pela diversidade dos postos de trabalho
segundo as competências que dela receberam. Mas obviamente que ela não pode ter
esse papel sem que este seja prolongado pelos livros que desde o Renascimento a
tornaram possível, fornecendo-lhe o que ela proporciona aos que a frequentam:
os saberes acumulados ao longo dos séculos e reelaborados constantemente; o
respectivo ‘motor’ são os seus mecanismos de aprendizagem a que responderá, de maneira fortemente
aleatória, a curiosidade de cada aluno/a, de cada turma, e o engenho pedagógico
de cada professor/a. Em seus livros e mestres, a escola recapitula a fabulosa
história dos saberes em suas múltiplas disciplinas[25],
segundo uma lei da verdade que os professores repetem e a que os alunos
submetem em provas de avaliação das suas aprendizagens. Uma escola enlaça professores e alunos indissociavelmente,
no sentido em que ambos são regidos pela lei do saber a aprender, os alunos
ganhando com esse saber possibilidades maiores da sua vida futura e os
professores tendo a sua reputação e a da escola dependente desse saber
adquirido manifestamente. É nessa manifestação que se percebe a inconciliabilidade,
quando o professor vira juiz de avaliação e o aluno busca a nota que não
merece. A intervenção de terceiros, a escola, outros professores e direcção,
ministério, famílias, sem falar nos rankings das escolas dum pais como se fosse um campeonato
entre concorrentes no mercado, complica fortemente esta dualidade elementar da
aprendizagem, mostrando que o sistema de ensino se enlaça com outras unidades
sociais, além da relação aos saberes e à crítica permanente a que eles estão
sujeitos, por definição de modernidade. Destes saberes fazem parte as dimensões
ética e política dizendo respeito à actualidade, contada esta, além dos livros,
por jornais e revistas que desde os séculos clássicos geraram uma opinião
pública que veio a gizar debates
de ordem política e social em ordem ao esclarecimento democrático dos cidadãos.
A partir do século passado, este espaço público dos cidadãos conheceu novos médias de sons e de imagens, rádio, cinema e televisão
que inundaram a esfera do parentesco de músicas e outras formas de conhecimento
e de entretimento. Ora bem, qualquer texto de jornal está sujeito à lei da
verdade que rege tudo o que da língua sucede socialmente, sem a confiança na
qual ninguém compraria um único jornal nem acreditaria em ninguém; o leitor, em
relação indissociável com o jornalista que não conhece, não deixa de ter a sua
razão crítica que se pode a cada momento revelar inconciliável com o que lê. É
aonde ganha um papel preponderante o problema do financiamento, números de
venda ou de assistência, relação desses números com a publicidade. A questão é
equivalente à do engenheiro e do economista, só que os critérios de ‘qualidade’
do jornalista são mais volúveis, por assim dizer, antecipando os da curiosidade
de quem, em seus tempos de lazer, busca neles aprender e/ou entreter-se: neste jogo,
ganham as maiorias facilmente, os jornalistas e outros profissionais dos médias
elaborando os seus textos ou realizações em vista de atenuar o que haja de
crítica inconciliável por uma espécie de cumplicidade na fácil digestão,
oferecendo uma qualidade que se revele adequada a quem tem vidas mais ou menos
duras ou monótonas: é o que permite os grandes números de venda ou de
espectadores. Pelo contrário, quem aposta na exigência cultural dos seus
leitores, vê a inconciliabilidade diminuir-lhe os que se manifestam à altura da
indissociabilidade de tal serviço. Poucos mas bons, em eco aos antepassados
culturais que tornaram possível esta modernidade, que também em seu tempo
sofreram as mais das vezes de serem minoritários, solidão que é a paga da paixão
de viver que a obra cultural desencadeia.
Do lado das famílias, dos cidadãos
49. Em consequência, o discurso público, outrora feito
através de sermões, aulas, discursos,
conferências, isto é, formas destinadas à ‘elevação’ das práticas sociais, tornou-se
publicidade[26], que é o nome de todo o discurso que vem da
esfera do trabalho com destino à do parentesco, com grande atenuação dos lugares autorizados
donde se possa esperar, como dizer?, discursos de orientação crítica relativa
ao social. Vive-se em família em torno do ecrã: o duplo sentido desta palavra é elucidativo,
‘aquilo que se vê’ é o ‘obstáculo’ a ver-se, faz ecrã além do que se vê, impede
de compreender a relação do ‘dado a ver’ com o sistema geral que o sustenta
segundo a sua lei de reprodução. O que está aqui em questão é o ser no mundo que cada um de nós é, conforme Heidegger e Derrida
nos ensinaram: o que se aprende de outros faz-se nosso saber pessoal com o apagamento
daqueles que nos ensinaram, enquanto que a eficácia das imagens e slogans publicitários é evitar esse apagamento, é sermos perseguidos por frases e
pequenas histórias aliciantes, heteronomia que permanece e nos tolda a
autonomia, as
possibilidades, a liberdade e a solidariedade.
O quase desaparecimento de autoridade ética faz parte do relativismo geral em
que os discursos sobrevivem e as imagens nos perseguem, sem que ninguém saiba
hoje como é que este estado de coisas pode ser modificado no sentido da boa
reprodução da esfera do parentesco, da sua cultura e entretimento fortemente
plural.
50. Esta sofre uma transformação inédita,
recebendo as sociedades ocidentais ao retardador os efeitos da divisão das
casas de antanho na libertação das mulheres e dos jovens, na reelaboração do
paradigma no respeitante à sexualidade em que imperava o medo do adultério das
‘mães’. Com efeito, do lado das famílias, o
duplo laço joga-se não apenas no orçamento que resulta de ambos
os salários, mas no conjunto do
paradigma, segundo uma lei que rege o bom funcionamento da unidade social. Cada
um dos membros dela, tendo interesse na boa efectivação dessa lei em seu
proveito, poderá ser tentado a escapar ao que lhe compete, desde a contribuição
com o seu salário como a energia nos usos domésticos, consoante o seu lugar. O
divórcio, que tem sempre múltiplos motivos, é a constatação da
inconciliabilidade entre estas duas leis no que ao casal diz respeito, frequentemente
os laços respectivos de cada um à sua instituição de trabalho sendo parte do
conflito, mas também a persistência da tradição patriarcal de cujo machismo
muitos jovens parecem ter tanta dificuldade em se libertarem como aqueles que
vimos de antes da explosão do feminismo. 51. O mercado e a escola
(com os médias) são pois dois
laços transversais às duas ordens de unidades sociais, produção e parentesco,
inscrevendo os seus emblemas de valor (dinheiro por um lado, slogans e estrelas
mediáticas por outro) na individualidade de cada cidadão, sobredeterminando, se
dizer se pode, as aprendizagens incessantes dos diversos usos e contribuindo
para o carácter caótico das vidas urbanas. Se o termo ‘caótico’ tem aqui
implicações éticas também, ele diz preferentemente o equilíbrio inacreditável,
impossível, das imensas multidões de indivíduos livres nas suas agitações
quotidianas, o espanto fenomenológico diante deste funcionamento razoável das
metrópoles, por certo com muitos defeitos e merecendo inúmeras críticas, mas
que funcionam razoavelmente. Mas só em razão do terceiro grande laço social
transversal, o da administração da ordem e da justiça pelo aparelho de
Estado, que pede como ‘motor’ as
duas esferas de unidades sociais de ordem da produção privada, as que produzem
mercadorias e serviços e as que reproduzem os cidadãos, correspondendo aos
interesses pessoais de quem trabalha – lucros e salários – e das respectivas
famílias: o papel dos impostos visa a efectividade desse duplo laço. As
respectivas unidades sociais de administração pública, tendo como unidades de
trabalho locais e horários equivalentes aos outros (em sua grande variedade),
destacam-se crucialmente pelos fins das suas práticas: nem colocar produtos no
comércio nem buscar lucros, mas garantir as funções públicas de ordem, justiça e salvaguarda dos cidadãos mais
fracos. A corrupção é o desvio destas funções para interesses privados.
52. Será possível detalhar algo dos duplos laços
do ser no mundo dum cidadão
humano de hoje, aquilo que muitas vezes se coloca como o problema da
identidade? Ninguém é apenas um ‘corpo’ envolvido em pele, que as marcas dos
seus percursos são laços a que chamamos memórias que se vão enxertando umas nas
outras e desse misturar fazem amálgamas do que se lembra e do que esqueceu. A
começar pela memória perdida do feto no ventre de sua mãe e a dos dois ou três
primeiros anos de dado à luz, das aprendizagens tacanhas, gatinhar, andar,
primeiras mexidas e palavras, que, de se terem aperfeiçoado, foram esquecidas
indelevelmente pelo que lhes sobreveio: foi o que Freud indagou nos sonhos como
aquilo que o peso do social não deixa voltar, de tal forma foi necessário
corrigir, domesticar o que daí sairia. Esse início de disciplina paradigmática
estruturar-se-á como laço – inconsciente – ao familiar e à creche ao longo dos
anos, dos jogos e do que se aprende na escola, mas também desenhos animados e
jogos electrónicos, descoberta de artes, desportos ou outros interesses,
passageiros ou não; depois as especializações em ofícios, a nova família, a
compreensão cívica que se vai ganhando culturalmente do mundo em que se é, se
vive: são laços a lugares e acontecimentos que permitirão mais tarde reconhecer
outros, com agrados ou temores. O motivo ‘laço’ é a entender de maneira
literal: fica-se ligado
efectiva e afectivamente, a favor ou contragosto, a tal acontecimento – ‘gentes
lugar momento’ – que jogará na maneira como se agirá no próximo acontecimento,
na próxima decisão a tomar. A memória não é uma coisa interna, cerebral, mas marcos
do passado dum laço no mundo. Como dizia Heidegger alongando o motivo fenomenológico
de intencionalidade, quando
noutra cidade se pensa na ponte medieval de Heidelberg, está-se a distância ao
pé da ponte e não ao pé duma representação mental na cabeça. Que todos estes
laços, afectos efectivos que somos, se enlacem no nosso corpo orgânico, sabe-se
lá como, no nosso funcionamento quotidiano, fazendo o duplo laço que é
conhecido como psico-somático,
só parece possível porque esta feliz (ou não) dispersão ao longo da história de
cada um se volve necessariamente ‘esquecimento’, que é como se reserva o que
chamamos memória: ‘tudo o que sabemos’ está lá sem estar, capaz de vir (‘souvenir’,
diz-se em francês) em conta gotas quando tem que ser em tal lugar momento; temos
então consciência duma certa unidade pessoal. E o que é que faz este duplo laço de cada vez? Por um lado, estabelece a
unidade do indivíduo cidadão com a cena do Mendo que ele é nessa vez, nesse acontecimento, é o laço de
maleabilidade (ou liberdade) com o mundo, outros e coisas desse acontecer; por
outro lado, recebe do laço que é o seu passado de ser no mundo no orgânico a
energia, a luz, o gosto de assim se mover, de bom ou maugrado consoante o duplo
laço se revela mais ou menos inconciliável. Não se pode dizer que seja fácil,
que ter-se prescindido da velha ‘alma’ ou do ‘sujeito’ não é para tornar as
coisas mais simples de abordar. O enigma humano é rebelde a quem o quer conhecer,
mal o balbuciamos.
A libertação do ano de 1968
53. O mês de Maio francês de 68 ganhou sem dúvida
uma espectacularidade única mas foi parte duma malha de acontecimentos, de revoltas
juvenis, de Tóquio à Califórnia, passando nomeadamente por Praga, Alemanha,
Itália, Brasil e pela contestação americana da guerra do Vietname. Esta malha
é, enquanto tal, de explicação difícil mas o carácter exemplar da greve dum mês
das universidades e fábricas que paralisou a sociedade francesa sob impulso das
suas juventudes, as trabalhadoras e as que se preparavam para as funções
dirigentes, dá a entender que se tratou duma espécie de cataclismo,
manifestando com fragor o antagonismo da esfera do trabalho face à do
parentesco, despoletado pela parte jovem rebelde desta. O duplo laço dos
paradigmas familiares sobre a aprendizagem que vinha das sociedades anteriores
arrastava consigo uma disciplina sobre os jovens que foi posta em questão pela
frequência da escola como lugar outro do que o da família, abertura da
liberdade, como se disse (§ 28), ou das fábricas para os jovens operários mais
escolarizados. Provavelmente por dois tipos de razões. Por um lado, os
automóveis e os electrodomésticos que se generalizavam então, máquinas que
intervieram de forma inédita na esfera do parentesco, fizeram as novas gerações
aprender usos de pilotos modernos que as dos respectivos pais não conheciam;
por outro, o cinema e as televisões trouxeram inopinadamente um alargamento do
universo narrativo além do tradicional da região, igualmente inédito para as
gerações dos pais que as mais das vezes não acompanharam senão de forma
recriminativa. O que significa o surgir duma ruptura de gerações e da
revolta consequente contra as autoridades, escolares, patronais e familiares,
contra a rigidez hierárquica das instituições escolares e produtivas, contra a
disciplina quotidiana arcaica dos paradigmas que elas reconduziam. Foi sobre a sexualidade que uma boa parte dessa
revolta incidiu, como se viu na sequência, o surgimento dos movimentos de
libertação sexual, feminismo, gays e lesbianismo, a multiplicação de divórcios
e de casamentos sem papel civil, e por aí fora. Mas incidiu igualmente sobre a
própria atitude de revolta como afirmação individual, solidária, política,
contra as relações hierárquicas tradicionais: nas instituições de trabalho
entrou o ‘tu’ aos chefes, a contestação das gravatas, as barbas, etc.[27]
Sem dúvida que houve no Maio de 68 francês um discurso político revolucionário
marxista, mas esse a sequência mostrou ser mais um estertor do que uma inauguração.
54. Esta revolução sexual, bem vistas as coisas,
acaba por ser uma espécie de ‘resposta’ da longa sequência histórica das
sociedades ocidentais ao que caracterizámos, com Lévi-Strauss, como a base das
sociedades humanas, a aliança entre duas famílias que é o casamento enquanto
troca de mulheres. Porque foi esta base da esfera do parentesco – em metrópoles
em que as famílias não se conhecem a maior parte das vezes quando um namoro se
estabelece – que se tornou instável, multiplicando as formas e por isso os
laços de cada um, consoante os casamentos dos respectivos pais, com a
consequente instabilidade dos quadros de vida das crianças, se for certo, como
parece, que seja a estabilidade das aprendizagens dos usos e dos afectos nos
tempos mais precoces que justificam a aliança entre homem e mulher, os quais se
vinham desligando da respectiva ascendência, recusado o ‘negócio’ do casamento
feito pelos pais em função de questões de heranças (que são do laço ancestral
das casas a parte visível que resta, a das famílias com fortuna).
A terceira etapa da Modernidade é a actual
55. Com cerca de 40 anos, esta última etapa está
no seu início, e parece dever ser caracterizada pelas transferências electrónicas (de textos,
números, músicas, imagens) pela internet
(inter-rede), permitindo o tratamento e circulação de ‘linguagens’ várias,
assim como pelo desenvolvimento de redes de transporte de passageiros e de mercadorias (camiões tir,
navios e aviões cargueiros). Ora, o ‘trans’ das
transferências e transportes indica que se trata de passar dum local para
outro : a globalização é de realidades que, desde as regiões de outrora às
nações modernas, são essencialmente locais, são
elas, incluindo as unidades sociais, empresas e famílias, que são modificadas
por essas redes globais. Esta globalização das redes de transporte e de
comunicação electrónica fomentou, além de fortes e anárquicos movimentos de
migração, o desenvolvimento de grandes empresas multinacionais (começou-se a
falar delas no início dos anos 70) com a predomínio dos Estados Unidos e o
enfraquecimento relativo da Europa (apesar da União estabelecida entre as suas
nações para evitar a perca de influência na modernidade global, elas que lhe
deram origem) e, já neste século, emergência em aceleração rápida das potências
de grande população do dantes chamado Terceiro Mundo, o Segundo Mundo soviético
tendo implodido estrondosamente, incapaz da viragem que a China fez, apoiada em
duas tradições que a Rússia, de tradição cristã ortodoxa, ignora: por um lado, uma capacidade de iniciativa
económica fervilhante que foi despoletada por Deng Xiaoping, e por outro, uma tradição burocrático imperial de mais de dois milénios que
tem conseguido, a custo da repressão dos contestatários activistas, manter o
poder politico do partido herdado de Mao Tsé Tung.
56. Como foram afectadas as unidades sociais de
produção, de índole necessariamente local? Nos países mais desenvolvidos,
conheceram robots (electronização das máquinas, dando-lhes uma certa autonomia programada) e
computadores com seus programas de software, que aliviam trabalhadores de todas as
categorias dos trabalhos mais monótonos, musculares ou de escrita e contas,
mas também os expulsam para um desemprego crescente, assim como flexibilizam e
tornam inseguro os empregos dos outros, destruindo uma boa parte das condições
de trabalho mais humanas conseguidas pelos movimentos sociais históricos
dos trabalhadores durante a segunda fase da revolução industrial,
desestabilizando as formas de Estado social que aí se estruturaram. Sobre isso, os detentores
de capital, que se mobilizou vertiginosamente nas Bolsas electrónicas, deslocaram
uma boa parte das unidades industriais para os países asiáticos de mão de obra
abundante e barata, acelerando o desemprego no Primeiro Mundo. Esta
desindustrialização foi uma bênção para o desenvolvimento asiático acelerado, é
certo, onde se encontra um destes paradoxos históricos em que o bem de uns é
mal de outros: o poder dos capitais como duplo laço monetário de ordem global,
multi-nacional, se jogar reduzindo em suas contas tudo o que de local se lhes opõe, às contas que não querem
senão crescer. O que caracteriza as empresas multi-nacionais, que se podem
dizer igualmente multi-locais, sabendo-se que constituem assim a unidade de
gestão do capital como um enxame
de duplos laços com cada unidade local, estas servindo de motor para fazer
crescer os números da sede americana, japonesa ou europeia, mas com um efeito
perverso de retorsão: as pressões sobre as várias unidades locais e seus
trabalhadores que, do ponto de
vista da sede, são não-cidadãos, ‘sujeitos’ apenas aos duplos laços políticos locais, inoperantes ao nível
dos laços monetários. Quanto aos países de origem das sedes multi-nacionais –
cada vez mais a-pátrida, quer o capital propriamente dito, quer as múltiplas
nacionalidades dos seus gestores vindos dos quatro cantos do mundo, quer ainda
frequentemente com uma sede fiscal fictícia de fuga aos impostos –, elas são
protegidas apesar de tudo pelo ‘Estado de origem’, já que os números delas
contribuem para aumentar os dele, sem que isso impeça todavia esses Estados de
terem que se haver com a crise gerada pelo desemprego massivo devido à
electrónica e à desindustrialização, o crescente desemprego jovem hipotecando o
futuro dirigente das sociedades, inúmeras unidades familiares sem salários,
cidadãos sem condições de sobrevivência em termos de habitação e de saúde, a
que se acrescentam os inúmeros migrantes clandestinos vindos das sociedades
pobres, aonde chegam as imagens de televisão como chamariz. Como os Estados
são por natureza laços da ordem do local e se encontram diante de capitais globais capazes, não apenas de fugirem ao alcance das
suas leis, mas também de se fazerem atrair com condições de melhores lucros à
custa da desprotecção crescente dos cidadãos locais, as crises tornaram-se
não só inevitáveis como incontroláveis politicamente, os Estados como anões políticos e jurídicos diante de gigantes
financeiros[28], como se
verifica claramente, quer na União Europeia com o predomínio da Alemanha nas
suas leis, conseguindo ‘democraticamente’ o que na segunda guerra mundial não
conseguiu militarmente, quer nos Estados Unidos em que, sobre um Obama eleito
como uma grande esperança popular, caiu de chofre a crise financeira e logo a
seguir a feroz oposição republicana (racista?): em ambos os casos, se trata de
dirigentes políticos coniventes com a ideologia financeira dominante na própria
ciência económica, sancionada pelas universidades e pelos prémios Nobel[29].
Trata-se dum problema que vem desde o século XIX, quando a Inglaterra impôs o
seu liberalismo ao comércio internacional e veio a provocar proteccionismos em
reacção que desembocaram nas duas guerras da primeira metade do século XX; mas
a rapidez electrónica das vendas e compras de activos económicos torna
compradores e vendedores ainda mais cegos para o que assim se troca, cegos
também e sobretudo para a devastação económica e politica que daí resulta.
57. Uma solução possível teria que implicar um
laço politico que se impusesse à guerra dos capitais que domina as sociedades
terrestres, o que deveria vir da ONU como sistema efectivo de direito
internacional[30], se nela
esses antagonismos não dominassem os principais países que aí têm assento, como
mostra a impotência ‘global’ face à igualmente urgentíssima questão ecológica.
Mas é obviamente impossível falar de ‘soluções’ para crises e riscos que
ultrapassam os limites do que foi sempre o objecto do pensamento politico, o
Estado e a Nação. As ameaças devidas ao aquecimento global e as que dizem
respeito aos limites dos recursos, mineiros, petrolíferos, solos, águas e
atmosferas respiráveis, deviam obrigar a limitar o crescimento desmedido das
produções tecnológicas, mas encontram como oposição os países mais pobres que
querem chegar aos patamares dos mais ricos e a objecção dos que só vêem
números: a ladainha de todos os quadrantes políticos e ideológicos é que o
emprego exige crescimento económico! É aliás de presumir que a guerra pelos
recursos a rarearem seja o futuro que por vezes é antecipado em filmes de
terror. Quando reli o que escrevi há uns 30 anos[31]
na sequência dum notabilissimo livro de André Gorz, Adieux au prolétariat.
Au-delà du socialisme (Galilée,
1980), impressiona-me que a urgência da análise já era tão forte quanto a nossa
hoje, os números do desemprego e das limitações do crescimento já vistos como
intoleráveis. E é certo que, se houve entretanto dramas infindáveis de fome e
doença e guerra, também é certo que há aspectos muito significativos de
melhorias, desde o fim do bloco soviético ter-se dado por desintegração interna
e não de forma belicosa (o que sucedeu na Jugoslávia não se deu felizmente na
URSS) até às centenas de milhões que escaparam à fome, nomeadamente na China e
na Índia, mas também na América Latina (cuos regimes militares
latino-americanos também se desintegraram). Mas também é extraordinária novidade os laços
electrónicos, locais e globais, que se tornaram possíveis nestas poucas dezenas
de anos e as promessas enormes que eles veiculam, de solidariedade e de
imaginação contagiosa.
A questão do tempo de trabalho
58. À dificuldade do desajuste entre o global dos
capitais e o local dos Estados, das democracias, do jurídico sobre o social,
acrescenta-se pois a redução dos laços sociais e políticos pelos laços
monetários que, ao nível local,
deveriam ser regulados fiscalmente
em ordem à distribuição democrática do Estado social (saúde, segurança social,
sistema de ensino). Sendo impossível, dificuldade das questões e incompetência
do escrevente, dizer coisas consistentes ao nível global, já é ousadia que
chegue tentar pegar na proposta de A. Gorz ao nível local em que ele a desenhou
há 35 anos numa longa citação. Trata-se de decrescer e viver melhor. Para isso,
haveria que inverter as relações de dominância entre a esfera do trabalho,
da heteronomia colectiva, e a do parentesco, da autonomia solidária: pôr a
segunda a decidir sobre a primeira, sobre o que produzir e consumir. Na
hipótese do direito ao pleno emprego, todos os activos pertencem a ambas.
59. Trata-se duma “ideia politicamente subversiva
[...] supõe que seja abolido o monopólio que detêm, em matéria de decisões de
investimento, de produção e de inovação, o capital e/ou o Estado. Supõe um
consenso sobre a natureza e o nível dos consumos a que todos devem poder
pretender, e portanto também sobre os que convém proscrever, sobre os limites a
não ultrapassar. Supõe enfim uma gestão económica visando satisfazer o máximo
de precisões com a maior eficácia possível, isto é, com o mínimo de trabalho,
de capital e de recursos naturais, em resumo com o mínimo de produção
mercantil. Ora, um tal objectivo é a negação radical da lógica capitalista. A
escolha da máxima eficácia e do mínimo esbanjamento é tão contrária à racionalidade do sistema que a teoria macroeconómica
nem sequer dispõe de instrumentos para se dar conta dela. Com efeito, as economias que, para o senso comum, são despesas que
evitámos, e portanto ganhos realizados graças a uma gestão mais eficaz, essas
economias aparecem nos quadros dos contabilistas nacionais como percas: como abaixamento do PNB, baixas dos volumes de
bens e serviços de que dispõe a população. Vê-se bem aqui como os métodos
oficiais de previsão e de cálculo estão viciados. Eles contam como um
enriquecimento nacional qualquer crescimento de produção e de compras,
incluindo as quantidades crescentes de embalagens perdidas, de aparelhos e
metais deitados ao ferro velho, de papeis queimados com o lixo, de utensílios
estragados e não reparáveis, de próteses e de cuidados para mutilados pelo
trabalho ou pelos acidentes na estrada. As destruições aparecem assim como
fontes de riqueza, pois tudo o que se parte, deita fora, perde, deverá ser
substituído e dará lugar a produções, a vendas de mercadorias, a fluxos de
dinheiro, a lucros. Quanto mais depressa se partem, se usam, saem de moda, se deitam fora as
coisas, quanto mais cresce o PNB, mais os contabilistas nacionais dirá que
somos ricos. Até as feridas corprais e as doenças serão contadas como fonte de
enriquecimento, na medida em que fazem crescer o consumo de medicamentos e
cuidados sanitários. Mas que se produza o inverso: que uma boa saúde nos evite
as despesas médicas,
que as coisas que utilizamos durem metade de uma vida, não saiam de moda nem se
deteriorem, se reparem e mesmo se transformem facilmente sem necessidade de se
recorrer para tal aos serviços de profissionais pagos, e então certamente que o
PNB baixará, nós trabalharemos menos horas, consumiremos menos, teremos menos necessidades” (Gorz, p.
173-5). A automatização progressiva da esfera do trabalho
– resultante de invenções científicas e técnicas que pertencem a toda a
humanidade e não apenas aos capitalistas – e o desemprego progressivo dos
cidadãos, que arrastará também que deixe de haver quem compre o que se produza,
sem ter em conta, é claro, o resto do mundo, tornará lógica e realista esta perspectiva,
irá abrindo um horizonte pós-crises,.
60. Digamos que se um milhar ou dois de pessoas,
emigrantes ou colonos, se encontrassem em uma zona despovoada, seria com esta
lógica que se organizariam democraticamente, mas parece difícil de antecipar
uma reforma social tal como ela é proposta. Percebe-se todavia que ela poderá
teoricamente iluminar o futuro ecológico, tanto do ponto de vista dos materiais
como dos humanos, dos animais e das plantas, poderá ser um guia lógico para
decisões que sejam impostas em situações de crise. Tal fábrica de porcelanas
para electricidade com uma centena de trabalhadores, viu na crise da Troika as
encomendas baixarem 20 a 30%: em vez de despedir pessoal nessa proporção,
diminuiu por consenso com todos, o tempo de trabalho e o salário um dia por
semana, por vezes dois, e não criou desemprego (hoje já voltou às 40 horas,
exporta quase tudo o que fabrica). A Auto Europa procedia também assim, segundo os jornais. O que significa
que sempre que aparecer uma ameaça de desemprego colectivo, é possível diminuir
local ou regionalmente[32] o tempo de trabalho de todos sem despedir
ninguém. Se for certo que o desemprego actual é em parte estrutural e não
resolúvel por “crescimento económico”, será possível caminhar para o pleno
emprego às arrecuas, ganhando tempo livre e possibilidades de viver diferentes.
Para quê, dir-se-á, se nem sempre os fins de semana e as férias são risonhos?
Aí é que a perspectiva aberta por Gorz pedirá que “a imaginação tome o poder”,
segundo um slogan de Maio de 68, que se “seja realista, fazendo o impossível”,
glosando um outro[33],
e pode-se pensar que as redes da Teia poderão ser fecundas de ideias e
solidariedades inesperadas, adequadas a situações de crise e indo além delas
para as prever. Criando redes locais de trocas e serviços, à maneira dos bancos
de tempo e das moedas sociais, da economia
solidária, definida na Wikipédia como “conjunto de actividades económicas – de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas sob a forma de autogestão”. As novas gerações que já
crescem com competência electrónica serão capazes de irem reformando por baixo,
localmente, associando-se solidariamente com gentes de muito longe, buscando
alternativas em tradições antropológicas diferentes. Eu é que já não sou desse
mundo.
Adenda sobre "seculaização e democracia"
em http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2016/02/secularizacao-e-democracia.html
Para quem ler francês, um manifesto
convivialista
http://www.lesconvivialistes.org/pdf/Manifeste-Convivialiste.pdf
[1] Por
exemplo, no Dictionnaire d’Histoire et Philosophie des Sciences de Dominique Lecourt (P. U. F., 1999), a entrada
‘laboratório’ não existe.
[2] Ambas relevam da oposição dentro / fora, interior / exterior, com primado
do primeiro termo, que o Dasein de Heidegger procurou ultrapassar.
[3] É
corrente que se identifique o ‘paradigma’ com a teoria, mas trata-se de uma má
leitura: segundo Kuhn, o paradigma consiste no que os cientistas pensam e fazem no seu
laboratório, as suas performances, os seus usos, em que teoria e prática são
indissociáveis.
[4] A
sua história, desde as gramáticas gregas de Alexandria, é uma história de
oscilações entre análises de usos mais literários, variando com as línguas, e
análises mais lógicas e filosóficas, válidas para todas as línguas. O século XX
conheceu a primeira tendência, a linguística estrutural de Saussure, e a
segunda, a gramática gerativa de Chomsky, esta parecendo mais uma técnica de traduções a partir do inglês, língua quase desprovida
de morfologia, aquela sendo uma ciência adequada
para línguas morfologicamente ricas, pagando o preço de cada língua ter de ser
estudada por ela mesma.
[5] A
linguística diz respeito à oralidade, não há uma ‘gramatologia’, uma ciência da
língua escrita.
[6] A
sociolinguística, que não conheço, é uma aproximação ao local social e às
variações regionais, profissionais, de classe, etc.
[7] Derrida utilizou este motivo gramatológico sobretudo em questões éticas e
políticas. Mas desenvolveu-o lendo Hegel (em Glas), a energia louca dum dom devendo sofrer uma estricção para, digamos, ser viável.
[8] J. Monod,
em Le hasard et la nécessité, fala do “estado homeostático do metabolismo celular” (p. 98,
subl. meu).
[9] P. Clastres, "Arqueologia
da violência: a guerra nas sociedades primitivas", in Clastres e outros, Guerra,
religião, poder,
[Libre 77-1],
Ed. 70, 1980.
[10] O primeiro crime bíblico é entre dois irmãos, as tragédias segundo
Aristóteles ocorrem entre elementos da mesma família, Freud introduz a relação
fraterna na Interpretação dos sonhos pela rivalidade.
[12] Na Wikipedia em francês
(Société), uma boa proposta: “em ciências humanas e sociais, a sociedade diz
respeito ao conjunto dos usos e dos costumes partilhados por uma população”
[13] O que dá razão a Margaret Thatcher: a sociedade não
‘existe’ fenomenologicamente, como as línguas também não. E como ela só
acreditava no que via, a aberração da sua politica em termos sociais é mais
fácil de entender. Toda esta gente que se diz ‘neoliberal’ vive nessa cegueira
sobre a sociedade.
[14] O que dizia Heraclito vale para ambas estas leis, a da
selva como a da guerra: “o polemos (combate) é o pai de todas as coisas, o rei de todas as
coisas” (afor. 53).
[16] Na China, o império sobreviveu através duma rede burocrática de mandarins
formados segundo uma sabedoria ininterrupta que durou desde o século III aC até
ao início do século XX!
[18] Forma do termo ‘medium’ nas línguas latinas (castelhano, francês), que os
brasileiros americanizaram como ‘mídia’!
[19] Esta passagem da igreja à escola só foi possível justamente pela invenção
eclesiástica das universidades medievais, a Cristandade tendo sido uma espécie
de tecto social da futura Europa, garantia dum espaço contextual comum feito em
latim a partir da tradição de saberes greco-romanos, mormente a filosofia e o
direito.
[20] Outra confirmação pode ser encontrada pela verificação de como muitos dos
motivos filosóficos que foram discutidos a partir da tradição grega e latina
medieval esmaltam os textos de todo o tipo de reuniões e conselhos, de todas as
burocracias: bastaria retirar esses motivos de qualquer discurso contemporâneo
para ele se esburacar e perder o sentido.
[21] Lenoble, Esquisse d'une
histoire de l'idée de nature, Albin Michel, 1969, p. 312. O que dá para perceber que
os Gregos não tenham chegado à ciência experimental.
[22] O milagre da Europa, Gradiva: por volta de 1400, a
Europa estaria em equivalência de situação técnica civilizacional com a China,
a Índia e a Turquia islâmica.
[25] Aberta às descobertas e invenções hodiernas, estes saberes foram
globalizados além das fronteiras ocidentais numa mútua fecundação por ora
incipiente.
[26] Incluindo os
filmes que ensinam as vigarices e piratarias armadas de que nos queixamos terem
aumentado nas nossas metrópoles, nomeadamente americanas, e nos ditos
‘terroristas’, que também aí aprendem
[27] Um livro de Luc Boltanski e Ève Costello, Le nouvel esprit du capitalisme (Gallimard, 1999), mostra como a gestão de empresas aligeirou como efeito de 68 a
organização hierárquica.
[28] Já que os Estados ricos são aliados das ‘suas’ multinacionais contra as dos
outros, os Estados pobres fazem-se concorrência uns aos outros para os receber : garantir menores salários e impostos, evitar
sindicatos, convenções e greves, cargas sociais, protecção do ambiente, dever
de indemnização no caso de se irem embora, etc. É esta guerra que está a
desmantelar o modelo social europeu.
[29] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2011/10/economia-politica-por-vir-enquanto.html
http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2012/11/a-questao-da-especulacao-financeira.html
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