Heidegger e Derrida tornaram
possível retomar
esta questão central da Physica de Aristóteles
numa fenomenologia em que
o duplo laço substitui a ousia, substância–essência
OS DUPLOS LAÇOS
Os enigmas da evolução, da história e da invenção
De Platão a Derrida: breve história da diferença
Apresentação do duplo laço
Duplo laço e différance
Mamíferos que aprendemos socialmente
A questão da memória em fenomenologia neurológica
(Kandel)
Articulação do cerebral e do social: a disciplina
O duplo laço da alimentação entre o sangue e as
células
Ponto de ordem sobre o motivo
de ‘ligação’ ou ‘laço’
A lógica do duplo laço das
células não é a mesma
Os
duplos laços da anatomia como ‘solução’ do enigma da evolução dos animais: a lei da selva
A saúde entre duas
homeostasias
A rotina contra as inovações
A lei da aliança e a lei da guerra
Química, lei da selva e lei da
guerra
Da justaposição à
especialização, tanto na evolução como na história
O sistema da sexualidade e os
duplos laços na evolução
Sexualidade e fecundidade das
sociedades, os interditos na história
O laço social tribal e o dom
como festa (e rivalidades)
O duplo laço da linguagem
tribal
A invenção da agricultura e a
nova fenomenologia social
A ‘pax romana’
A invenção da
definição, isto é, da cena filosófica da inscrição
A teologia cristã com motivos
filosóficos
Depois da definição grega, a
invenção europeia do laboratório científico
As ciências das sociedades e o tempo
A economia como ciência social
As ciências da linguagem
É possível uma ciência da sociedade?
O enigma da evolução histórica das sociedades
O enigma da invenção singular de usos
Filosofia com Ciências: da Physica à Fenomenologia
Verdade
e Relatividade
O Dasein não aprende
A Verdade fenomenológica
Transcendência ou imanência?
Os enigmas da evolução, da história e da invenção
1. “É preciso
estilhaçar o todo”, proclamou Nietzsche contra Hegel. Está feito, é essa a
nossa situação, condenados a não saber senão estilhaços. Sem que pareça haver
quem se escandalize com esta derrota do pensamento, todos se resignam talvez
sem darem por isso, compreendendo confusamente que este estilhaçar propício a
todos os relativismos é efeito do desenvolvimento das ciências que se
multiplicaram em especialidades incontáveis, incontroláveis, desafio a qualquer
hipótese de saber unificado. Diante desta avalanche de saberes que os filósofos
doravante ignoram, as filosofias recebidas, em torno do sujeito e do objecto,
não tinham possibilidade de se defenderem – que o ‘sujeito’ é filho da ‘alma’,
oposto ao corpo, à linguagem, ao trabalho, à sociedade, a todos estes
‘objectos’ que as ciências têm dado a conhecer –, perdida a capacidade sistemática
de que Hegel terá sido o último artesão. Ora, foi o ‘todo’ dele, tentativa de domesticar
o relativismo ao abarcar a história, reino da relatividade por excelência, da
indeterminação, que foi visto por muitos, à tort ou à raison, como a fonte dos
totalitarismos tremendos da primeira metade do século XX, que foram levados
assim à recusa da própria empresa sistemática e da sua determinação.
2. Como responder a
esta dupla desconfiança? À falta de tradição filosófica satisfatória sobre as
novas questões científicas, só se pode obviar recorrendo ao saber oferecido
pelas próprias ciências, pelas biologias, linguísticas e semióticas,
antropologias, economias, ciências sociais, psicologias com neurologias,
recorrer assim ao próprio material estilhaçado, às grandes descobertas das
ciências do século XX, o que pode ser feito desde que se recorde que todas
estas disciplinas tiveram origem na filosofia (além da geometria e da
astronomia) e que só se puderam autonomizar das questões metafísicas com o
corte de Kant entre filosofias e ciências: pode-se recuperar essa dimensão
filosófica delas após que esse corte tenha conseguido os seus propósitos e
manifeste agora, como seu efeito crepuscular, este escândalo dos saberes
estilhaçados. E como o fazer? Só com recurso à filosofia que no século XX se
deu como questão justamente essa articulação das “ciências europeias” em crise
(Husserl) através dos seus discípulos dissidentes, Heidegger e Derrida, que
puseram a ‘diferença’ antes da ‘substância’ e assim tornaram possível pensar
uma sistematização que tenha a indeterminação no seu âmago. É que no fundo as ciências é de
‘estilhaços’ que se ocupam, é delas que nos dão a conhecer as artimanhas.
3. Aconteceu assim, à lenta
experiência da escrita buscando, que o motivo derridiano de duplo laço se revelou adequado para
explicar fenomenologicamente – aliança de filosofia com ciências – o movimento de tudo o
que se mova, seja máquina, ser vivo ou estrutura social, de abordar os enigmas
da evolução, da história e da invenção. Espanto dos espantos: encontrava-se uma
réplica moderna inesperada para o que tinha sido a antiga Physica de Aristóteles, uma filosofia do
ser em movimento (donde derivou uma metaphysica do ser enquanto ser) tornada caduca pelo progresso
das ciências europeias, que nasceram dela e com ela romperam após uma longevidade
de cerca de vinte séculos. É certo que ‘movimento’ e equivalentes noutras
línguas modernas não incluem facilmente o sentido de ‘crescimento’ (duma planta
ou animal) ou de ‘mudança’ (de qualidade: uma matéria que muda de forma, uma
trans-forma-ção), como fazia o kinêsis grego, não impede que parece não ter havido, fora
da Physica de
Aristóteles (nem provavelmente no aristotelismo medieval, metafísico mais do
que ‘físico’), nenhuma filosofia que tenha tomado a questão do movimento dos
vivos como sua
questão central, na modernidade que a partir de Descartes e Galileu reduziu o
movimento ao deslocamento na extensão, no espaço (de tal maneira que uma boa
Enciclopédia como a francesa Universalis não tem entrada para ‘mouvement’,
remetendo para a cinemática, isto é, para a Física europeia).
4. Mas a análise
desses movimentos chocou com uma dificuldade, senão uma aporia. A invenção da
vida, da célula, foi a dum ‘mecanismo’, uma assemblagem de moléculas reunidas a
partir dum mar de moléculas equivalentes, uma nova unidade capaz de se
reproduzir adentro desse mar de moléculas, que a podem alimentar mas também
destruir. O que significa que a célula é uma estrutura de auto-reprodução, uma
estrutura conservadora, o que não anuncia nenhuma evolução, bem pelo contrário:
a invenção da célula é a negação da futura evolução. Igualmente, uma espécie
evoluída endogâmica é a negação da evolução que houve até ela ainda que os seus
indivíduos sejam razoavelmente diferentes uns dos outros; a endogamia defende-a
da introdução de genes que alterem a estrutura da espécie, igualmente conservadora:
que os diversos órgãos e tecidos especializados funcionem como devem para
garantir a auto-reprodução de cada indivíduo e não se metam a inovar, a
cancerigenar. Também as sociedades tribais que Lévi-Strauss estudou são, disse
ele, “frias” de resistirem a qualquer mudança, “contra o Estado”, acrescentou
P. Clastres, o que não anuncia nenhuma história de sociedades complexas; e
também nestas, casas, famílias ou instituições são estruturas de
auto-reprodução quotidiana que exigem que os seus membros se conformem aos usos
estabelecidos como rotina disciplinada e não se ponham a inventar
comportamentos surrealistas, cada um seguindo a sua própria cabeça. Como é
que conservação estrutural e inovação são logicamente compatíveis, é aqui a
questão, que
pedirá uma nova aliança entre filosofia e ciências (Prigogine), uma
fenomenologia em que às ciências actuais se restitua a dimensão filosófica que
tinham antes do corte kantiano entre ambas. Para entender essa aliança, haverá
que abrir brevemente o espaço da desconstrução da ontoteologia (Heidegger) e
respectivo logocentrismo (Derrida) da tradição filosófica e científica
ocidental, iniciada pela fabulosa invenção da definição por Sócrates, Platão e
Aristóteles, como se fez o percurso histórico entre duas filosofias do
movimento.
De Platão a Derrida: breve história da diferença
5. Tentarei
apresentar esta questão em algumas das suas ocorrências históricas num breve
resumo, a partir do que se pode chamar a diferença ontoteológica. Diria que esta consiste na
diferença e oposição entre o inteligível e o sensível, nomeadamente na alma
oposta ao corpo e ao mundo no platonismo, e na correlação directa entre ambos
com exclusão do contexto, do mundo. Supondo ainda a diferença entre o céu e a
terra que só o heliocentrismo de Copérnico e Galileu veio dissipar, ela resulta
inevitavelmente da definição, só terminando com o ser no mundo. De Heraclito não sei, mas a
oposição entre o Ser e o não ser de Parménides, entre o que dura eternamente e
o corruptível terrestre, é sem dúvida parte da herança de Platão que ‘aplica’,
digamos, a definição ao celeste, discernindo as suas famosas Formas ideais (Eidê) como eternas[1],
por um lado, e indo, por outro, tomar a outras tradições o motivo de alma imortal,
que as contemplou antes de tomar corpo. Então a diferença e oposição entre o
inteligível e o sensível está colocada e estará para durar: a alma é simples, nem gerada
nem mortal, em oposição ao corpo composto, entre geração e corrupção[2]. E a linguagem – dispensada do
conhecimento das coisas no Crátilo, inadequada enquanto aprendida no Ménon que apela à reminiscência para o
saber espontâneo do jovem escravo – também está deste lado do terrestre.
6. A herança de
Parménides será colocada em causa no célebre parricídio do Sofista, na sequência do Teeteto que põe pela primeira vez na cronologia
dos diálogos platónicos a questão do conhecimento das coisas terrestres,
impulsionado sem dúvida pelas discussões que o seu jovem aluno Aristóteles
(alusão a elas em Parménides 135c) coloca e abrindo-lhe o caminho, no Filebo e no Timeu, para a sua Physica. Aristóteles critica a separação
céu / terra entre as Formas ideais e as coisas correspondentes: a essência e a
substância coincidem na mesma ousia (segunda e primeira respectivamente nas Categorias), por um lado, por outro a alma
não é mais inata nem imortal, é a forma da matéria, matéria esta que
individualiza o ente (hilemorfismo) a quem sucedem ‘acidentes’ (particulares). Mas esta
crítica da separação não atinge a oposição entre o inteligível a que tem acesso
a alma humana (simples) e o sensível do seu corpo (composto), sendo por este
que começa todo o conhecimento no De anima, dos órgãos dos sentidos ao intelecto pela imaginação
e donde está ausente a linguagem, o logos tão presente noutros textos; é que ela impede a
oposição inteligível / sensível (dirá Derrida), a trave mestra da diferença ontoteológica.
7. A filosofia
grega oscilando entre Platão e Aristóteles foi transmitida à Europa por via da
teologia cristã, que é textualmente filosófica (textos gnosiológicos) e ganhou
a sua estrutura a partir de Orígenes de Alexandria (185-253): o platonismo,
então vigente entre os intelectuais por razões sobremaneira espirituais, apoderou-se dos textos bíblicos de origem
hebraica. Aporia deste encontro entre gnosiológicos de essências intemporais e
narrativos e históricos com fundo mitológico reformulado, entre a ‘catolicidade’,
o universal acima
das línguas e usos antropológicos particulares, e o carácter histórico da ‘salvação’ (vida e morte de
Jesus), aporia que se inscreve assim na oposição inteligível / sensível, o que
implicará na teologia de Orígenes (e até ao Aquino) a redução do sensível (e do
narrativo corporal, conservado nas leituras litúrgicas) pelo inteligível da
alma, só este sendo digno do Deus celeste grego, inteiramente separado do
terrestre dos humanos que não conhece (Platão, Plotino), mas que veio a
misturar-se com o Deus bíblico, interveniente na história e conhecedor do
íntimo de cada humano, do singular de cada coisa, de cada passarinho. Na
diferença céu / terra partilhada por Gregos e Judeus, repete-se a relação
vertical de Platão entre as Formas ideais e as coisas suas cópias, mas agora
como relação entre um tal Criador omnisciente e omnipotente e cada uma das suas
criaturas: ontoteologia no seu maior esplendor, ‘esmagadora’ num Agostinho de Hipona (354-420). A
substituição (de grande parte) de Platão por Aristóteles na obra de Tomás de
Aquino (1225-1274) reformula a relação criatural, elevando a ‘matéria’ (hulê) como “criação boa” (Génesis,
cap. 1) e valorizando
em consequência a temporalidade e a autonomia relativa das criaturas na sua
causalidade horizontal (Physica de Aristóteles), o Criador respeitando as suas essências
ao criar-lhes a existência, respeitando mormente a capacidade de conhecimento e
de decisão moral livre dos humanos (o que tornará possível quer o laboratório
científico do século XVII quer a filosofia da história do XIX). Guilherme de
Occam (1285-1349), que se opõe ao poder temporal da Igreja, critica a
essencialidade ‘in re’ aristotélica e contrapõe-lhe o carácter singular de cada
coisa, de cada humano (com um argumento ontoteológico: Deus conhece os
singulares sem intermédio das essências) e justapõe o conhecimento por nomes
(mentais) às coisas singulares, reabilitando implicitamente o papel do
narrativo. Assinale-se de passagem que os Gregos clássicos não traduzem, donde,
como Heidegger explicou, que Platão e Aristóteles não pensam ‘por conceitos’,
no logos a
língua grega não se dissociando do pensamento; só com a tradução em outras línguas,
latim e não só, é que será introduzido o motivo do signo, com o lekton incorporal (o significado das
palavras), além do nome (honoma) e da coisa (pragma). O latim medieval funcionando como língua
universitária, apenas com Occam se fará a repartição conceptual que
transformará a diferença ontoteológica. Ele abre assim o futuro debate entre
racionalistas e empiristas do sec. XVII, os primeiros acentuando platonicamente
o papel de Deus no conhecimento (ideias inatas, ocasionalismo, monadologia), os
segundos tendendo a despedi-lo, propondo que ao conhecimento só se chega
partindo aristotelicamente dos sentidos, como Kant consumará, após a
reviravolta que Hume opera: da alma que se posiciona verticalmente diante de Deus ao sujeito voltado para o mundo, seguindo a
abertura da nova física de Newton.
8. Se for verdade
que foi Descartes (1596-1650) quem ‘inventou’ a ideia moderna, fê-lo mantendo a
substancialidade do inteligível (res cogitans) e a do sensível (res extensa), o pensamento que ‘eu sou’, por
um lado, e, por outro, o corpo, lugar, mundo, que posso ‘fingir’ que não tenho.
Vamos então à reviravolta que Kant (1724-1804) opera da diferença
ontoteológica, numa filosofia que depende de Newton (cuja mecânica rebate o
cepticismo de Hume) e alia a racionalidade (de inspiração platónica,
geométrica) dos sujeitos com a empiricidade (de inspiração aristotélica, laboratorial)
dos fenómenos, mas estes já sob elaboração daqueles pelas famosas sínteses a
priori (primeiro das formas de espaço e de tempo, dos conceitos em seguida).
Deixando de lado o papel da linguagem (os signos são assinalados de raspão por
trás dos conceitos do entendimento), ele pode ultrapassar, ao nível da razão
(pura) do conhecimento, a oposição entre sujeito e objecto (sem dúvida pela
implicitação do laboratorial newtoniano na matriz da crítica), mas é para a
deslocar para a relação entre o fenómeno conhecido (que terá que passar pela
definição no entendimento) e o númeno desconhecido, como quem mantém a
diferença entre a essência aristotélica e as coisas concretas em seus acidentes
não susceptíveis de ‘ciência’. Portanto, a história não sendo ainda científica,
a aporia ontoteológica mantém-se na ‘pureza’ da razão que define: sem mãos (a
razão prática e a estética são outras regiões) nem corpo nem mundo nem linguagem,
onde a descendência cartesiana se diz (a alma em Kant, embora sem papel no
conhecimento especulativo, também permanece ‘simples’). Mas é nele que melhor
se percebe o papel da representação – da sensação à ideia – do objecto no
sujeito (sem linguagem tão pouco, como se assinalou na ‘psicologia’ aristotélica):
é de jogos de transformação das representações que se ocupam as sínteses a
priori.
9. Deslocada para o
fenómeno / númeno a diferença-oposição inteligível / sensível do sujeito /
objecto (aquele sendo tal que não há já objecto senão antecipado por ele, nem
este sem sensações daquele antecipadamente sintetizadas), encontra-se uma nova
forma da diferença ontoteológica que estará na raiz das futuras fenomenologias,
a diferença fenomenológica entre o aparecer em que consiste o ‘fenómeno’ dado à intuição da
sensibilidade e a coisa empírica aparecendo, que existe mas não é conhecida,
que seria o ‘númeno’. Do ponto de vista da sua posterioridade filosófica,
estará aqui uma novidade decisiva do kantismo, onde se alojou a diferença
ontoteológica entre o inteligível e o sensível, correlativa aliás da que há
entre o entendimento e a sensibilidade (o conhecimento tem que passar pelo
sensível particular de tal coisa, como em Aristóteles pelos acidentes, como
condição de aceder ao inteligível, conceito ou essência). Em toda esta
história, que continuará, é sempre o corpo ‘composto’ que ‘objecta’ ao sujeito
ou à consciência, herdeiros da ‘simples’ alma. Donde vem então esta nova
formulação da diferença ontoteológica entre o inteligível e o sensível que
reata com Aristóteles? Sem ter a certeza de que se possa argumentar com os
textos, creio que ela vem (sem se explicitar muito provavelmente, senão há
muito que isso seria sabido) da física de Newton, de quem Kant depende estruturalmente,
como foi demonstrado por Jules Vuillemin. Quero crer, como tentei dizer noutros
textos, que o laboratório da física newtoniana corresponde à maneira como uma
equação física, pertencendo a uma teoria do conhecimento de “filosofia
natural”, tem que separar do contexto da cena da chamada realidade (como em
filosofia faz a definição) um dado ‘fenómeno’ como teste experimental e objecção,
experiência esta que consiste na realização dum dado movimento entre duas
posições no espaço e no tempo e nas respectivas medições técnicas, estas vindo
preencher as variáveis dessa equação, resolvendo-a. Só que esta experimentação
laboratorial não está agora ao serviço de definições de essências (que
continuam a ser necessárias para o labor da teoria) mas sim do estabelecimento
de correlações mensuráveis entre algumas das dimensões físicas dos fenómenos
assim trazidos a essa experimentação. O facto de essas medidas postularem o
consenso científico de unidades convencionadas (hoje aceites universalmente),
como espectacularmente faltava na primeira grande experiência de Galileu que
‘mediu’ o tempo em unidades de peso de água, mostra que o que realmente se
conhece nos laboratórios de física são as “diferenças e proporções” (Galileu)
entre os resultados das experiências verificando as equações (em qualquer
laboratório que as repita), e não as ‘substâncias’ relativas às dimensões
medidas, tempo, espaço, massa, e por aí fora. Essas diferenças e proporções geométricas (medidas) são ‘nada’ de
substancial: a empiricidade experimental, indispensável já que sem ela não há
conhecimento físico nenhum, não intervém neste directamente, é reduzida pelo trabalho matemático da física.
A Física de Galileu, Newton e tantos outros sábios do sec. XVII é a primeira
forma de conhecimento na história do Ocidente que escapa à diferença ontoteológica: nem Deus nem sujeito conhecedor
nem objecto corporal intervêm no conhecimento produzido enquanto tal; os
próprios conceitos teóricos, indispensáveis ao funcionamento do laboratório, à
determinação das experimentações a fazer, continuarão a ser caso de discussão
entre cientistas, de reformulação teórica, sem que tal afecte a cientificidade,
ao contrário do que sucede, por exemplo, com o alcance técnico dos instrumentos
de medida (raiz da diferença entre as físicas de Newton e de Einstein). Na
matriz da critica da razão pura, a diferença entre o fenómeno e o númeno será a
resultante filosófica deste estatuto laboratorial da física, mas em discurso de
linguagem duplamente articulada e sem se interrogar sobre o estatuto
escritorial desta. Na física, como veremos, foi expulsa a diferença onteológica
do laboratório (entre teoria e experiência, por exemplo, indissociáveis nos
paradigmas de Kuhn) mas ela manter-se-á entre ele e a cena da ‘realidade’.
10. Conhecendo mal
Hegel (1770-1831), limitar-me-ei a um ponto. Vindo após a manifestação da
revolução francesa e contemporâneo dos começos da revolução industrial, isto é
da aceleração da ‘história’, reino do particular e do acidental desde Aristóteles,
ele pega frontalmente em mãos a aporia da teologia cristã introduzindo a
história numa filosofia que se quer busca de saber absoluto, portanto
universal. Mas em vez de pensar o papel da técnica nessa aceleração, da técnica
que se manifestará como histórica, construída máquina após máquina, e se
introduzirá universalmente nas diversas sociedades humanas, escapando assim à
aporia e portanto à ontoteologia (a oposição sujeito / objecto e todas as contradições
metafísicas ligadas a ela não são pertinentes para descrever a sua essência de
técnica, pelo contrário, é ela que tenderá a relativizar esses dualismos),
Hegel retoma a diferença fenomenológica para caracterizar a experiência
dialéctica, a do movimento da consciência natural ligada à coisa empírica para
a consciência de saber absoluto: esta retém o aparecer do fenómeno e desliga-o do
objecto empírico aparecendo, para atingir o seu ‘ser’, de forma que o novo objecto
verdadeiro brote dela e nela, consciência (Heidegger, 1962, pp.147-8). Se o
passo da consciência ao objecto era o duma exterioridade contraditória destinada
a ser ultrapassada, esta ultrapassagem faz-se numa ‘interiorização’ que mantém
o privilégio do inteligível (simples) sobre o sensível (composto) como
constitutivo do ‘absoluto’ (recuperando a teologia cristã que Kant despedira da
filosofia).
11. Husserl
(1859-1938), filósofo com formação matemática, retoma um século depois de Hegel
a diferença fenomenológica mas mais perto da preocupação kantiana com as ciências
exactas, já não a física mas a mais ‘pura’ matemática, retomando assim a problemática grega aquém do laboratório.
A diferença em relação a Kant é ínfima, mas capital (Paisana): não parte do
disperso caótico das sensações que levará a caminhada de Kant para a ‘unidade’
mais alta, síntese por síntese, mas da intuição sensível dum objecto que
permanece o mesmo durante as várias percepções que se lhe podem fazer e
permitirão a intuição categorial que diz que ‘este objecto é tal’: do sensível
ao entendimento, intervém o ‘ser’ que permite a cópula do juízo ‘é’ e a
linguagem em que este se manifesta. As análises fenomenológicas consequentes
far-se-ão de actos imanentes à consciência, a qual não se opõe ao objecto visto
que, não substancial, só é consciência por ser consciência de qualquer coisa, em sua estrutural
intencionalidade: o sentido do objecto enquanto tal objecto é visado pela intenção significativa da consciência, duma forma que
se diria de antecipação a priori sem as formas transcendentais kantianas. Só
que ‘consciência’ e ‘objecto’ como correlato à partida significa a
ontoteologia, com o lugar do ‘theos’ ocupado pelo sujeito em posição
monoteísta, de absoluto (desde o cogito), pressupondo a definição que arranca o objecto
ao seu contexto, ao seu mundo, arrancado também o sujeito na descendência
filosófica da alma: é esta a crítica da ruptura de Heidegger em Ser e Tempo, que se manifestou, a seus
olhos, no recuo em relação às Investigações lógicas que foi a relativa aproximação
de Husserl a Descartes, após ter feito a redução fenomenológica da empiricidade mundana do objecto
aparecendo para
reter a fenomenalidade do seu aparecer, a diferença fenomenológica; foi o ter mantido a
exterioridade do mundo e da linguagem que tornou possível esse ‘recuo’ até
Descartes. Heidegger (1889-1976)
largará Husserl em direcção ao mundo e ao Ser, Derrida retomará a sua redução
mas aplicando-a à linguagem, completando o que Heidegger não ‘acabou’.
12. Tudo isto é
dito em forma de resumo, que pouco acrescento ao que com mais detalhe escrevi
em textos mais extensos[3].
O ser no mundo de Ser e Tempo (1927) é o retorno filosófico ao mundo dos humanos, donde a definição o
arrancara como ‘alma’ que contemplou ou conhece essências intemporais; mas não
retorno aquém da filosofia, à literatura por exemplo, às narrativas ou às
conversas, pois que o humano, dito com o termo clássico em alemão filosófico Dasein, o existente presente aí no
mundo, é pensado como ente temporal que cuida do seu mundo e interroga o sentido
do seu ser (sem alma nem deus nem definição); segundo o gesto primeiro da
filosofia grega que define, indaga-se não da sua ‘causa’ (que seriam os seus
progenitores, se se tratasse de biologia ou de antropologia) mas da sua
‘origem’, e esta será dita doação do Ser, em que o ‘poder’ dessa doação se dissimula, se
retira, para deixar ser o ente. É o que elaborará como diferença ontológica entre Ser e entes ao longo de três dezenas e meia
de anos, diferença entre o Ser como Nada de ente que dá entes temporais, até
que a conferência Tempo e Ser (1962) substitua o Ser doador pelo Ereignis, Nada de Acontecimento que, ao
nível ontológico da diferença, faz doação dos acontecimentos ônticos, retirando
a sua força para deixá-los ser, acontecimentos entre entes com tempo e ser.
Leitor de Nietzsche, de Parménides e Heraclito, todos aquém da definição, e
também de Aristóteles que des-escolasticiza, restituindo-o como pensador da Physica, relê os momentos principais da
história do Ser, da história do pensamento filosófico ocidental, soletrando
etimologias gregas e do antigo alemão, não em filólogo mas em pensador que
revisita as palavras para as pôr a repensar para nós, uma história assim das
‘palavras’ e não dos ‘conceitos’. Mas também não (ou quase não) pensador dos textos,
e é onde se pode entender o limite que não conseguiu ultrapassar da sua
fabulosa tentativa, a medir-se com Platão e Aristóteles como ninguém ousara
nunca e ainda hoje raros terão entendido. Heidegger reintroduziu a linguagem,
já em Ser e Tempo mas aí de forma hesitante, namorou-a o tempo todo como “a casa do ser”,
aonde inteligível e sensível não são já susceptíveis de oposição (só há ‘ser’
pensado, como queria Parménides), mas quer-me parecer que nunca conseguiu que
ela interviesse no pensamento de forma a inquietá-lo, e terá sido por isso que o Dasein, ser no mundo, não chega nunca a
despegar-se da figura ontoteológica do ‘sujeito’, não chega nunca a ser
biológico (mortal que não é nunca definido como vivo, ironiza algures Derrida),
não chega nunca a alimentar-se (é no entanto o ponto mais forte do ‘cuidado’!)
nem a ter que aprender a usar os usos do mundo e a sua fala, não se desprende do cordão umbilical
de forma a ser constituído (biologicamente) pela Terra e instituído
(socialmente) pelo Mundo, para usar as duas categorias da Origem da obra de
arte. Pensador
das palavras do pensamento e não dos seus textos escritos, Heidegger ficou na
borda exterior da metafísica, escreverá Derrida no texto de 1966 sobre
Lévi-Strauss (La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences
humaines) que o
deu a conhecer aos Estados Unidos e em França como crítico do estruturalismo,
da sua figura principal.
13. Derrida
(1930-2004) entrou em filosofia por uma porta que fora fechada por Platão e
nunca contestada porventura antes de Maurice Blanchot (1907-2003), a porta do
texto escrito, que é o da sua tradição de geração em geração e por vezes
saltando muitas gerações sem leitores à altura. O que poderia parecer um tema
‘local’, após muitos outros que vinte e cinco séculos de filosofia foram
tratando, pensando, discutindo, um tema relativo a um instrumento, uma técnica
de linguagem, revelar-se-á um dispositivo de desconstrução da história do
pensamento ocidental e das suas instituições que não deixará pedra sobre pedra,
nenhum pensador tranquilo na sua maneira herdada de pensar e escrever: porque é
enfim o ‘sujeito’ que é desalojado da sua casa tradicional, razão da hostilidade
quase unânime que levantaram contra ele filósofos de todo o calibre. Qual é a
diferença entre a linguagem oral e a escrita alfabética? Irredutível: uma na
intimidade de quem pensa, em categorias linguísticas (da sua língua) e podendo
nem sequer dizer sons, a outra imediatamente susceptível de publicidade,
desligando-se de quem a escreveu, permanecendo inclusive após a sua morte. Mas
susceptíveis da mesma gramática (historicamente, a linguística, relativa embora
ao oral, foi tratada como gramática, como escrita) e ambas aprendidas de fora,
do mundo em que se nasce e como condição de se vir a ser ‘ser no mundo’. O que
Heidegger sempre soube sem dúvida mas sem o saber, linguagem e pensamento são
‘instituídos’ por aprendizagem vinda do mundo, o Dasein tornando-se ser no mundo (por
aprendizagem do cuidado de outros usos também). Sem o dizer assim, é o que
resulta do principal gesto de De la grammatologie (1967, p. 90ss), cruzando
simultaneamente Saussure (“na língua não há senão diferenças, sem termos
positivos”, os sons e portanto as grafias não fazem parte das línguas),
Heidegger (a temporalidade dos seres no mundo que falam) e Husserl (a redução
fenomenológica do aparecendo para não reter senão o seu aparecer fenomenal). Aplicando a redução aos sons
da fala, da voz, retêm-se as diferenças entre eles que na voz são necessariamente
temporais, sucessivos linearmente, permitindo diagnosticar a diferença, já de
si espacial, como também temporal – différance, escreve introduzindo o tempo
que joga em ‘différer’ (diferir: ser diferente e adiar) –, como relação ao outro (que se escuta,
à voz de quem a redução se aplica) e como inscrevendo uma voz inédita que de
escutas assim aparece a falar (a fala – voz e discurso ao mesmo tempo – supõe
ter sido inscrita: a escrita como origem da linguagem). Quando distinguir como
enigma da différance uma economia e um excesso indissociáveis (Margens. Da Filosofia, texto sobre a différance), será possível dizer como a
aprendizagem da fala se faz pela economia estrutural espácio-temporal que dum
vai a outro de dois falantes com redução das vozes respectivas como excesso singular
dessas economias, economia como língua social, excesso como fala individual, indissociáveis e inconciliáveis. Neste enigma da aprendizagem da
linguagem, em que o que é recebido passivamente é simultaneamente activo como falante, reside então a différance como ‘solução’ da diferença
ontoteológica entre o sensível e o inteligível. A linguagem (e não só,
veremos), sendo constituída por diferenças de vozes sensíveis, não é sensível (tal como a
diferença entre cores não é uma cor), mas sendo diferenças de vozes sensíveis, não é também inteligível; sendo
diferença entre compostos não é composta mas também não é simples. A linguagem
é o que, desde o Crátilo, resiste a esta oposição tenaz, o inteligível pensamento constituído por diferenças entre audíveis, sensíveis palavras. Ora, com a
aprendizagem como prévia ao ente humano, é o mundo (e não já apenas o ‘ser’), o
que denominarei ‘cena’, que é prévio ao ‘ser no mundo’.
14. As coisas
definidas e os sujeitos que as definiam para as pensarem no seu eidos, com primado da visão que vê
formas, aspectos, mostram como a chamada realidade foi sempre a da sua mútua
exterioridade, cada coisa e cada sujeito ‘já lá’, na sua integridade, face a
face: a diferença ontoteológica é esta exterioridade, o privilégio do dentro sobre o fora. A representação do objecto no
sujeito, percepção, conceito, ideia, supõe essa exterioridade que é a nossa
evidência espontânea: as coisas e os outros fora de nós, o nosso ‘eu’ como consciência
íntima desse ‘fora de nós’ e simultaneamente consciência de nós. Como se
estivéssemos sempre a partir do zero do que vemos, sempre a ver pela primeira
vez. Mas basta ver um filme sobre uma sociedade asiática ou africana, ou sobre
Rio de Onor, para se perceber que não se percebe quase nada desses mundos estranhos,
quase como se fosse uma língua estrangeira: ouve-se e não se entende, vê-se e
não se percebe, estranha-se. O que significa que é necessário ter já visto para
perceber, ter ouvido já para entender. Foi aliás o que Kant, que nunca saiu de
Köningsberg, pretendeu resolver com as suas sínteses a priori. A tão difícil de
descobrir ‘memória’ para os neurologistas (que continuam a não querer saber dos
grafos que
genialmente Changeux propôs[4])
resulta da aprendizagem e é condição do ser no mundo de qualquer animal: as coisas
que vemos, as pessoas que amamos, só as vemos e amamos porque já em nós a
verem-se e amarem-se. Mas a différance (ou trace, suplemento, duplo laço) de Derrida vai além
desta possibilidade do face a face de seres no mundo, permite, em aliança com
algumas descobertas científicas do século XX (como com a linguística acima),
indagar das géneses e desenvolvimentos temporais dos vivos, das sociedades, das
respectivas histórias e das dos textos, que tudo releva de excessos singulares
sobre economias que se repetem, doadas de maneira retirada que deixa economias e
excessos serem em seus percursos aleatórios de vida que aprenderam a
regular. O que mais me resistiu enquanto leitor de Derrida, diga-se para
prevenir possíveis desânimos, foi a maneira como leu textos de literatura de
vanguarda do século passado.
15. O próximo passo a dar diz
respeito às incidências desta história da diferença filosófica nas diversas
ciências, como estas guardam obstáculos epistemológicos nelas deste passado de
oposição entre sujeito e objecto, entre teoria e experiência que Kuhn
ultrapassou. Seja uma lista de exemplos filosóficos e científicos de
predomínios ontoteológicos, como o da definida essência sobre o contexto donde
foi retirada. O ente predomina sobre o Ser que o dá (seja a phusis ou natureza, o mundo, o social);
o planeta sobre o campo das forças
da gravidade; o indivíduo, vegetal ou animal, sobre a sua espécie, esta sobre o
seu género, o indivíduo biológico sobre a lei da selva, o cérebro biológico dos
humanos sobre a tribo que o instituiu, inscrevendo nele os seus usos; o
indivíduo humano sobre a sua família e sociedade (que não existe, dizia M.
Thatcher); a palavra sobre a frase, esta sobre o texto (de que é parte), este
sobre o contexto que o produziu e de que se destacou. Como se a configuração
Deus / alma / definição (ou
sujeito / objecto) fosse o pólo solar, monoteísta, que ilumina cada ente, o
elucida, esquecendo o campo ‘terrestre’ que o dá, o que Heidegger chamará Ereignis
no final da sua
obra: a ontoteologia é o predomínio do ‘vertical’ sobre o ‘horizontal’ (como do
‘dentro’ sobre o ‘fora’).
16. Qual é a originalidade do
passo de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, em relação à gramatologia deste
último? Foi o de ter trazido o motivo do duplo laço, que o pensador francês
deslindou lendo gramatologicamente textos de Hegel, Genet e Freud mas que
aplicou apenas a questões de ética e política, que o preocuparam sobretudo nas
suas duas últimas décadas de escrita, tê-lo trazido ao domínio gramatológico
que é o das ciências, tendo em conta a maneira como estas, tendo inventado o laboratório, não souberam ou não puderam
sair dele para terem em consideração a cena do mundo aonde tinham ido buscar os
fenómenos que analisaram[5].
Ora, o que assim se introduziu como possibilidade de reformular a fenomenologia
foi a questão do movimento, que estava no coração da Physica de Aristóteles, e que a viragem
heideggeriana e derridiana permitia inverter: as diferenças antes das
substâncias. Haverá
pois que
procurar relacionar este duplo laço com a inicial différance e com a trace. O leitor português terá
vantagem em ler primeiro o Manifesto), um apanhado dessa obra
(http://filosofiamaisciencias.blogspot.com).
(http://filosofiamaisciencias.blogspot.com).
Apresentação do duplo laço
17. Nos textos que tenho escrito desde Le Jeu des
Sciences, parti
sempre de análises dos mecanismos de assemblagens, mostrando como, em cada uma
das quatro grandes cenas históricas tratadas pelas ciências europeias – a)
universo cósmico dos astros, terra incluída; b) evolução dos vivos na terra; c)
história das sociedades dos mamíferos que inventaram usos técnicos e linguísticos;
d) história dos textos ocidentais do saber (pensamento e conhecimento) – esses
mecanismos, apesar das suas
grandes diferenças, têm uma estrutura fenomenologicamente semelhante na
autonomia conseguida pela doação duma heteronomia da cena que se apaga para que
essa autonomia possa medrar, o termo ‘autonomia’ justificando-se sobretudo nas
três cenas relativos à vida: biologia, sociedade e escrita de saber, as quais,
juntamente com a psicanálise, tornaram a descoberta possível e a sua extensão posterior à cena da gravitação. O motivo do duplo laço permite
abordar a questão geral do movimento, questão aristotélica por excelência (a que responde o
motivo de ousia, substância – essência) que a filosofia ocidental não parece ter nunca
mais retomado e que a física europeia recobriu, limitando-o ao deslocamento no
espaço. Com o duplo laço pode-se abordar duma maneira inédita e fecunda a espantosa questão da diversidade no
universo: a grande variedade de a) moléculas inorgânicas e na terra orgânicas,
b) espécies botânicas e zoológicas, c) sociedades humanas com seus paradigmas
de usos e línguas, d) enfim de paradigmas de saber, entre escolas literárias,
filosóficas e ciências. As tentativas de compreensão desta última grande cena,
que é a que está mais perto das minhas competências e capacidades, mostram como
houve interpenetração de umas cenas nas outras na maneira como a sua história,
tão cheia de aleatórios, se desenvolveu, o que leva a supor que possa haver
algo de equivalente nas outras grandes cenas, onde o meu amadorismo é maior.
Permite compreender também como a evolução, apesar dos aleatórios, avanços e
recuos, se fez a partir de formas incipientes de sucesso improvável – as
primeiras células no mar, as primeiras tribos humanas na selva, as primeiras
tentativas de definições éticas por Sócrates, aquele que sabia que nada sabia –
e conheceram expansões de dimensão que lhes aumentaram as possibilidades de sobrevivência, quer organismos invertebrados e
vertebrados[6] (que aliás
continuam começando por serem apenas uma célula improvável), quer sociedades formando
reinos e impérios mais ou menos efémeros (com a grande excepção chinesa), quer
as escolas das nações modernas com Estado e a actual globalização. E ainda a
questão das chamadas ‘origens’, ou das invenções nas cenas que relevam da vida.
Ora bem: definir os mecanismos autónomos de heteronomia apagada que julgo ter descoberto (embora
ninguém tenha dado por isso, fora alguns alunos meus) poderá esclarecer alguns
destes grandes aspectos das cenas da vida terrestre, eis o que se ensaiará no
que segue.
18. O que parece dificultar as
análises é encontrarmo-nos sempre já em face desta pluralidade de espécies
(biológicas, sociedades, línguas e textos) de tão diferentes dimensões, o que
implica a impossibilidade de colocar a questão da ‘origem das cenas’ sem ser de
forma abstracta e hipotética, em dependência sempre da filosofia implícita ou
explícita que se tenha. Mas foi esta pluralidade que permitiu discernir uma
estruturação fenomenológica geral, com estruturas diferentes consoante as
grandes cenas e foi em função dessa estruturação geral que as assemblagens[7]
foram, como disse, definidas como mecanismos de autonomia com heteronomia
apagada, após um
longo e lento labor de análise que o 1º volume de Le Jeu des Sciences documenta como uma aventura de
escrita, de pensamento. Esta definição permite deduzir uma tese anti-ontoteológica,
o primado lógico
da heteronomia
apagada (Ereignis, em termos do texto Tempo e Ser, 1962), doada com retiro dos doadores, sobre a
autonomia
recebida e exercida (passividade e actividade indissociáveis dos doados, o que
se chama muitas vezes ‘dados’ sem a preocupação de saber o que os deu, preocupação essa que foi a de Heidegger em Ser
e Tempo, 1927).
Só que, sendo a lógica fenomenológica desta doação conseguida comum a todas as
espécies da cena, que se caracteriza pelo tipo de retiro estrito ( b) ADN, c) unidades locais de
habitação com interdito do incesto, d) letras do alfabeto, além do a) núcleo atómico
na cena cósmica), ela realiza-se de facto ao nível da espécie de maneira a
tender a tornar esta exclusiva, endogâmica, guerreira, estrangeira[8],
conseguida e diferenciada das outras espécies da mesma cena, questão aliás a
esclarecer. Se a cena tem primazia lógica sobre todas as suas espécies – estas
fazem doação dos seus indivíduos que deixam ser, a cena faz a doação geral das
suas espécies – deverá concluir-se, contra a maneira habitual de raciocinar das
ciências na sua tradição ontoteológica ignorada, que são a lei da selva, a
lei da guerra e a lei da verdade, tal como a lei da gravidade no que aos astros
se refere, que
têm a primazia,
sendo determinantes da estrutura e da reprodução das assemblagens que as cenas
doam, dissimulando a doação[9];
como se as ciências não soubessem que, embora experimentando em indivíduos como
‘dados’, as leis que elas encontram são das espécies, os indivíduos (assemblagens)
variando na sua singularidade que o laboratório da ciência reduz, como veremos.
19. Para que haja autonomia do
movimento tem
que haver uma ‘força’ ou energia que dê o movimento, que seja o seu ‘motor’, o
seu ‘auto’, e
uma outra instância que dê o sentido desse movimento, seja o seu ‘nomos’, lei ou regras, o seu ‘aparelho
regulador’. Não havendo movimento perpétuo, só haverá autonomia se a força ou
energia e as regras forem doadas de fora, por alimentação, de maneira a
tornarem-se próprias da assemblagem que se move. Tomemos o exemplo dum
automóvel, lido a partir do motivo de entropia positiva de Prigogine. Em que é que
consiste esta novidade da produção de entropia, chocante à primeira vista face
ao 2º princípio da Termodinâmica? Assim como a entropia deste princípio (Clausius),
negativa, é a
qualidade degradada da energia
dissipada que não serve já para nada, por exemplo o vapor da água a
ferver, o gás que se dissipa na atmosfera após ter explodido, dir-se-á que tem
entropia positiva a energia capaz de ‘trabalhar’, de produzir algo, por exemplo, o movimento
dum automóvel. No caso deste, como já era na máquina a vapor, após o estádio dissipativo da explosão no cilindro do
motor, o êmbolo liga fortemente essa energia para a poder fornecer ligada como energia de
trabalho ao
aparelho do automóvel, susceptível de oscilações, desde o ponto morto até à
alta velocidade, para se adequar ao aleatório das situações do tráfego na
estrada: é aparelho dum carro tudo o que não é o cilindro, concebido para as
manobras que um carro tem que ter no tráfego aleatório[10].
Teremos então três estádios entrópicos na energia dum carro: em expansão
caótica dissipada no cilindro, ligada ou inibida pelo cilindro e êmbolo e, vinda pela embraiagem,
capaz de trabalho no aparelho. O terceiro,
oscilante consoante a sua situação na estrada, é manifestamente instável mas de
forma paradoxalmente estável, sempre diferente da pura dissipação (a qual no
entanto continua necessária, tanto quanto a ligação forte conseguida pelo
êmbolo, para que a oscilação seja possível). Ora bem, este estádio instável,
oscilando entre limites, corresponde, nos fenómenos biológicos onde Prigogine a
teorizou como estrutura dissipativa, ao motivo de homeostasia: estrutura em
equilíbrio produzida pela entropia positiva[11]. Mas o pensador, tanto quanto o
li, nunca saiu do nível bioquímico, nunca pôs a questão da relação desta
estrutura dissipativa com os motivos da biologia molecular (ADN, ARN, etc.),
assim como não parece ter aceite que esta entropia positiva permaneça susceptível
de conhecer uma degradação mortal, que ela é pois uma fase transitória da
realidade viva (essencialmente mortal), durando um certo tempo e vindo depois à
negatividade entrópica de Clausius, que ela diferiria enquanto ‘criação’, de
que ela seria um adiamento[12],
o que permite explicar simultaneamente a vida e a sua mortalidade intrínseca.
Será este modelo prigoginiano reformulado que nos permitirá abordar os
fenómenos que as diferentes ciências estudam.
20. A embraiagem articula motor
e aparelho, aquele dá a este a força de circular, mas não o sentido, a direcção aleatória (o motor é
cego a em relação a esta), a cargo do aparelho que recebeu as suas regras
vindas de fora; assim qualquer duplo laço é a articulação de duas ordens (taxis em grego), o syn duma syntaxis, uma que move, a outra com
regras de ‘escolher’ para onde vai. Eis pois uma primeira conclusão: é a lei
geral da cena que implica a dupla syntaxis, a dum motor que dá força ao mecanismo autónomo em seu movimento e para tal
permanece retirado, cego em relação à cena da circulação e ao próprio aparelho enquanto tal,
o qual por sua vez é constituído segundo as regras recebidas que lhe permitem regular-se
na circulação face a todos os outros que também aí circulam, regular-se
autonomamente na
direcção ou sentido da sua auto-reprodução. Regras e autonomia em situações
aleatórias fazem o sentido do movimento. Esta primeira conclusão dá-se claramente a ler no
modelo do automóvel adoptado, só que este não se auto-reproduz. Haverá pois que
interpretar as duplas syntaxis das várias cenas e da psicanálise: com ‘motor’ estritamente
retirado (o ADN no núcleo da célula, cada unidade social na sua privacidade, as
letras retiradas da significação, protões e neutrões no núcleo atómico, recalcamento na psicanálise) e o seu ‘aparelho’ com as
regras de circulação na cena.
Duplo laço e différance
21. Reatando com o § 13, a questão então começa por ser:
como é que a différance se relaciona com o duplo laço ou com o rasto (trace)? Como é que o que há de novo neste motivo – que Derrida
foi buscar a G. Bateson para o reelaborar – prolonga os motivos da sua
gramatologia? Por um lado, economia e excesso – é o ‘nada’, económico repetido,
que é transmitido, o substancial, excesso empírico, que é reduzido – pareceriam
reenviar para cada uma das leis que fazem laço, mas como se inscrevem estas? Há
um texto de Derrida sobre Freud e a cena da escrita[13] que permite abordar a questão,
completando o que no § 13 dissemos ser a abordagem da aprendizagem através de
Husserl aplicado a Saussure. Freud (1895) aborda os neurónios do cérebro, que
acabavam de ser descobertos por Ramon y Cajal, como alvo de forças que gravam
caminhos neles (os grafos de Changeux). A différance é aqui olhada enquanto trace, rasto das forças que inscrevem
vestígios (‘trace’ em francês) cerebrais, Derrida sublinhando que para Freud
são as diferenças de forças que jogam, entre as forças vindas de fora que o aprendiz
recebe e a sua resistência a elas, as forças vistas do lado dele, como dor. As
diferenças entre as “frayages” (a força que abre caminhos)[14],
inscrições que abrem vias, tanto dizem as forças que gravam, irrompem, como o
sentido, o caminho
que elas abrem, forçando o que lhes resiste, caminho esse para ser seguido
depois, repetição desde logo. Já sabemos da redução de Husserl sobre Saussure
que é o ‘nada’ das diferenças que é inscrito dum a outro, do que fala ao que
escuta; agora percebemos que é a diferença entre as forças que inscrevem –
diferença é ‘nada’ de substancial – e aquelas que lhes resistem que se grava como memória, mas de tal maneira
que esse caminho aberto gravado se deixará percorrer virginalmente por novas
forças vindas de fora[15],
a sua resistência – memória gravada – autonomizando-se como resposta possível nos embates em que a
memória se defende para não sofrer de novo o que já sofreu: sigam os caminhos
já abertos, não abram novos (sofrimentos). Memória reservada, gravada,
‘passiva’, que resistiu como capacidade (dinâmica de forças) de res-posta
‘activa’: a rede de sinapses neuronais, ‘gravada’, torna-se capaz de ser
‘gravadora’. Nessa resistência às forças que gravam se faz uma ligação estrita
a elas, lei regulando a circulação aleatória, recebendo da estritura a dinâmica, a força, qual motor: duplo laço. Força que estritura
(restringe, inibe em parte) e lei de regulação vão sempre a par,
indissociáveis, esta lei sendo a mesma: a força que estritura é reduzida na sua substância
(gravadas as diferenças) pela resistência, sendo esta o excesso que de passivo
devém activo, auto-nomia da mesma lei. Enigmaticamente, cada caso é um caso singular, não se
trata de automatismos. Como é isto possível? Não sabemos ainda (§§ 26-35), mas
por certo que a necessária pequenez dos bebés faz parte desse enigma, que o que
é assim aprendido é quase-nada – embrião do paradigma tribal, das regras de
circulação – que crescerá com a lenta e longa continuação do processo da
aprendizagem. É pois a cena ‘exterior’ quem faz o doar – e o faz doer – trazendo
o que será duplamente laço a essa cena: relação estritural do motor às forças
das outras assemblagens[16]
da cena, relação do aparelho ao paradigma heteronómico dos usos tribais que lhe
permitirá crescer também; é por via do jogo entre paradigmas que se confrontam
(heteronomia que dá autonomia) que a estrituração se acentuará aonde está
reservada, crescerá como recalcamento que será tanto maior quanto as rivalidades; doar e doer
vão crescendo, gravando cada vez mais a resistência para evitar a dor. Tal como
o tronco subterrâneo duma árvore com as suas raízes cresce para baixo à medida
do tronco aéreo e seus ramos para o alto. Que o termo freudiano não meta medo:
aprender a falar com outros implicará frequentes vezes conflitos com eles,
contradições, onde há diferentes surgem sempre diferendos. Só pode haver
autonomia dizendo-se ‘não!’, resistindo ao que dói no que nos doa: segredo do
passivo activar-se[17].
22. A diferença ontológica heideggeriana ajudará aqui: é
a heteronomia (‘nomos’ é força da lei) que faz doação (dissimulando-se) da syntaxis do duplo laço, motor e aparelho,
ela releva pois do Ser, do Ereignis, do nível ontológico, enquanto que a autonomia doada
releva do nível ôntico, aquilo que nasce e cresce[18].
Isto é, não há repartição entre motor e aparelho na doação, eles são desde o
início indissociáveis. Ligando agora ao enigma da différance entre a dimensão económica do mesmo que se repete e o que excede essa repetição como singular que
começa e morrerá, pode-se entender esse ‘mesmo’ como a espécie propriamente
dita: como não há espécie senão nos indivíduos, a doação implica que ao nível
ôntico outro(s) indivíduo(s) a faça(m) e se retirem, princípio maternal e
paternal, como do ensino também. Retiro de quê? Da sua singularidade empírica,
substancial, doadora: anatomia da mãe, vozes e gestos dos mestres. E é esse
retiro que dá lugar possível à nova anatomia que se alimentará e respirará, à
nova voz e gestos que se aprendem, ao que há de excesso, inédito, singular, no
que nasce. Então porquê enigma? O que é esse ‘mesmo’ no duplo laço, o que
implica o ‘retiro’? É o que ultrapassa de maneira inaudita os limites da
ontoteologia: esse ‘mesmo’ que é doado, retirando-se quem doou, é estruturante
do recém-nascido, permanece como laço ou ligação dele com os seus parentes e mestres,
ligados nele de forma retirada. Eis o enigma: mãe, pai, mestres, estão lá
sem estarem, nem presentes nem ausentes, estão lá, retirados como rasto, no que cresce, ainda depois
de morrerem. Só
sou herdeiro – em tudo o que tenho de mais ‘próprio’ – porque os meus
antepassados estão em mim retirados. Tal como os antepassados duma linhagem,
duma sociedade, ligados os que hoje vivem aos usos e língua dos que morreram,
de que são herdeiros. E como muitos desses usos foram inventados por
estrangeiros, estes rastos em duplas ligações não se encerram em fronteiras
tribais e nacionais, as culturas das sociedades modernas cada vez mais abertas
enquanto laços entre humanos. O enigma significa que nós não sabemos pensar
esta relação do mesmo social ou do mesmo duma espécie biológica nos seus
indivíduos, filhos que somos do nominalismo (occamiano) que negou que houvesse
espécies ‘in re’, cavalar nos cavalos, humana nos humanos, como triunfantemente
M. Thatcher negando que houvesse sociedade, só homens e mulheres. Com efeito,
este empirismo extremo domina insidiosamente os paradigmas científicos. O
enigma é irredutível: ninguém pode pensar pela sua cabeça singular, crendo
simultaneamente que o que está pensando vem em palavras da sua tribo, o que
relativizaria o que só podemos pensar como ‘absoluto’, só de nós vindo (ab-solus). A novidade deste duplo laço –
nem ‘um’ nem ‘dois’, ‘um duplo’, já que nenhum existindo sem o outro, indissociáveis
–, a que différance e diferendo já abrira o lugar, é que ele constitui uma aporia entre
duas leis indissociáveis (senão não há assemblagem) e inconciliáveis (senão não
há autonomia). A
voz de cada um tem o sotaque da sua tribo mas distingue-se das dos irmãos e
colegas, que a reconhecem ao telefone. Resumindo: é a doação que distingue do
lado dos pais o que é doado como heteronomia enquanto o mesmo (nada da espécie e da tribo) com
apagamento do excessivo parental, a sua ‘substância’, e do lado do filho o mesmo como autonomia duma nova
‘substância’ que excede esse mesmo. É portanto a lógica heideggeriana que joga aqui com a différance, e não o duplo laço. Este com as
suas duas leis aporéticas, estava anunciado (na Gramatologia) no diferendo da différance enquanto relação estrutural ao
outro, que em Freud se lê melhor: o doar que faz doer e o que resiste à dor,
inibida a sua memória, recalcamento que dará dinamismo à ‘substância’ do bebé.
Mamíferos que aprendemos socialmente
23. Se me atrevo a meter-me
nestes domínios reservados dos biólogos, com o risco de eles se escandalizarem
ou, pelo contrário, de se rirem de mim, é por os ter lido e aprendido tanto,
tão interessantes coisas, e de constatar ao mesmo tempo que esta literatura de
biologia molecular não passa do nível da bioquímica, não chega às questões que
são vitais para o fenomenólogo. Em vez de começar pelo princípio, pelo nível
elementar dum organismo animal, já que os mecanismos de autonomia da célula
parecem escapar ao esquema da dupla syntaxis que apresentámos, seja um
organismo complexo como o nosso, entre biologia, antropologia e psicanálise.
Qualquer mamífero é composto de quatro sistemas: a) o da circulação do sangue
que vai a todas as células do organismo fornecer moléculas de nutrientes e de
oxigénio para o seu metabolismo incessante; b) o do sistema digestivo e respiratório
que carrega o sangue com essas moléculas[19];
c) o do sistema de mobilidade, órgãos perceptivos, cérebro neuronal e músculos
de locomoção, que busca na cena ecológica o que comer e beber para essa
digestão, além de procurar escapar a ser presa de outros; d) o sistema sexual,
que busca a reprodução da espécie e não do indivíduo como os outros três, mas
que nos mamíferos se veio inscrever parcialmente na anatomia feminina de forma
inovadora, com periodicidade comandada pelo cio das fêmeas que desapareceu nas
dos primatas, as suas pulsões sendo susceptíveis de irromperem a qualquer
momento. Tentar-se-á agora sugerir como é que estes quatro sistemas jogam na
longa passagem do feto humano, ser no ventre materno, ao adulto ser no
mundo da sua
tribo. No feto, apenas o primeiro sistema funciona, o sangue dele sendo
carregado directamente pelo sangue da mãe através do cordão umbilical: pode-se
pensar que se trata do tempo mais propício ao domínio do que Freud chamou o princípio
do prazer. Com o
corte do dito cordão no parto, os sistemas digestivo e respiratório entram
imediatamente em funções, introduzindo-se um ritmo de oscilação entre a dor da
fome e o prazer da sua saciedade, sem que o bebé possa fazer outra coisa senão
chorar, impotência que durará o tempo suficiente para a organização da aprendizagem
no longo período que vai desde o desmame e das primeiras autonomias, de andar,
mexer e falar, que é o da estruturação do sistema da mobilidade pela
aprendizagem dos usos tribais, que farão entrar lentamente a criança no
paradigma dos outros, retirando-a do seio materno dos primeiros tempos e
reelaborando o domínio do princípio do prazer que terá que compor cada vez mais
com o princípio da realidade, cuja lei paterna lhe é imposta progressivamente. Este período,
que Freud chamou de latência, termina com a puberdade, assinalando a entrada do
sistema sexual. Arrancado ao prazer do seio materno pela dor que implicam as
forças de qualquer aprendizagem, esta necessitará de estriturar a energia, no
que implicará o processo de recalcamento e de sublimação: poder-se-á encontrar o índice
desta na aquisição da habilidade espontânea do novo uso, onde princípio de
prazer e da realidade revelam um novo tipo de ritmos entre eles, em que a passividade da aprendizagem exibe o que foi
aprendido, o que se inscreveu, como actividade energeticamente fecundada,
sublimada. Em jogos, em falas, em corridas e outras habilidades.
24. Em que consiste a aprendizagem, chave do enigma humano que a
filosofia parece ter sempre desdenhado? O que equivale a perguntar, por
exemplo, pela diferença entre um indígena e um estrangeiro ou, mais simples de
exemplificar, entre um cliente duma escola de condução de automóveis e qualquer
condutor experimentado, isto é, que aprendeu em seus gestos a tornar-se na peça
piloto dum automóvel no meio do tráfego. O que esta tem de comum com qualquer
outro tipo de aprendizagem é a suposição de estar previamente adquirido um
certo jogo do sistema da mobilidade – gestos de olhar e ouvir por um lado, de
pés e mãos por outro – governado pelo cérebro, sistema esse que já se exercitou
em muitos outros usos quotidianos, de domésticos a jogos durante o período dito
de latência, estes servindo como que treino para gestos de usos posteriores
mais complexos. Mas esses treinos visaram outros usos, agora há que aprender os
do volante e da embraiagem, acelerador e travão, etc. Se distinguimos assim
gestos e usos, aqueles pertencendo ao sistema da mobilidade, ao corpo de qualquer humano de qualquer
tribo (sem serem necessariamente os mesmos gestos consoante os usos, é claro),
estes variando com os instrumentos dos diferentes tipos de trabalho duma dada civilização (cadeira,
prato e talheres à mesa, martelo e pregos, automóvel, e por aí fora), cada um
destes usos postulando um tempo maior ou menor de aprendizagem: os gestos dos
órgãos periféricos e músculos jogam como motor energético, os usos concretos na
sua diversidade (supondo gestos e instrumentos) como aparelho de tal e tal uso na cena da
habitação. Ora, este motor já tem uma certa rodagem, de usos já exercidos, mas
que seja preciso de cada vez aprender as regras dum novo uso indica que há algo
como que um leque de gestos possíveis, donde vem a força ao usar, os quais não
se aprendem directamente sozinhos, sempre em usos já. As tentativas frustradas
duma semiótica de gestos[20]
parecem sublinhar como a articulação entre gestos e usos não é susceptível de
descrição fenomenológica. Em que é que consiste então a aprendizagem? Em tornar
estes gestos de usos determinados, que começam por não se saberem e se vão
ensaiando a pouco e pouco, em torná-los espontâneos, fáceis de fazer com habilidade.
25. Embora a aprendizagem seja
uma experiência singular de cada um, ela não corresponde a nenhuma invenção –
que é uma coisa rara e difícil, lá iremos –, supõe pelo contrário que o uso que
se aprende, muitos outros da sua tribo, em geral mais velhos, já o exercem
cabalmente e estão empenhados na sua aprendizagem pelos mais novos, que nascem
sem saberem nenhum, como tinham razão os empiristas ingleses e a sua lendária
‘tábua rasa’. Já lá, com as suas receitas, ainda que implícitas, o paradigma[21] desses usos constitui a
actividade própria de auto-reprodução de cada unidade social local (habitação tribal, casas de
antanho, instituições de emprego e famílias na nossa modernidade), com suas
rotinas quotidianas e anuais, interrupções de descanso e festas, e por aí fora:
as gerações sucedem-se, na nossa modernidade a alteração dos usos devida a
invenções técnicas acelerou-se, mas o que identifica uma sociedade como tal em
seu território é justamente esta auto-reprodução dos paradigmas de geração em
geração, de que a língua é um dos esteios, conhecendo aliás também variações
históricas que não lhes fazem perder a opacidade de serem estrangeiras face a
falantes de outras línguas. Com variações regionais e de classes sociais e uma
tendência crescente a uma certa uniformização, estes paradigmas repetem-se em
cada uma das unidades locais duma dada sociedade como o seu aparelho, cujo
motor são os gestos de cada um dos seus que assim usa, juntamente com os instrumentos
ou máquinas que os melhoram e racionalizam, ou substituem. Faz-se assim a
articulação entre cada humano que aprendeu os usos da sua tribo e a respectiva
unidade local que se auto-reproduz através da maneira como os seus membros,
segundo idades e género, efectivam o paradigma desses usos: os gestos do corpo
– olhos e mãos, ouvidos e fala, pés e olhos – são activados cerebralmente no
sistema da mobilidade até aos músculos, formando o motor da unidade social, com uma
dinâmica que resulta da inibição disciplinar da aprendizagem, o paradigma dos
usos aprendidos sendo o respectivo aparelho de regulação, como diremos
adiante.
A questão da memória em fenomenologia neurológica
(Kandel)
26. “A memória vem do mundo” é o
título do capítulo sobre a memória entre Changeux e Damásio em Le Jeu des
Sciences avec Heidegger et Derrida (2º volume), o que sugere imediatamente a concepção heideggeriana do
humano como ser no mundo, o que chocava inevitavelmente com o empirismo (filosófico) da neurologia
reinante e portanto dos dois autores que me permitiram articular o que escrevi:
ficava suspenso sobre a grande dificuldade da abordagem neurológica da memória.
Apenas o motivo de grafo de Changeux podia ser encarado como lugar dela, mas parecia-me que se
tratava dum motivo ‘teórico’ que os instrumentos laboratoriais não poderiam
discernir, já que eles detectavam o ‘fluxo nervoso’ que passava por esses
grafos, mas sem poderem, julgava eu, discernir a diferença entre o fluxo
nervoso actual e o grafo que ele percorre. Deixei propositadamente atrás estas
minhas dúvidas de filósofo, que gosta de guardar algumas prerrogativas para a
sua disciplina, sobre as possibilidades da neurologia ser capaz de detectar a
memória, cujo estado natural é de latência, para melhor realçar o
deslumbramento que representou a leitura de À la recherche de la mémoire. Une nouvelle théorie de
l'esprit, do
prémio Nobel de medicina de 2000 Eric Kandel[22].
Além do que inova em relação à memória e à aprendizagem, é muito agradável a
maneira como intercala a história das descobertas da neurologia desde Cajal e
Freud na sua própria história de investigador e das equipas com quem trabalhou
e que evoca calorosamente, desde que, miúdo de 9 anos duma família de judeus
vienenses, foi obrigado a emigrar para os Estados Unidos, tendo começado por
ser médico e querer ser psicanalista, até à descrição das cerimónias do Nobel.
Tendo compreendido que a Áustria, ao contrário da Alemanha, não fizera um
“exame de consciência” sobre o seu passado nazi desde a sua anexação por
Hitler, quando lhe propuseram homenageá-lo como originário de Viena que
obtivera o Nobel, propôs que essa homenagem fosse um simpósio intitulado “a
resposta da Áustria ao nacional-socialismo: implicações no ensino das ciências
e das humanidades”, que fizesse luz sobre essa época de trevas do país, do
horror que a criança de 9 anos viu desabar sobre a sua cabeça. Mesmo para um
Nobel, é preciso coragem!
27. A primeira distinção
importante testada experimentalmente num molusco marítimo, a aplísia (lesma do
mar), foi entre memória de curto prazo e de longo prazo, a segunda
correspondendo a uma aprendizagem que permanece: esta correlação entre
aprendizagem e memória foi o que motivou o autor inicialmente e atravessa todo
o livro de maneira iluminadora, é ao que se aprende duradouramente que
chamamos memória. Foi assim que ele procedeu em torno da aquisição dum reflexo condicionado
pelo bicharoco, à maneira de Pavlov: um dado ‘acontecimento externo’ – um toque
forte na sua cauda e depois apenas um som previamente condicionado que o
anuncia – sempre que se repita desencadeia uma retracção da brânquia da lesma e
eventualmente a emissão de tinta. A meu ver a grande novidade do seu livro: o
mecanismo desta aprendizagem que perdura longamente implica a síntese duma
proteína comandada por genes, cuja expressão é previamente desencadeada por uma
molécula que parte da sinapse que foi afectada por um ‘acontecimento externo’
(o toque forte na cauda da lesma), a proteína sintetizada tendo como
consequência dar origem a uma nova sinapse (ou mais) na mesma ligação entre
dois neurónios.
Ora, isto parece-me corresponder à formação dum grafo (Changeux)[23]
e significa uma solução extremamente elegante da velha questão entre o inato e
o adquirido: os genes dos neurónios jogam na aprendizagem do que vem de fora,
sem que os genes ‘saibam’ do que se trata, sem saberem aquilo que é ‘aprendido’ (pode ser uma
língua qualquer do planeta!), já que eles não fazem mais aqui do que o que
fazem em qualquer outra célula do organismo, sintetizar proteínas através dum
ARNm; sucede aliás que algumas das moléculas que jogam aqui têm, diz Kandel, um
papel equivalente em células não neuronais[24].
O que confirma que, confinados ao núcleo da célula, retirados, como diremos, os genes são
cegos em relação ao mundo exterior da cena ecológica ou do mundo, a sua acção,
salvos casos especiais, limita-se à própria célula, o que significa que não tem
sentido pretender que eles ‘determinam’ a aprendizagem.
28. Sendo assim, a criação de
novas sinapses entre neurónios com intervenção genética supõe a existência já
de circuitos neuronais com sinapses, visto que a experiência da aprendizagem,
segundo Kandel, acrescenta novas sinapses às pré-existentes, parecendo
pressupor a intervenção de genes na efectuação das antigas, sem dúvida que a partir
do embrião e dos seus primeiros neurónios e eventualmente dizendo respeito ao
mínimo de rede neuronal necessária a qualquer cria animal largada na cena da
vida. Isto é, parece altamente provável que haja uma rede neuronal inata no
neo-cortex, prévia a qualquer experiência de aprendizagem, por difícil que seja
de o comprovar experimentalmente: ela deve corresponder ao mapa das regiões de
Brodmann[25],
correlacionadas com as diversas funções corticais (somatosensorial, motor,
visual, auditivo, Broca e Wernicke, etc) que articulam nomeadamente as áreas de
recepção perceptiva e as vias posteriores até às regiões comuns (onde a
linguagem se insere, em geral, no hemisfério esquerdo) com os nervos comandando
a actividade muscular, permitindo que a aprendizagem crie eixos ligando visão e
mãos, audição e fonação, e por aí fora. Pode-se imaginar a ‘economia’ da evolução
usando os mesmos mecanismos de criar sinapses desde os primeiros neurónios (o
autor não fala da ‘evolução’ anterior da sua cobaia). Ora, Kandel pensa que o
que estudou na aplísia foi apenas “memória implícita”, já que se tratava do
tipo de reflexos estudados por Pavlov e pelos behavioristas que o seguiram,
pensa que nós também temos essa memória de rotina, a andar a pé ou de bicicleta
ou a tocar um instrumento musical, memória de “habituações” de que já não temos
consciência. Curiosamente, esta sua concepção parece ignorar o que ele próprio
aprendeu com a memória de longo prazo da lesma do mar, a aprendizagem desta:
para se adquirirem essas rotinas, que começam por não existirem, é necessário
aprendê-las, a guiar bicicleta ou automóvel, a tocar piano ou treinar futebol,
por tentativas conscientes antes de se tornarem rotina. Como se pode deduzir
das experiências de Benjamin Libet, citadas por J. Eccles no seu livro (indecentemente
chamado) The Self and its brain, nós perdemos a memória da roupa que temos vestida ou
dos sapatos calçados, ainda quando apertando ao princípio, como esquecemos uma
dor de dentes quando nos acontece algo de importante, feliz ou trágico (Belo,
2007, 3. 26). Isto é, a diferença entre memória implícita e explícita é
adquirida, é esta que, por mecanismos que fazem intervir a atenção, dá origem
àquela[26].
Ora, na memória explícita dos ratos de laboratório, Kandel faz intervir a ‘atenção’
no mecanismo que exprime o gene que vai comandar a nova sinapse (p. 319). Esta
observação parece-me implicar algo que A. Damásio ilustra em O Livro da Consciência, a saber que os neurónios são o saber
para o animal ou
para o humano, o saber de si e do seu mundo a que só ele tem acesso, a sua ‘mente’: então, a memória
implícita seria a habituação dos neurónios mais antigos ao saber que eles
oferecem, desde que nada os estimule de novo, o que aliás parece fornecer
plausibilidade neurológica à psicanálise, que tanto interessou Kandel. Com
efeito, pode-se propor como hipótese de trabalho que o desdobramento do
neocortex nas aves e mamíferos como matéria neuronal da aprendizagem tenha como
efeito que, à medida que esta se desenvolve, as primeiríssimas experiências do
feto e do bebé sejam recobertas pelos comportamentos usuais de autonomia,
andar, mexer e falar nomeadamente; então entende-se facilmente que, quando se
já sabe dizer ‘eu’ e formular frases adequadas, se não consiga já ter memória
de quando ainda se não falava, quando o que se sentia e fazia não correspondia
a comportamentos, sem outros neurónios motores do que os do choro da fome e do
contentamento desta saciada. Como atrás se aventou, esta passagem do ‘ser no
seio materno’ ao’ ser no mundo da unidade social’ corresponderá à implicitação
da memória que houve até então, ao que Freud chamou inconsciente. Ficará por
saber como é que este processo se torna ‘recalcamento’, dinamização pulsional e
deslocamento, sublimação, para os novos comportamentos autónomos e respectivos
prazeres de quem cresce e aparece[27].
29. É certo que Kandel não escapa
ao empirismo ontoteológico do paradigma actual da biologia e neurologia, já que
este faz parte da própria estrutura do laboratório científico[28]:
com efeito, comandado embora por uma “hipótese teórica”, o gesto que retira tal
fenómeno de vivos da sua cena ecológica e lhe descobre uma experimentação
adequada a encontrarem-se relações de tipo causa / efeito em cada fragmento experimental
dá facilmente o ar de ser ‘empírico’, de não merecer consideração ‘teórica’
nele mesmo. Ora, é justamente neste gesto de retirar o fenómeno a experimentar
(tais neurónios e suas sinapses ou tais moléculas) do seu contexto vital (a
lesma no mar)
que consiste o reducionismo de que Kandel se reclama com alguma frequência, que ele
pensa em termos de redução de concepções anímicas ou espirituais. Com efeito, o
laboratório também reduz as concepções filosóficas de alma, espírito ou mesmo do conjunto de
actividades ou comportamentos humanos, excluídos da experimentação laboratorial[29].
Apenas um dado fenómeno (o toque na cauda neste exemplo) é tido em conta como
condição da compreensão das reacções bioquímicas geradas por ele, que levam à
retracção da brânquia e emissão de tinta no caso da memória longa: qualquer
ciência procede assim, esta redução equivale no laboratório à definição em
filosofia, que também arranca o que é definido ao seu contexto na chamada
realidade. É aliás esta redução que permite transpor para os humanos análises
de mecanismos bioquímicos com invertebrados – como a lesma do mar ou a
drosofila (mosca da fruta) ou até com bactérias sem núcleo.
30. Mas é quando no final da
experimentação se faz o gesto simétrico do inicial, o de integrar o novo
conhecimento conseguido na teoria (neuro)biológica do paradigma, que deveria
aliás integrá-lo no contexto ecológico donde o fenómeno foi retirado para
experimentação, é então que a difícil questão epistemológica se põe, o que será
muito mais óbvio aliás quando, a certa altura da sua carreira, Kandel começa a
fazer experimentações com ratinhos e a pôr directamente as questões sobre a
memória dos humanos. Observe-se em abono da verdade que ele próprio assinala no
seu último capítulo (p. 424) que apenas fez neurociência celular e molecular,
que haverá um dia que ligar à “neurociência cognitiva”, que levanta problemas
muito mais complicados. Mas nenhuma delas, a meu ver, dá importância suficiente
à evolução, que implica que o cérebro dos humanos, muito próximo do dos
primatas, foi feito para caçar e não ser caçado, não para pensar (para isso
inventou-se depois a linguagem) nem para calcular (inventaram-se os números).
Os limites ontoteológicos da neurologia manifestam-se melhor quando se trata de
ratinhos, do seu cérebro muito mais complexo, devendo-se imaginar experiências
sobre eles que impliquem manifestações neuronais analisáveis de forma crítica.
Agora são várias zonas do cérebro que entram em acção, podendo-se, é certo,
testar em casos pontuais o funcionamento bioquímico equivalente ao da lesma do
mar, mas acrescentando-se a dificuldade de ‘reduzir’ o comportamento testado a
‘um só’ comportamento, isolado de outros do ser no mundo heideggeriano (que eu estendo
aos ratinhos também), com o seu duplo cérebro – o paleo-cortex dos peixes, que
tem relação mais directa com a regulação da homeostasia do sangue, e o
neo-cortex desenvolvido em aves, mamíferos e certos répteis, mais adequado
justamente a aprendizagens de estratégias mais complexas. Durante todo o tempo
em que se tratava de contar e teorizar as descobertas com a lesma do mar, a
minha leitura seguiu sem obstáculos significativos, mas a terminologia kandeliana
torna-se claramente inadequada (fenomenologicamente) quando se passa para a
complexidade do cérebro dos ratinhos e dos humanos, quando a questão da
aprendizagem ganha relevo nas experimentações com os ditos ratinhos que têm que
reagir descobrindo saídas para situações inéditas em labirintos, mais
complicadas do que um choque mais forte na cauda. E é quando as noções
rotineiras de ‘informação’ e de ‘representação’, a substituírem a de
‘estímulo’, a memória como ‘stock’ de informações, etc., se revelam desastrosas
para compreender a complexidade do que está em jogo. A questão é que, sem se dar por
isso, decide-se pela ‘interioridade’ (com representações) do organismo (e sua
mente) face à ‘exterioridade’ da cena (donde virão informações) na teorização
sobre a experimentação laboratorial. Ora, o que o rato vai ter que ‘aprender’ é
algo que se lhe vai impor violentamente ao rato, não como uma ‘informação’
dada, mas como um choque sofrido e uma questão que o constrangem, o obrigam a
buscas e decisões: uma actividade da cena é recebida (passividade) pelo animal
e vira nele actividade de ‘resposta’ à actividade inicial da experimentação.
Não é o ‘cérebro’, ou o ratinho, que se ‘representa’ algo, é a brutalidade da
experimentação que se lhe impõe e o obriga a buscar soluções, e é isso que se inscreve cerebralmente – grava-se um
grafo, por via
de novas sinapses –, o que tem como incidência o que se poderia dizer um
passivar-que-torna-activo (aliás já jogando nas experimentações com a lesma do
mar): a memória vem do mundo. O experimentador como que esquece a sua intervenção
‘brutal’ e considera apenas o ratinho (ou a lesma) que, no laboratório, está
‘fora’ do seu mundo ecológico a que a sua anatomia está adequada: como se o
ratinho fosse apenas ‘sujeito’ do verbo ‘aprender’ e este verbo não implicasse
‘prender’ o ratinho (‘complemento directo’). Ou seja, a cena ecológica não é um
‘ambiente exterior’ que se acciona experimentalmente: ela faz activamente no ratinho, ‘prende-o’
forçando-o a aprender, o que consiste em defender-se dessa actividade, reagir a
ela. Este é um primeiro ponto. Em seguida, o que assim se grava como
passivar-que-torna-activo (grafo) não se faz apenas numa sinapse mas em várias,
num processo quer espacial (muitos neurónios) quer em sequência temporal (como
várias frases numa conversa), e joga-se em relação a memórias e aprendizagens
anteriores, e é o segundo ponto.
31. A primeira questão pode ser
aclarada a partir da referida proposta de Damásio sobre a ‘mente’ como o saber
de si da rede neuronal, que permite a qualquer animal ser afectado e reagir em
consequência, passivar-que-torna-activo. O que é brilhante nessa proposta, é
ela ser a chave extremamente simples, até aqui ignorada por razões filosóficas,
da questão neurológica da consciência, de que um capítulo final de Kandel dá
conta, citando as tentativas de Crick e de Edelman (em vão, acho eu), a crença
de que haja ainda algum mecanismo do cérebro para esse ‘eu’ a deslindar
neurologicamente. Ora, em vez disso, creio que o neurologista português responde
com bom senso a uma questão que se diria meta-neurológica: para que serve a
rede neuronal? como pode ela cumprir as inúmeras funções que ela tem em
qualquer animal, que não as plantas? Parece óbvio que, estas não se movendo,
lhes bastam as trocas com o sol na fotossíntese e com o solo e seus minerais
nas raízes; nos animais, a deslocação sendo condição de alimentação, é toda a
anatomia da mobilidade – órgãos perceptivos, rede neuronal e músculos do esqueleto
e focinho – que é necessária para caçar, como seres no mundo que as plantas não são, desta
maneira, pelo menos. Ora, toda a argumentação neurologista (incluindo aliás o
próprio Damásio) pressupõe a concepção autopoiética de Varela e Maturano, a
primazia do plano genético sobre o conjunto da anatomia, em última análise o privilégio
da ‘interioridade biológica’[30]
sobre a cena ecológica em que se busca caçar e evitar ser caçado, cena que é
dita sintomaticamente com o termo biologicamente neutro de “ambiente”. No
contexto deste paradigma (ontoteológico) tradicional, as experimentações
bioquímicas descobrem mecanismos em torno dos neurónios e suas sinapses sem
procurarem saber da sua integração na anatomia do sistema da mobilidade que tem
que caçar e evitar ser caçado. A proposta de Damásio é genial e de bom senso:
os neurónios, em suas sinapses que os afectam uns aos outros em rede, servem
para o animal saber o que lhe acontece, quer em exigências de alimentação, de fome ou sede,
quer em consideração do mundo em que é, em que tem que se bater; ora, a esse
saber só ele tem acesso, Damásio insiste nisso várias vezes e é um ponto decisivo da definição de
rede sináptica de neurónios que cobre todo o corpo e recebe percepções do que o
envolve: a “mente”, por assim dizer a ‘internalidade neuronal’ da rede (a lesma
do mar também tem mente, como o mosquito que sabe fugir antes que uma palmada o
esmague); a mente não é pois ‘outra coisa’ além dos neurónios, corte
neurológico com o dualismo cartesiano. Afectados, os neurónios agem: o seu ‘saber’ é um passivar-que-torna-activo,
‘con-sciência’, saber (-scire) de si com outrem (con-)[31],
capaz de agir em consequência, porque aprendeu de outrem, no mundo. Como é que
Kandel permite entender esta teoria freudo-derridiana? Como é que os neurónios
‘resistem’ à aprendizagem de longo prazo? Produzindo novas sinapses, abrindo
novos grafos que novos fluxos nervosos podem percorrer. Freud exigia da memória
“retenção” e “virgindade” face a uma nova investida vinda de fora[32]:
a retenção é efectuada pelas novas sinapses fazendo grafo, foi uma passividade (o choque na cauda recebido) que
se tornou ... o quê? Não só ‘actividade’ sem mais, mas capacidade durável de
receber (passividade: virgindade, nudez) novas investidas e de lhes reactivar respostas novas. Um grafo,
uma série sináptica, seria um ‘gravado capaz de reagir’, o que chamei
passivar-que-torna-activo: o que com reacção é recebido dos ouvidos, por exemplo humano da língua, inscreve-se como grafos
(as regras da língua, palavras e suas conexões sintácticas) que desembocarão em
fonação muscular como voz activa que responde outra coisa do que aquilo que
ouviu. O que escapa aos neurologistas, tanto a Damásio quanto a Kandel, é esta iniciativa da cena, dos outros animais (e
plantas), que faz aprender e, de tão forte, memorizar. O que Kandel conta das
suas experimentações mostra isto constantemente, é o paradigma filosófico
(ontoteológico) que o não deixa entender o que ele faz excelentemente. Isto é,
são os neurónios em suas sinapses que são gravados, afectados de fora assim, são eles, enquanto ‘mente’,
que respondem, sem que haja nenhuma diferença entre neurónio e mente, excepto a
do acesso metodológico (celebre-se o triunfo do torturado sobre o carrasco!): a
mente é o passivo-tornado-activo neuronal. Na filosofia tradicional das faculdades da alma
andou-se lá perto, distinguiu-se a memória da imaginação, aquela receptiva,
esta activa. Kandel permite dar-lhes unidade: memória é tanto imaginação como
imaginação é memória, uma mesma maneira que é tão diferente caso por caso.
Enigma dos vivos complexos. E como a imaginação implica a consciência também,
esta rede oscilante de neurónios é experimentada ‘internalmente’ por cada um
como ‘eu’, em suas oscilações entre atenção e relaxação, ‘rêverie’ e sono, sono
e sonho, onde alguns dos que nos ‘ensinaram’ mostram-se mais ou menos disfarçados
como estando ‘retirados’ na nossa maior intimidade, aonde a nossa memória
acordada não chega. O que parce mais difícil de aceitar pela tradição
cartesiana do “eu sou” porque “penso”: o ‘eu – mental-neuronal que se diz na
língua da tribo – é uma inscrição tribal nos neurónios, grafos que só a mente
reconhece.
32. Quanto à segunda questão:
esta “mente” não é pois uma soma de neurónios, já que cada um deles tem um bom
milhar de sinapses com outros, é já ele próprio uma rede numa rede imensa que se foi fazendo por
aprendizagens sucessivas que abriram caminhos na selva de sinapses inata, trilharam
grafos, mas – na leitura que Derrida fez do Esboço duma psicologia clínica de Freud – esses trilhados
abertos só o são, força e sentido simultaneamente, enquanto diferença para os
outros já trilhados, diferença quer espacial quer temporal, sequencial[33]:
a ‘mente’ humana é rede diferencial que sabe de si e que se assume como sujeito
de verbos em frases suas, portanto na língua da sua tribo que dos outros
aprendeu[34]. Falar, por
exemplo, implica indissociavelmente a área de Wernicke, que escolhe nomes e
verbos, e a de Broca, que os liga sintáctica e morfologicamente. Ver implica
tanto a área 17 (de Brodmann) ligada directamente à retina como as áreas vizinhas
(18 a 21) que a interpretam, reconhecendo o que se viu: cores, formas[35],
porventura perspectiva[36]. Por outro lado, basta pensar no
fenómeno de leitura dum livro policial para se perceber que, a memória do já
lido sendo necessária para se entender o que se está a ler e que só se prossegue
a leitura em vista do ‘suspense’ do que falta ler, o jogo da rede neuronal
desta leitura tanto é essencialmente espacial como temporal: só entendo o que
leio com retenção do que já passou e abertura ao porvir. Em conclusão deste
ponto: o ‘eu’ não tem substância, não é isto ou aquilo, antes uma rede espácio-temporal
de sinapses que, com o que do mundo aprendeu, se dá a si mesma como a ‘mente’ dessa rede de neurónios
e que oscila entre atenção e sono.
33. Creio que se encontra aqui
uma maneira de compreender o motivo de “memória implícita” de Kandel como o de
“inconsciente” de Freud: a rede neuronal vivendo constantemente no turbilhão do
ser no mundo,
tem que fazer economia de grafos acesos, ou capazes de se acenderem em tal ou
tal situação, e de forma geral retendo-os em rotina nuns casos (habituação que
cala a memória em sua latência) ou recalcando as suas possíveis reacções
dolorosas noutros. O desejo filosófico ou neurológico duma ‘unidade’ de
consciência – cuja crítica, se bem me lembro, já vem de Hume – tem que se compor
com uma rede que não está – não pode estar tão extensa é – nunca totalmente
exposta a si; a memória é por definição latente, capaz de dar sentido a algo que
sucede, mas sem estar habitualmente presente: ninguém pode ter presente a si em
simultâneo tudo aquilo que sabe, seria esmagado. A ‘unidade’ do nosso saber de
nós em cada momento é portanto muito limitada, vai àquilo a que damos atenção,
ao actual da corrente de pensamentos e imaginações que nos atravessam
incessantemente quando acordados, susceptível de mudar permanentemente sem que
tal implique fragmentação de si: parece provável que só haja ‘unidade’ de
consciência em rede, sem nenhuma zona cerebral especialmente ‘unitária’, como
quereria Crick do claustrum (Randel, p. 386). É chocante a ignorância
da linguagem que revela a literatura neurologista no que à consciência diz
respeito, consequência extrema da redução experimental quando se trata de
colocar hipóteses teóricas, como se, à boa maneira da tradição europeia, a
variedade de línguas fosse razão para as considerar acidentais, face à razão ou
ao pensamento (índice de ontoteologia). Aliás, como atrás se evocou, é mais do
que provável que a aprendizagem da língua tenha uma incidência muito forte no
esquecimento quase total da memória de antes dos 3 ou 4 anos, Lacan tendo
proposto, a partir de certos discursos psicóticos e do seu “estádio do
espelho”, que antes dessa aquisição da linguagem o corpo era ‘despedaçado’ (morcelé, em pedaços), não unificado, a
unificação subsequente sendo nele do nível do que chamou ‘imaginário’.
34. Menos chocante, porque também
assim psicólogos, sociólogos, filósofos e outros “cognitivistas da
representação”, mas igualmente estéril na busca de resposta a esta questão da
consciência humana e sua unidade, é o facto de o que se chama “ambiente”
exterior aos humanos ser uma colecção caótica de coisas sem coerência
ecológica, de que se encontram listas empíricas, teoricamente desorganizadas,
em que se podem encontrar factos, acontecimentos, objectos, coisas, pessoas,
situações, acções, relações, processos, estruturas, indivíduos colectivos,
instituições, ou até estados mentais. Ora, do ponto de vista de Le Jeu des
Sciences, o que
permite entender a lógica dos comportamentos de cada humano é de nível
antropológico, do paradigma dos usos da sua unidade de habitação: são esses usos que se
aprendem e se inscrevem como grafos cerebrais como condição de, fazendo-os, se
ser habitante da unidade social em que se nasce e cresce, se ser no mundo da sua tribo. Esse paradigma,
com variantes segundo os dias e as estações do ano, assegura antes de mais a
alimentação e a segurança de cada um, todos contribuindo consoante idades e
capacidades para esse efeito. É certo que esses paradigmas variaram ao longo
das histórias sociais e hoje conhecem especializações profissionais muito
diferenciadas, não impede que eles podem ser estudados em suas lógicas
antropológicas e linguísticas, e porventura oferecerem exemplos de
‘aprendizagens’ susceptíveis de interessar os neurologistas. Cada unidade
social, família, turma de liceu, oficina de fábrica ou escritório, tem a sua
‘unidade’ que marca cada um dos seus elementos em seus fazeres, mas cada um
aprendeu de forma singular e revela maior ou menor habilidade na sua execução,
o que significa que, enquanto usos sociais, se repetem nos vários membros, mas
singularmente em cada um, segundo o que se poderá chamar o seu estilo – num leque largo que vai dos
gestos concretos às relações éticas –, a sua idiosincrasia, a maneira que lhe é própria (idion) de pertencer à mistura (krasia) com outros (sun), a sua maneira de responder
pelo seu nome no sistema de que é parte. Ora bem, este estilo (ou talento)
seria uma maneira de dizer como são ligados os grafos cerebrais de cada um, poderia dizer a ‘unidade’ da
consciência que se quer e que nunca se encontra senão como fragmentos temporais
variáveis, segundo os usos concretos que se estão fazendo, os seus lugares,
tempos e idades, a complexidade de acontecimentos pondo em relação várias
pessoas, e por aí fora. Cada um de nós sabe algo do seu estilo, pelo qual nos
identificam também os que connosco convivem: ele destaca-se como singular no
contexto da nossa tribo, assim como a voz, aliás parte do estilo.
35. ‘Como são ligados os
grafos cerebrais’, memória latente, não presente, que tem efeitos na consciência actual:
esta ligação
é o que permite a cada humano circular na sua cena de habitação, como outros
animais na sua cena ecológica (etologia). É esta ligação de ‘tudo o que se
sabe’ e de ‘tudo o que se sabe fazer’ que dá unidade a cada humano, oscilando
entre a sua consciência actual, atenta ao que está sendo / fazendo / dizendo
aqui e agora e a indefinida memória latente, implícita, isto é, não consciente
neste momento mas sempre susceptível de algo dela ‘subvir’ (‘souvenir’, em francês)
à consciência como recordação que ilumina esse ‘actual’, sem o quê seríamos impotentes,
ignorantes, inexperientes, desmemoriados, a tal “tábua rasa” que os empiristas
ingleses colocavam no antes das aprendizagens. Este laço explica que a nossa
anatomia seja marcada pelos usos da nossa tribo (nossa passividade estrutural),
que o nosso cérebro seja um órgão simultaneamente biológico e social (nossa actividade singular). Sem
corte disciplinar entre sociedade e biologia! Este laço, memória de usos
aprendidos e acontecimentos surgidos, é assim uma rede de regras de circulação
social, esta implicando constantemente escolhas segundo situações aleatórias,
mesmo muitas vezes em usos simples, quando faltam batatas para cozinhar ou a
máquina se estraga e pede reparação. Trata-se dum laço regulador de circulação,
que precisa dum motor retirado que lhe forneça energia, que faça duplo laço com
este estilo singular de se ser no mundo.
Articulação do cerebral e do social: a disciplina
36. Sem corte disciplinar entre
sociedade e biologia! Com efeito, nos limites da sua abordagem celular e
molecular mas de importância crucial, Kandel esclareceu – como a aprendizagem
gera memória de longo prazo criando novas sinapses e assim abrindo à
compreensão de como se estabelecem os grafos de Changeux e confirmando os
grafos não inatos que correspondem aos usos tribais – a maneira biológica do
organismo ser articulado / articular-se com a cena social da habitação humana,
e também com a cena da inscrição da linguagem e da posterior escrita. São
assim três domínios científicos capitais, biologia, antropologia social[37] e linguística, que se
encontram articulados fenomenologicamente. Generalizando, poder-se-á pensar este processo
das aprendizagens de usos sociais como uma disciplinação, a domesticação das ‘pulsões’[38],
quer cerebrais (neurotransmissores que parecem dar energia à espontaneidade do
percurso hábil dos grafos), quer vindas das hormonas em circulação no sangue,
como as da fome e da sede ou outras perturbações da sua homeostasia. Os grafos
da nossa habilidade espontânea são percorridos rotineiramente, como todos
experimentamos, mas também sabemos como por vezes outras ‘pulsões’ vindas
doutros lados se opõem com força a esses hábitos: quando trememos de medo ou de
cólera, de ardor sexual que vai até um orgasmo, somos invadidos de choro ou de
riso inesperados, e por aí fora, exemplos de situações de conflito em que ‘não
nos contemos’, como se diz, em que os grafos são transbordados por ‘paixões’
(com o que este termo diz simultaneamente de passividade e de força difícil de
controlar). O interdito do incesto será o exemplo maior desta disciplinação, colocado por
Freud, que lhe chamou recalcamento, como motivador do dinamismo psíquico e referido por
Lévi-Strauss como o nó entre o ‘natural’ e o ‘cultural’, entre o biológico e o
social, o nó da aliança entre famílias em que consiste a sociedade: segundo a
psicanálise, apoiar-se-ão aí todas as outras inibições pulsionais das
disciplinas domésticas e institucionais, todos os regulamentos. O recurso da
ética filosófica à “razão” será a maneira tradicional de apelar à disciplinação
desses motores químicos que extravasam ou que falham o que normalmente fazem,
permitindo compreender o que se aprendeu como regra, norma de uso, que se impôs
às “forças cegas” pulsionais[39].
Os fenómenos do tremer ou da ‘cabeça perdida’ indicam justamente o desajuste da
disciplina entre o químico ‘cego’ e o social aprendido, o motor individual e a regulação
disciplinadora
no seio do paradigma dos usos da unidade de habitação.
37. O belo livro de J.-D.
Vincent, A biologia das paixões, coloca o motivo de estado central flutuante como o que faz a unidade do
mundo hormonal, quer no que diz respeito ao sistema alimentar, glândulas de
secreção interna do aparelho digestivo que largam hormonas na circulação do
sangue, que vão criar uma unidade de acção fisiológica com receptores em
células determinadas, quer no que diz respeito ao sistema da mobilidade, ao
hipotálamo, igualmente secretando hormonas, incluindo iguais às que o sistema
alimentar produz (só as esteroides, produzidas neste, conseguem intervir no cérebro).
Região do paleo-cortex[40],
o chamado cérebro dos peixes ou répteis, o hipotálamo, “cérebro do meio
interior” (Vincent), tem papel central na homeostasia do sangue (temperatura,
pressão arterial e de osmose, teores de oxigénio, açúcares, lípidos, prótidos,
pH...) por via da secreção de hormonas no sangue, enquanto que o neo-cortex das
aves e mamíferos é o que tem papel
central na aprendizagem de estratégias na cena ecológica; é a relação entre
estas duas regiões de um cérebro duplo que se jogará entre estas duas funções biológicas:
por um lado, o jogo de excitação hormonal que se relaciona estritamente com a
lógica homeostática do sangue, equilíbrio a restituir sempre que exceda os
parâmetros limites, para cima ou para baixo, e assim joga como motor retirado
estritamente da cena ecológica, cego para ela, e, por outro lado, a lógica
desta cena onde há que buscar presas para alimentação e segurança para não se
ser caçado. Se este duplo laço já existe em peixes e répteis, e aliás nos
invertebrados, ele torna-se manifesto na maneira como se desdobrou cerebralmente
pela evolução, na via da complexidade. Este duplo cérebro deixa ver muito
claramente a relação entre os dois sistemas que são próprios de todas as
espécies de animais, entre o sistema de alimentação de todas as células (pela
via do sangue que as banha a todas) e o sistema da mobilidade, boca e sistema
nervoso sendo comuns a ambos. A designação de “estado central flutuante”
permite perceber este mundo hormonal complexo (e aliás descentrado) como o ‘aparelho
regulador’ do sistema de alimentação (veremos depois o que é o respectivo
‘motor’), que se adapta às flutuações aleatórias dos teores do sangue e as
regula; enquanto que o termo ‘hormona’ (vem do verbo grego ‘hormao’, excitar, mormente à guerra) diz
o ‘pulsionar’ de comportamentos do sistema de mobilidade como o seu ‘motor’, de
que os grafos do neo-cortex serão por sua vez o ‘aparelho’, atento ao aleatório
da cena em que se move, de que é parte intrínseca como ‘ser no mundo’. Vê-se
bem como estes duplos laços põem em questão a vulgata genética que punha os
genes a ‘determinar’ comportamentos: como diremos, estes jogam o seu jogo na
regulação do metabolismo de cada célula especializada, mas é no conjunto anatómico
dos tecidos especializados em órgãos diferenciados que residem as lógicas comportamentais
em torno da lei da selva, da busca de moléculas de carbono. Lei de alimentação
e lei da caça são indissociáveis, o risco constante de se ser caçado
assinalando a sua inconciliabilidade (quem vai à guerra dá e leva). Tudo se
passa como se o sistema alimentar fosse um cego (genes e hormonas) paralítico a
quem a evolução teve que dar faro, olhos, ouvidos e patas para se poder mover
no seu mundo ecológico, se alimentar: a pulsão de fome[41]
tem componente genética, mas nem os genes nem as hormonas determinam o menu
escolhido.
38. O fenomenólogo descreve a
partir das descobertas das ciências mas desconfia da ontoteologia dos
respectivos paradigmas; só que não sendo neurologista, não sendo capaz da
cientificidade especializada que demora muitos anos a ser adquirida, interpretando
fenomenologicamente os dados recolhidos na literatura de divulgação biológica, em relação aos especialistas faz apenas sugestões na
expectativa de não ser desmentido por
eles, claro, sem grande
esperança aliás de ser compreendido, que estes entendam o alcance das
descrições fenomenológicas nos seus próprios paradigmas. Assim, as novas
sinapses criadas pela aprendizagem dum dado uso complexo, uma sequência
temporal de gestos sobre determinados materiais com instrumentos adequados, a
receita dum cozinhado, por exemplo, formarão um determinado grafo com as suas
repetições que serão cada vez mais hábeis, com menos enganos. Se identificarmos
as ‘pulsões’ que levam a fazer tal cozinhado com a facilitação (química, de
tipo hormonal) dos neurotransmissores que balizam esse grafo de cozinhar, isto
é, se postularmos que vem destes a espontaneidade hábil do que se aprendeu e
grafou (sem portanto opormos a química ‘inata’ e o aprendido), haverá um motor
químico que
incita a percorrer o grafo implicando a inibição provisória de outros caminhos,
isto é de outros grafos possíveis, como sucede quando há um engano, surgido
porventura doutra ‘pulsão’, doutro motor ligado a outras regras de uso. Então
poder-se-á dizer que a aprendizagem consiste no adestramento ou
disciplinação de pulsões químicas, umas inibidas, outras facilitadas e tornadas
espontâneas.
39. Resumindo sobre o ‘retiro’
da regulação (o
que chamo aparelho, em analogia aproximada com o automóvel) em relação à cena ecológica, ao
mundo em que somos. O duplo cérebro joga entre pulsões químicas e grafos
aprendidos entrelaçados, num duplo laço sem exterioridade, sem oposição entre
ambos, já que são os neuro-transmissores que transmitem o ‘fluxo nervoso’ de
electricidade iónica que atravessa os grafos. Os grafos são as ‘regras’
(aprendidas) da circulação na habitação social, adequadas ao aleatório das
situações quotidianas, segundo o estilo de cada um. A memória latente é parte,
com a consciência actual, da estrutura que é este aparelho de grafos. ‘Latente’ significa ‘não
presente’, mas como a memória (grafos do nosso saber) tem efeitos no que é
‘patente’, a consciência mais ou menos atenta à sua situação no mundo, ela
também não é ‘ausente’. É neste ‘nem presença nem ausência’, não estar lá
mas produzir lá efeitos, que consiste o retiro da memória e, em geral, dos
aparelhos de regulação dos duplos laços (em contraste com o retiro estrito dos motores): digamos
que tem o estatuto duma possibilidade (§ 43). Eis o que se presta para
compreender o funcionamento oscilante desta regulação entre repetições rotineiras (como um carro que vai tranquilo
numa estrada sem grande movimento) e acontecimentos advindos de terceiros (pedindo
uma manobra rápida de desvio). Durante a rotina, o condutor facilmente conversa
com alguém a seu lado, interrompendo-se todavia quando tem que manobrar de
imprevisto; a fazer um cozinhado ou a consertar uma torneira, também a rotina
de quem sabe permite uma conversa, que interrompe um cheiro a queimado ou um
jorro repentino de água. Oscilação assim entre as pequenas repetições
sabidas e hábeis e a atenção polarizada por acontecimentos. Mas também em descanso há oscilação entre atenção e relaxação, como entre vigília e sono, entre sono lento e sono paradoxal com os seus sonhos[42],
etc. Esta oscilação estrutural é a do duplo cérebro dum ser no mundo, é assim que funciona a estrutura de qualquer
duplo laço, oscilando
entre repetições rotineiras e acontecimentos.
O duplo laço da alimentação entre o sangue e as
células
40. Há pois hormonas cujo papel é
o da regulação da homeostasia do sangue entre os seus limiares máximo e mínimo,
à laia de bombeiros enviados a corrigir eventuais desequilíbrios. Como se
disse, elas fazem parte do motor químico do duplo cérebro, sendo para tal
disciplinadas no que à contenção dos comportamentos no mundo diz respeito. Mas
o seu papel de reguladoras da homeostasia significa que esse duplo laço
cerebral do sistema da mobilidade no mundo se enxerta num outro, o da alimentação,
em que a circulação do sangue (alimentada pelos sistemas digestivo e
respiratório) liga todas as células do organismo a que fornece moléculas como material para o
respectivo metabolismo, o qual por sua vez liga cada célula de que esse
metabolismo mantém e refaz a estrutura molecular. Temos pois uma outra dupla
ligação entre o sangue como ‘unidade’ do organismo e cada célula em sua unidade
própria: o que para cima (sistema da mobilidade animal) faz parte do motor dum
duplo laço, para baixo faz parte do aparelho dum outro, o do “estado central flutuante” de
Vincent, que regula o sistema nutritivo animal em função do aleatório (flutuante)
das situações do sistema. Esta maneira de fazer parte de dois duplos laços
mostra que se trata da articulação dos dois sistemas também numa dupla
ligação mais geral entre alimentação e mobilidade. Esta é a maneira de todas as
quatro grandes cenas da chamada realidade, da gravitação à história dos textos
do saber ocidental, se estruturarem (repetição, regras) com autonomia relativa
das unidades à cena que as deu. É o que se poderia chamar a grande lei
ontológica do universo que se realiza onticamente nas
cenas como incomensurável diversidade.
41. No seu papel regulador, o
conjunto das hormonas também joga como não presente (não sendo necessárias, não
são secretadas) mas também não ausentes, já que sempre que uma é necessária é
secretada pela respectiva glândula. Não o seriam quando a rotina sanguínea
funciona bem, mas o que a existência das hormonas implica é que não é sempre o
caso, que há oscilações constantes ainda quando não se trate de indigestões ou
febres: como no caso da memória, é sempre o ‘acontecimento’ aleatório quem
decide da sua secreção; as hormonas têm o estatuto (quase heideggeriano) de possível em que a ‘situação’ decide[43].
Põe-se então a questão de saber o que é o motor deste sistema nutritivo. A
resposta, na outra vertente deste duplo laço, é paradoxal: são os órgãos do
próprio sistema nutritivo cujas células especializadas a circulação do sangue liga, todas e cada uma assim
alimentadas em conjunto como resultado do trabalho produtivo dos seus órgãos, é
a anatomia do sistema nutritivo que é o ‘motor’ da alimentação, incluindo, é
claro, as células dos órgãos da
mobilidade. Com efeito, a este nível, o metabolismo de cada célula consiste nas
operações químicas que garantem o seu funcionamento especializado no respectivo
tecido-órgão, que consiste em fazer tudo o que ela pode e deve fazer para que o
conjunto garanta que ela é alimentada, numa espécie de círculo homeostático[44], já que ela é alimentada
justamente para poder fazer tudo o que pode e deve fazer para que o conjunto
garanta que ela é alimentada. Este círculo homeostático é a concretização da
lógica da evolução para a complexidade: que células à partida independentes e
depois fazendo colónias venham a assegurar uma organização (tecidos e órgãos) mais capaz de as alimentar a todas que se
especializam nesse sentido[45].
O que significa que faz parte do seu ‘interesse’ enquanto célula o seu bom
funcionamento de célula especializada, isto é, enquanto ligada pela circulação
do sangue que a alimenta a todas as outras em seus tecidos-órgãos: esta ligação
de todas as células pelo sangue com nutrientes e oxigénio faz parte da lógica
intrínseca da evolução animal a partir de colónias de unicelulares, organizadas (em sentido literal, órgãos,
organismos) podem sobreviver melhor do que sozinhas. E então o que é que há de
‘inibição’ deste motor, que vimos ser característica dos duplos laços?
Quaisquer que sejam os mecanismos bioquímicos, parece que o laço da circulação
sanguínea que vai a todas as células para, coordenadamente com o ADN, garantir
a especialidade do tecido e a boa dimensão do órgão, terá um qualquer efeito
inibidor da cancerização. Com efeito, fenomenologicamente o cancro parece
definir-se como umas tantas células que se desligam do conjunto anatómico, perdendo
a sua especialização nele e buscando reproduzir-se indefinidamente, retomando a
lógica das colónias primitivas. É bem de ver que a anatomia só pode funcionar
correctamente através de mecanismos que impeçam este desligar, inibam este desgoverno suicida
para o organismo, mecanismos que desde o feto até ao estádio adulto vão
limitando o tamanho de cada órgão (Prochiantz).
Ponto de ordem sobre o motivo de ‘ligação’ ou ‘laço’
42. Aplicado a domínios tão
diferentes como um automóvel, um mamífero ou uma unidade social, obviamente que
este termo tem um sentido geral que se pode dizer ontológico, capaz de servir para os entes
muito diferentes de que as diversas ciências se ocupam. Implica uma
‘assemblagem’ de elementos destacáveis deles mesmos e que se encontram
‘ligados’ ou ‘enlaçados’ de forma a constituírem um conjunto dinâmico, um mecanismo autónomo na sua
singularidade. Essa ligação releva portanto duma ‘lei’ que implica que esse
conjunto seja capaz de movimentar-se (ou de ser movimentado) e de manter
consistência, movimento próprio em tudo o que tem a ver com vivos[46].
O motivo do duplo laço ou dupla ligação implica uma dualidade de ligações
sujeitas a duas leis diferentes, fazendo uma unidade indissociável (não ‘duas’
mas ‘uma dupla’) mas relevando de lógicas inconciliáveis, contraditórias, o
que faz de cada duplo laço uma aporia: nenhuma das duas leis joga sozinha, a dupla é
indivisível, o funcionamento delas implica uma indeterminação estrutural que a
torna apta a cenas aleatórias (ligação de regulação: aparelho) recebendo
energia para auto-movimento dum motor retirado estritamente da cena, cego,
incapaz de se mover (ou de ser movido) sem regulação adequada à lógica
aleatória da cena. Como é que então esta unidade dupla se move, sendo
indeterminada? Como acontecimento, imotivadamente consoante a sua situação na cena, mas
segundo as regras desta que têm que garantir persistências, pequenas
repetições, rotinas de razão, se dizer se pode (é o grande objecto das ciências
em seus laboratórios), que delas mesmas são pequeníssimos acontecimentos e que,
encontrando-se com outras assemblagens, dão origem – por vezes, frequentemente
– a acontecimentos mais visíveis e inesperados. O duplo laço em seus
diversos níveis estrutura o Universo como diversidade.
43. A ‘regulação’ do aparelho
adequada à cena foi-lhe dada por esta (autonomia dada por heteronomia apagada),
sendo detectável nas regras desse mesmo ‘aparelho’, cuja lógica é a de serem
sempre susceptíveis de serem efectivadas devido à situação aleatória da cena a
que há que fazer face e portanto a de se manterem ‘retiradas’ (dentro duma
fronteira: membrana celular, pele dum organismo, carroçaria dum carro, parede
duma casa, etc.) quando não são pedidas pela situação. Há assim relação entre
regras e as situações a que respondem, sobrando outras, retiradas, não
efectivadas, que se podem inclusivamente perder, tal via possível que não se
escolheu (o músico que se poderia ter sido se...): eis um ponto em que se
percebe a importância de se ter recusado a oposição dualista tradicional da
metafísica europeia entre o ‘sujeito’ e o ‘objecto’. Talvez não tematizado mas
que o percorre como característico do “ser no mundo”, em Ser e Tempo a possibilidade é do Dasein – ele pode – mas também do
mundo, ele pode na circunstância dada do mundo em que se encontra; este motivo poderá
dizer o estatuto deste ‘aparelho’, esta maneira do que, retirado
estruturalmente (por uma pele aberta
com orifícios, um muro com portas e janelas), tem todavia
mecanismos capazes de exercerem efeitos ao jogar com a situação; tal
como as capacidades duma máquina lhe são dadas pela estrutura do seu aparelho,
serão exemplos no que à vida diz respeito: a habilidade espontânea e a memória,
quando se trata do sistema da mobilidade das aves e mamíferos, o jogo hormonal
no da nutrição, o paradigma de receitas numa unidade social, a língua nos
discursos e textos. É possível aquilo de que se é capaz em diferentes situações
e não se pode saber das possibilidades senão em situação; quando esta precipita
um acontecimento forte, revelam-se por vezes capacidades desconhecidas, capazes
de irem além do tido até aí como possível.[47]
A oposição dualista europeia entre sujeito e objecto é incapaz de dar conta
desta economia de “seres no mundo”.
44. A lógica deste duplo laço em
geral, entre ‘motor’ estritamente retirado e ‘aparelho’ nem presente nem
ausente nos seus efeitos possíveis, é assim a da indissociabilidade de duas
leis, uma química (motor do automóvel), bioquímica (hormonas animais de comando
genético) ou biofísicoquímica (linguagem, como voz ou dedos da mão) fazendo
mover as unidades que circulam, e outra que releva da cena dessa circulação
(lei do tráfego, da selva, da guerra, da verdade), ambas doadas por esta cena,
que incessantemente alimenta a primeira e dita as regras da segunda,
dissimulando a sua força doadora para que as autonomias circulantes sejam
possíveis. No caso geral da lei da selva, a lei bioquímica obriga cada animal
de qualquer espécie que seja, vertebrado ou não, a buscar noutros vivos, sejam
plantas sejam animais, moléculas à base de carbono de que precisa para esta lei
bioquímica que comanda o sistema nutricional (hormonas de comando genético). O
risco permanente de ser presa de outros animais, submetidos à mesma lei bioquímica
da fome, isto é, à lei geral da selva dependente do ciclo do carbono desde a
fotossíntese, esse risco sublinha a inconciliabilidade das duas leis, a aporia
do duplo laço que, no que diz respeito a todos os animais, se resume na
expressão de Hobbes: “a guerra de todos contra todos”. Qualquer sociabilidade
entre animais da mesma espécie (K. Lorenz) implica um laço de solidariedade
diante da inexorável lei da selva, de que o interdito do canibalismo é exemplo
entre os humanos. Quanto à perspectiva entrópica de Prigogine, aqui silenciada
apesar da sua necessidade porque desenvolvida em “A unificação dos saberes com
Prigogine: entropia e homeostasia”, in A unificação dos saberes (inédito): o ‘motor’ é o que
arranca da cena anterior como entropia da elevação a uma posição instável (em
termos da cena donde vem), é um motor entrópico; o ‘aparelho’ consiste nas
regras da nova cena que dão estabilidade à posição entrópica instável. O motor
consiste numa nova ligação alimentada de elementos da cena anterior, inviável
todavia nela, caótica, e que só tem viabilidade na estabilidade das regras da
nova cena, inéditas para a anterior. O enigma da aporia reside na articulação
entre ambos, ‘motor’ e ‘aparelho’, nenhum sendo viável sozinho, ambos formando
uma unidade dupla.
A lógica do duplo laço das
células não é a mesma
45. Quando, cientes já dos vários
níveis de duplos laços aporéticos entre as unidades de habitação das sociedades
humanas e entre os organismos animais desde os invertebrados, e da sua lógica
entre um motor retirado, inibido, e um aparelho de possibilidades em função do
carácter aleatório da circulação na cena ecológica da selva, quando abordamos o
primeiro nível de invenção da vida, o dos unicelulares e o da célula dos
organismos, deparamo-nos por um lado com um elemento inibido, o ADN nos cromossomas
do núcleo celular donde nunca sai[48],
veremos depois porquê, e por outro, entre as duas membranas, a do núcleo e a da
célula, a variabilidade típica dum aparelho, a das transformações químicas que
sintetizam moléculas imprescindíveis à célula, ou as conservam mediante enzimas
apropriadas. Ora, esta duplicidade de estatuto presta-se sem dúvida a ser lida
como um duplo laço com duas leis a investigar, mas escapam à facilidade do
modelo do automóvel que temos usado, já que parece óbvio que não se pode interpretar
o retiro do ADN como um ‘motor energético’ do incessante metabolismo, nem tão
pouco o ARNm que dele se transcreve caso por caso para ir presidir à síntese
das proteínas. Com efeito, a energia de que estas necessitam e que, como nos
outros casos, tem que ser fornecida pela cena de fora do organismo, é aqui o
efeito dum certo número de moléculas de ATP, resultantes da decomposição
química de glicose, principal nutriente animal. Como se a diferença entre a
função energética e a função de adequação às variações do contexto da cena não
coincidisse com a diferença entre ambos os laços que estão no cerne da invenção
da célula. É este problema que nos ocupará agora.
46. Teremos que averiguar qual é
a especificidade do duplo laço que a inventou, comparando-a, enquanto matéria
viva elementar, com a matéria inerte dos minerais, como a rocha, o mar ou a
atmosfera, sem ter que discutir aqui[49]
a questão dos duplos laços destes. Bastará, com efeito, constatar que os
minerais simples são formados, abaixo dos limites da nossa percepção de
visibilidade sem aparelhagem laboratorial, por uma quantidade imensa de moléculas
todas iguais e
que, com as diferenças de estabilidade que atestam os três estados clássicos
dos sólidos, líquidos e gasosos, dependentes das condições de pressão e
temperatura da cena da gravitação, guardam as mesmas moléculas – de H2O
no gelo, na água e no vapor – para formarem os graves de que são feitos os
astros. Enquanto que a matéria viva, a um nível superior ao das moléculas
atómicas da tabela periódica de Mendeleiev mas ainda em geral abaixo das
dimensões que nos são perceptíveis (organismo visível a olho nu), a célula é
formada de moléculas especializadas, extremamente mais complexas do que as dos graves
inertes, aonde avulta a presença sempre necessária de moléculas de carbono (além de água, oxigénio,
hidrogénio e outras), moléculas essas bem diferentes entre si segundo as
diversas especializações de funções que tornam possível a existência e
reprodução de células, quer unicelulares, quer em organismos mais ou menos
complexos. Reenviando a exposição com algum detalhe para Le Jeu des
Sciences avec Heidegger et Derrida, cap. 11, §§ 2-13, digamos o
essencial a partir da genial Teoria semântica da Evolução de M. Barbieri sobre a maneira
de compreender a invenção das células durante o primeiro bilião de anos da Terra.
A teoria de A. Oparin, confirmada experimentalmente por S. Miller e H. Urey
(1953), permite compreender a formação de moléculas orgânicas no clima da terra
de então: antes de ‘células’, houve moléculas de ribotipos (Barbieri), vários
ARN, cuja propriedade é a de poderem jogar a fazer e desfazer outras moléculas
com propriedades (de membranas, enzimas e outras funções) que viriam a permitir
a sua conjunção em células, delimitando as moléculas retidas das que ficaram no
exterior: houve assim um laço que se estabeleceu adentro da membrana por efeito
dos ribotipos, capazes de se auto-agregarem e de sintetizarem aminoácidos em
proteínas diversas. Digamos, com a simplificação dum leitor leigo de livros de
divulgação movido pela audácia fenomenológica de compreender os mecanismos básicos
do universo, que se trataria dum laço ribotípico que garantiria a conjunção momentânea
do que faz uma célula. Falta a outra lei, capaz de garantir a continuação no
tempo desse conjunto conseguido pelo acaso do jogo de fazer e desfazer
moléculas e células no mar de outrora, capaz de fazer a reprodução celular, onde
entra o ADN (ácido desoxirribonucleico) que, segundo Barbieri, é posterior aos
ribotipos e cujo nome indicará que se trata dum ácido ribonucleico, um ARN sem um oxigénio (desoxi), nome que o
leigo leria como dizendo justamente a primazia dos ribotipos que defende o
biólogo italiano. Qual é a necessidade do ADN? Ao contrário dos graves minerais
e da sua grande estabilidade nas condições de pressão e temperatura do nosso
planeta, a complexidade das moléculas de carbono celulares, as proteínas,
torna-as relativamente instáveis, devendo ser compostas a partir de moléculas
menores, os aminoácidos, por efeito de tradução pelo ARN mensageiro. Talvez se
possa dizer que a instabilidade dessa complexidade será a grande fragilidade do
metabolismo, incessantemente a recomeçar sínteses (composições), com as suas
duas mil transformações químicas simultâneas e autónomas umas das outras nos
vertebrados (segundo Prigogine). Isto é, serão a variedade de moléculas
especializadas da arquitectura das células e da sua reprodução e a fragilidade
que isso implica, a razão de ser dos vivos necessitarem constantemente de serem
alimentados com moléculas mais pequenas e mais estáveis e com açúcares
energéticos, em contraste com a durabilidade das rochas, dos minerais, já que
implica que a célula tenha que precisar constantemente, quer de enzimas que
mantenham as proteínas, quer de sínteses de novas a partir dos nutrientes que
chegam à célula com o sangue para crescer e poder vir a dividir-se em duas,
implica um incessante metabolismo que faz e refaz o que se desfaz: ora, os
vários ribotipos não são suficientes para garantir a conservação da célula, já
que os ARNm que orientam a síntese das proteínas são eles próprios degradados
quimicamente após a sua ‘mensagem’ cumprida. O ADN retido no núcleo é
justamente a molécula que não se degrada, que se mantém na sua estrutura bi-helicoidal como uma
espécie de ‘receita’, o desenho da arquitectura da célula sempre disponível
para se transcrever um seu gene em ARNm em ordem à síntese de tal proteína que
o metabolismo significa ao ADN ser necessária. Este é então o outro laço da
célula, uma espécie de paradigma de todos os ARN a serem transcritos, retirado no núcleo para evitar
a sua perca por degradação química no metabolismo, para lhe evitar o destino
dos ARN. Com a evolução dos organismos multiplicando as células especializadas
em tecidos variados, cada uma delas contém o ADN de todas as especialidades,
ainda que só os genes que lhe dizem respeito sejam de facto acessíveis.
47. Quais serão então as duas
leis deste duplo laço inédito?[50]
A do metabolismo dominado pelos ribotipos[51]
será a lei da nutrição molecular das células, com as suas variações, quer
consoante as moléculas que chegam à membrana celular, quer consoante as necessidades
de sínteses de proteínas, lei essa que é a localização ao nível celular da lei
da nutrição do organismo, da sua auto-reprodução. A do núcleo dominado pelo
ADN, é a lei da conservação e reprodução temporal da célula na sua dimensão e especialização:
é a partir do metabolismo, das suas necessidades especializadas e das novas
moléculas recebidas, que tem que haver mecanismos de expressão que seleccionem
no ADN aberto a essa célula os genes que há que transcrever em ARNm[52].
O laço ribotípico liga as moléculas todas da célula constituindo a sua unidade
e refazendo a sua nutrição, lei alimentar; o laço genético vela pela relação da
célula ao exterior que a alimenta e ameaça, lei de sobrevivência. Em vez do
determinismo genético que grassou na literatura, há uma mútua dependência nesta
indissociabilidade das duas leis. E onde reside a sua inconciliabilidade? É o
contributo original de Barbieri que me parece poder esclarecê-la: se a
especificidade dos ribotipos é a de poderem replicar proteínas, se foi isso que
eles fizeram e que tornou possível formar células mas sem lhes garantir a
sustentabilidade, porque o que se fazia era frágil e se desfazia, então o ADN,
com o seu misterioso (para mim) ‘desoxi’, é o que impõe disciplina aos
ribotipos – vocês só fazem tal proteína – que são inibidos assim de jogarem a
seu belo prazer. É aonde a metáfora das ‘letras’ do ADN ganha sentido, como uma
‘receita’ que se impõe a um uso (é assim que se tem que fazer, disciplinando as
‘vontades’ anárquicas dos ARN), o desenho complexo dum edifício repartido em
folhas aos diversos técnicos de tal ou tal zona a ser construída, sem terem que
saber o que fazem os outros especialistas. Trata-se com efeito duma linguagem disciplinadora de algo de novo
no universo mineral da Terra.
48. Este processo convida-nos a
prolongar o ponto de ordem sobre os duplos laços, a indagar dos seus vários
tipos para situar neles este estranho metabolismo. Digamos que há três
possibilidades: a do motor do duplo laço transmitir apenas energia ou força
para alimentar o movimento, como é o caso do automóvel; a de transmitir, além
de energia, também algo relativo às ‘substâncias’ para que haja mudança; e,
terceira possibilidade, a de nem sequer transmitir energia, mas apenas o que
modifica. O caso do automóvel é relativamente simples, já que não é
auto-reprodutivo, o seu ‘movimento’ é apenas de ordem cinemática, do
deslocamento quantitativo segundo a extensão: o motor é claramente distinto do
aparelho (a embraiagem articula-os), como não há auto-reprodução, só fornece
energia, sendo pois o extremo oposto do metabolismo celular que acabamos de
considerar. O segundo caso é claramente o do sistema alimentar: o sangue
transporta moléculas orgânicas e oxigénio que tanto fornecem alimento
‘substancial’ como energia ao metabolismo da célula; mas é também o caso da
divisão duma célula em duas e da concepção que junta um espermatozóide a um
óvulo: trata-se de doação de ‘substâncias’, agora células e não apenas moléculas.
O terceiro caso é o da aprendizagem, que supõe dois humanos, a anatomia e as fontes
de energia química quer do que ensina quer do que aprende: ora, neste caso não
há ‘alimentação substancial’, entre ambos transitam apenas diferenças
estruturais, linguísticas por exemplo (mais adiante, §§ 79-80), mesmo as forças
que se imprimem nos neurónios dando origem a sinapses permanecem exteriores
umas às do que ensina, que permanecem retiradas no acto mesmo de doação, condição
de as forças que no aprendiz lhes resistem ganharem a autonomia de terem as
suas fontes de energia química, de o petiz não ser esmagado pelo muito saber do
adulto, de o novo saber aprendido ser ‘seu’. É este apagamento da heteronomia,
do saber adulto, que justifica que não haja transmissão nem de energia nem de
‘substância’ molecular (a sinapse que Randel nos ensinou que se gera na
aprendizagem é alheia a quaisquer das sinapses do mestre, onde reside o grande
enigma destas coisas). Então como situar o metabolismo celular? Ele situa-se
nesta terceira possibilidade, já que o retiro estrito, repetitivo, do ADN no
núcleo dá-lhe o lugar de ‘motor’, mas com a bizarria de a energia do metabolismo,
da mudança química, vir do ATP, moléculas à parte, ribótipos (Barbieri). O
‘aparelho’ (incluindo o ATP) consistirá na transcrição do ADN em ARNm e na
tradução deste na estrutura diferencial da proteína que serão que se adequa às
necessidades da célula. Ora, este processo é apenas de diferenças estruturais (as dos genes transcritos são as mesmas do ARN e da proteína sintetisada),
tal como acontece na aprendizagem, visto que também supõe ‘substâncias’ já lá,
os ribossomas e os desoxi, assim como as moléculas que chegam pela alimentação.
O que leva o leigo a pensar que esta diferença, a bizarria deste duplo laço, que, próprio dos unicelulares, é prévio à invenção da
sexualidade e mesmo aos organismos complexos, tem a ver com a constituição
da própria vida,
que os outros duplos laços posteriores pressupõem já. Este jogo de diferenças
que se inscreve numa matéria é o que Derrida chamou escrita ou différance, o que diz grama em “programa genético”. Pensar
que está nessa bizarria o enigma essencial da chamada ‘origem da vida’: nenhuma
língua tem origem, já lá está sempre já, a vida não teve origem, este processo
(esta différance) que os biólogos e os bioquímicos têm esclarecido aos nossos olhos espantados
só pode ter lugar como ‘reparação’ de moléculas num todo já existente. Nunca,
creio, os biólogos se encontram diante do fabrico duma célula, apenas de mudanças das que já existem, como diz a
palavra ‘metabolismo’[53],
a ‘regulação’ consistindo na síntese da proteína pelo ARNm disciplinado pelo
ADN. Nunca este é sozinho, sempre já em células e respectivo metabolismo,
qualquer célula vem sempre de outra célula: é uma outra maneira de dizer que a
acção do ADN se limita à própria célula, sempre já em ligação com o sangue que
lhe traz nutrientes e oxigénio.
Os
duplos laços da anatomia como ‘solução’ do enigma da evolução dos animais: a lei da selva
49. Em vez do determinismo
genético que os biólogos e os cientistas em geral receberam da filosofia
europeia ontoteológica, o motivo bateson-derridiano de duplo laço aplicado a
estas questões que as ciências europeias têm levantado revela-se duma
pertinência inesperada. E possivelmente inaceitável para esses cientistas, se
não forem capazes de entender que o ‘determinismo’ não é senão o deslocamento
indevido para a cena ecológica do que eles descobrem nos laboratórios, se não
forem capazes de compreender a razão pela qual a ciência não pode prescindir
destes: é justamente por a cena ecológica não ser determinista, que é
necessário criar condições de determinação aonde, detalhe por detalhe, fragmento por
fragmento, se encontrem razões detalhadas e fragmentárias de causa e efeito.
Por exemplo um automóvel, programado em cada uma das suas peças laboratorialmente
com a maior exactidão que as descobertas científicas permitem: trata-se do
ponto de vista teórico aplicado à cena fora do laboratório, à estrada onde ele vai circular, duma
máquina adequada em cada uma dessas peças, até as de mero conforto, ao aleatório
do tráfego, à sua lei que o condutor tem que aprender de molde a tornar-se uma
peça adequada, ele também, do carro. Ora, o que um carro encontra
constantemente nas estradas, são curvas, cruzamentos, carros em frente outros
atrás, e é a esse aleatório que o automóvel e o seu condutor tem que estar
adequado, aos constantes acontecimentos da estrada. Os engenheiros que programam os
carros têm-nos sempre em mira, não se poderá dizer que o carro no seu conjunto
articulado é determinista, embora em cada momento se deva estar seguro da
determinação do peça a peça. É a esta relação – em que consiste a teoria – de regras de detalhe analisadas em laboratório e de aleatório
da circulação da
máquina em funcionamento (na ‘realidade’, como se diz) que responde o duplo
laço entre o motor cilíndrico (ou eléctrico) do carro, repetitivo, e o seu
aparelho de circulação, em constante adaptação à situação da estrada.
Tratando-se de biologia animal, pensa o fenomenólogo que detectou um obstáculo
filosófico de monta no paradigma determinista dessa biologia (um cão e um gato
são deterministas?), e daí que tenha que se atrever a estes altos voos, apesar
da sua lacuna laboratorial: estender a mão filosófica a quem sabe de
biologia. Explicar
que na cena ecológica em que os animais nascem, se comem uns aos outros (ou
plantas) e morrem em geral comidos, em que desde o nascer se tem que ser protegido,
tudo isto consiste em acontecimentos, é a eles que os duplos laços da anatomia animal, que
tentei evocar balbuciando as leituras que fui fazendo, são estruturalmente
adequados, não se trata de fantasias para consumo meramente filosófico.
50. Porque é então que a anatomia
animal é composta destes três níveis, o das células, o do sistema de nutrição e
o do sistema de mobilidade, o duplo cérebro jogando na articulação destes dois,
para dentro e para fora respectivamente? Para resolver, em terra ou no ar e não
apenas no mar inicial, para resolver melhor do que os unicelulares a nutrição
de cada célula numa cena ecológica em que essa nutrição se encontra apenas em
plantas ou outros animais, feitos igualmente, e só eles, de células à base de
moléculas de carbono, fósforo, e por aí fora. É o que esclarece a lógica feroz
da lei da selva, segundo a qual carnívoros vão buscar essas moléculas aos herbívoros que
comem, estes às plantas que por sua vez as recebem do CO2
atmosférico por via da fotossíntese: essa lei determina a anatomia dos
animais, das diversas espécies, tal como a lei do tráfego determina a anatomia
de automóveis, camiões, motos, bicicleta e carroças[54]. O sistema da mobilidade, com
faro, olhos, ouvidos, tacto, e boca e patas musculadas, está adequado quer à
caça de presas, quer à defesa e busca de segurança para evitar ser presa: joga
pois segundo duas leis, a da sua auto-reprodução e a da selva que rege
igualmente todos os outros animais (e plantas, mas destas não sei nada). Parece
ao leigo que, entre espécies mais ou menos vizinhas, será sobretudo este
sistema de mobilidade que é variável, mais do que o da nutrição, se se tem em
conta a panóplia imensa de tão diferentes astúcias, leque inesgotável das artes
de capturar e de se defender, venenos, garras, mandíbulas e dentes fortes,
tromba e cornos, ferrões e teias de aranha, refúgio em tocas ou subindo às
árvores, até às asas para voar. E aqui está um primeiro ponto do enigma da
evolução: estas astúcias foram desenvolvidas casualmente por mutações
imotivadas de genes, como quer uma teoria neo-darwinista ainda porventura
dominante? Esta ‘solução’ de ordem laboratorial, à base de esquemas de
determinação causa / efeito que presidem a essas experimentações fragmentárias,
tem um inconveniente lógico óbvio: não entender que a grande invenção da vida
implica a regulação do aleatório, substituir esta pelo acaso das mutações (§
19n.), o que para um paradigma ‘determinista’ deveria ser o pecado maior. A
cegueira do paradigma neodarwiniano é não se dar conta de que quer os genes
quer as hormonas, ‘estritamente retirados’, são ‘cegos’ em relação à cena
ecológica em que as mutações deveriam ‘acertar’, e que foi por isso que os
animais inventaram faro, olhos, etc. Ou então, em alternativa, essas mutações
resultaram de ‘acontecimentos’ repetidíssimos na cena ecológica face a outros
animais, ‘acontecimentos’ esses que, por via dos duplos laços, vieram a
intervir no ADN? Isto é, se, em vez de se raciocinar apenas a partir dos genes,
se raciocinar também contando com o animal no seu mundo ecológico – onde é
criado e alimentado, aonde a lei a que a sua anatomia se adequa – haverá
maneira de compreender (com uma outra lógica fenomenológica que se revela aqui
mais adequada do que a boa velha lógica da filosofia das ciências que, tanto
quanto sei, nunca soube indagar da necessidade do laboratório), de pensar
heideggerianamente além de Heidegger a teoria da evolução como a evolução de
‘animais no mundo’. Além das alterações climáticas, pode-se pensar que as
causas essenciais da evolução relevam de dificuldades com alimentação e água,
que as espécies que sobreviveram, e por isso seleccionadas, foram aquelas a
quem não faltaram outras espécies de que se alimentarem ou souberam adequar-se
às mudanças da cena ecológica nesse sentido.
51. A boca sendo órgão essencial
da mobilidade para a captura de presas, ela é também a primeira etapa da
transformação destas em moléculas que, após estômago e intestino delgado,
passam ao sangue com destino a cada uma das células. Foi onde encontrámos o
‘aparelho’ das glândulas que segregam hormonas como adequação às variações dos
teores desse sangue alimentador, após ter sido ‘motor’ dos comportamentos de
saciar fome e sede. Estas variações podem relevar, obviamente, do aleatório do
que se come e bebe, das infecções possíveis, de outros ‘acontecimentos’
derivados da situação do animal no mundo a que as anatomias sabem melhor ou
pior responder, como o cães e gatos se sabem tratar e nós já não sabemos. Entre
as diversas hormonas, as esteroides, segundo Vincent, têm características
notáveis de adaptabilidade que viremos a considerar mais adiante nas suas
incidências possíveis na evolução. Mas o que define esta anatomia de nutrição
de todas as células do organismo, incluindo as do sistema de mobilidade, é que,
fazendo laço com o sistema da mobilidade para cima e com o das células para
baixo, duplo laço de mediação, é nela que se conjugam, já não as necessidades
orgânicas de se estar no mundo da selva e das suas astúcias e aprendizagens,
mas as necessidades de transformar os pedaços de presa comidos em moléculas de
carbono mais simplificadas que sejam susceptíveis de serem aceites pelas
membranas celulares como boas para a síntese de proteínas. Ora, aqui
encontramos outro ponto em que o determinismo genético é fortemente ilógico no
seu recurso ao acaso das mutações do ADN. Em cada célula, este tem que estar
adequado, não apenas às moléculas que lhe chegam no sangue, em que um certo
aleatório jogará porventura embora muito controlado pelo trabalho do aparelho
digestivo, mas também às proteínas que são estruturais dessa célula segundo os
seus tecidos e órgãos. Ora, estes são aqueles de que a mesma anatomia nos seus dois
sistemas necessita, do adiposo ao neuronal haverá nos vertebrados duas centenas
de tecidos em células especializadas; reencontramos aqui o que se chamou acima círculo
homeostático,
que na fenomenologia de Hegel se resolveria por ‘dialéctica entre sujeito e
objecto’[55], mas que
aqui, fora da ontoteologia, precisará deste motivo do duplo laço como regendo e
regido por acontecimentos. Isto é, assim como ao nível do sistema de mobilidade
na cena ecológica, as anatomias têm que ser adequadas à caça e defesa de se ser
caçado e as suas variações evolutivas resultarem de catástrofes ecológicas,
também o duplo laço deste sistema com o da nutrição deverá ter incidências
sobre este, na chegada do sangue às células. Sendo provável, crê o leigo, que
estas variações sejam muito mais lentas do que as do sistema de mobilidade, só
no entanto esta característica de duplo laço de mediação (do “estado central flutuante”,
Vincent) permitirá entender esta fascinante modificação evolutiva pela qual as
células se foram especializando nos órgãos necessários à sua própria nutrição.
Milhões de anos é a medida cronológica desta espantosa história.
52. Espantosa e fascinante:
porque, descendo ao nível das células, os genes são submetidos à lei da
conservação da sua própria célula! Os geneticistas que fizeram da mutação
casual dos genes a chave da evolução sabiam-no à sua maneira, foram eles que me
ensinaram: só que o problema aqui é filosófico, de lógica, a que a biologia não foge. É aonde a lição do
primado dos ribossomas de Barbieri sobre os ‘desoxiribo’ é fundamental, embora
sem dúvida se vá aqui mais longe do que o grande biólogo italiano. Quando Randel
coloca uma proteína a ir dentro do núcleo ‘expressar’ o gene que, transcrito en
ARNm, permitirá criar uma nova sinapse, e portanto sublinha claramente como um
‘acontecimento’ vindo de fora, uma aprendizagem, vai ter efeitos a nível
genético, e Vincent e outros ensinam que esteroides podem ir juntar-se a genes
para criar efeitos no metabolismo, parece ao leigo ser possível de pensar que,
em circunstâncias de crise catastrófica (à maneira de Stephen Jay Gould
talvez), os efeitos dos três triplos laços enlaçados entre si reactivem esse
primado barbieriano dos ribossomas e e dêem origem às mutações genéticas dos
biologistas. Sendo pois certo que tem que haver mutações genéticas devido ao
conservadorismo estrito do ADN, elas fazem parte dum conjunto de acontecimentos
de fora para dentro que agem segundo os duplos laços: sem determinismos nem
causas / efeitos[56]. E o que são ‘acontecimentos’?
conjugações de mais do que uma assemblagem de duplos laços que produzem efeitos
em cada uma delas, nos respectivos aparelhos de regulação do aleatório e que,
por definição, escapam a qualquer definição susceptível de os determinar: por
isso, as ciências precisam de laboratórios! E no entanto, quando os cientistas se tornam
aplicadores de ciência, os biólogos se tornam médicos, têm constantemente
necessidade de ‘análises’ de todos os tipos para encontrar índices de como
funciona tal ou tal homeostasia sanguínea ou tal ou tal fígado, consequências
imprevisíveis de ‘acontecimentos’, não apenas de alimentação, por vezes também
de ‘stress’ de habitação. Sem que o médico possa dizer exaustivamente como tal
e tal acontecimento provocou este ou aquele sintoma, ele sabe em todo o caso da
relação entre uns e outros.
53. Uma questão inusitada: como
pensar a incidência das mudanças das nossas sociedades nas mutações genéticas?
Por exemplo, a formação da classe média durante o século XX nas sociedades
desenvolvidas do Ocidente implicou que, pela primeira vez na história dos
humanos, muitos milhões de pessoas recentemente escolarizadas passassem a ter
usos que até aí eram fortemente circunscritos: quer a sedentariedade em sentido
estrito, estar as longas horas de trabalho sentado a uma secretária em
actividades monótonas mas sem grande esforço físico, quer as novas condições de
alimentação e de higiene; isto contribuiu para terem inscritas nelas um novo
tipo de fisionomia facilmente distinguível, quer do das elegantes burguesias
instaladas, quer do das populações rurais e operárias quase analfabetas, com
usos de trabalho fisicamente muito duro e prolongado que lhes marcavam de
rudeza os modos, rugosas as peles, os rostos, rudeza essa que se diria
transmitida também com os genes. Acontece que uma parte importante das novas
classes médias era composta de filhos deste povo rude que tiveram a
oportunidade de frequentarem a escola por alguns anos. Não sei se houve já
inquéritos genéticos sobre esta questão: entre a gente de rostos e modos rudes
e os seus filhos ou netos houve mutações genéticas equivalentes, isto é, que
permitam correlacionar diferenças genéticas (relativas à pele mais cuidada, às
diferenças alimentares, aos músculos dos braços e da posição sedentária prolongada,
que sei eu) com diferenças de usos urbanos? Se for o caso, será claro que essas
mutações equivalentes entre si relevam das alterações muito substanciais dos
usos sociais e então haverá que considerar que o tempo de uma ou duas gerações
dessa diferenciação é demasiado curto para resultar de mutações casuais que se
repetiriam milhões de vezes, implicaria que se argumentasse com os duplos laços
para se entender o fenómeno. Mas tal argumentação será extremamente complicada.
A saúde entre duas
homeostasias
54. Uma das conclusões que se
impõem desta fenomenologia, é que a saúde dos humanos não pode ser considerada,
como é corrente, pela representação dum indivíduo ou dum organismo, como se não
se estivesse ligado a unidades sociais, aos seus equilíbrios instáveis. Cada
humano é a articulação de duas homeostasias a que está duplamente ligado: por
um lado, à lógica de alimentação das suas células que o tornam um ser vivo, por
outro ao paradigma das suas unidades sociais de habitação, cujos usos aprendeu
como maneira de se tornar humano e que são também quem se encarregará, com a
sua contribuição inclusive, da sua alimentação e da satisfação das vontades
correntes. Cada homeostasia, biológica e de unidade social, terá os seus
limiares a não ultrapassar; aquém dum mínimo haverá implosão, além dum máximo,
explosão. A maneira de nos ‘saudarmos’ – expressão que significa desejar saúde
ao dizermos ‘bom dia!’ – dirige-se à qualidade da circulação do sangue que
alimenta incessantemente as nossas células, dia e noite, em ‘pequenas
repetições’, desde o pequeno embrião até à última pulsação do moribundo, que as
refeições, como ‘acontecimentos’, sempre relançam para garantir os limiares
homeostáticos, pressão e temperatura do sangue, teores de aminoácidos,
oxigénio, sódio, etc. Aquém, por exemplo de várias semanas de fome, basta que
as células do coração não contraiam os seus músculos para que haja implosão do
organismo. Acima do limiar máximo, se dermos atenção à palavra ‘hemorragia’
(sangue que escorre), uma grande pressão pode provocar explosões vasculares,
cerebrais, coronárias, vasos que não aguentam mais. Entre estes limiares de
acontecimentos mortais, as pequenas repetições da homeostasia mantêm-se mais ou
menos em boa saúde, sob o imperativo constante: ‘é preciso comer!’.
55. Este imperativo é inerente às
unidades locais de habitação, famílias e instituições de emprego nas sociedades
modernas. O paradigma delas, o conjunto das receitas que dizem os usos dessas
unidades, que atraem (Kuhn)[57] e ligam esses useiros, pressupõe a
garantia da satisfação desse imperativo, pelo salário no caso das instituições,
como condição estrutural do laço que une cada um ao paradigma que pratica com
os outros, solidariamente sendo melhor satisfeito do que devendo desenrascar-se
sozinho. Trata-se de outra espécie de homeostasia, no dia a dia, em que os usos
são desenvolvidos de forma concertada e muitas vezes cooperativa, no sentido da
alimentação de todos e de cada um, da qualidade da habitação comum. E também aí
há dois limiares. De implosão por miséria ecológica, penúria, doença, fome,
falência, podendo levar à morte da unidade social. De explosão, se são
numerosos e com ‘vontades’ contraditórias (a abundância pode ser explosiva), se
o paradigma não suporta mais as fúrias, grita-se, choca-se, vem-se a agressões
físicas, em vez de se segmentarem e partirem uns tantos, podem-se matar mutuamente
de não se conseguirem deixar-se. Mas também aqui os limiares são mais ou menos
elásticos, as pequenas repetições seguem a sua rotina entre concórdias e
discórdias quotidianas, pequenas escaramuças e pequenas felicidades que não
chegam a fazer história. Mas não deixam de ter incidências na saúde, muitas
vezes o que se engole em seco intervém, por via dos grafos, nas químicas
neuronais que jogam na homeostasia sanguínea, é provável que as chamadas
doenças psicosomáticas seja por aí que se efectuam. Seja um acontecimento que
surpreende, que tira o fôlego, corta a respiração, faz bater o coração, acelera
o sangue, suscita reacções rápidas e intensas, por exemplo a cólera dum patrão
que explode e o empregado que implode tremendo de medo, as respectivas
homeostasias sofrendo em duplo laço. E se o medo se torna habitual, mesmo sem
acontecimento? O que é a saúde de alguém que tem sempre medo, só de ver o
patrão? E que saúde é a de quem entra em cólera várias vezes por dia?
56. Este exemplo do patrão e do
submisso pede para distinguir duas maneiras de perceber a relação de influência
de humanos sobre outros humanos. Chamemos ‘autoridade’ à relação que se
estabelece na aprendizagem entre o que já sabe usar e aquele que está a ser
iniciado ao paradigma: o destino desta autoridade é o seu apagamento enquanto
heteronomia, aquele que chegou à habilidade espontânea do uso, à sua autonomia,
não precisando mais, naquele ponto, de ser ensinado (em muitos outros, todos
aprendemos ao longo da vida, muitas vezes com mais novos do que nós). O que se
pode chamar ‘poder’ é uma relação que implica força unilateral que não busca
autonomizar mas manter-se como heteronomia manifesta, já que contraria
‘vontades’ autónomas. O poder é logocêntrico, a voz de quem manda endurece como
uma arma, um chicote, uma bofetada. Parece que duas hipóteses se colocam,
consoante o grau de autonomia ganho. Haverá quem encontre rapidamente limites
no saber fazer que aprende, que precise que lhe determinem o que fazer, que
pode revoltar-se contra o poder dum patrão mas terá que procurar outro para se
alimentar e haverá quem possa escapar para uma autonomia que valha economicamente,
a um patrão ou a um mercado. É essa aliás a situação das famílias nas últimas
décadas, os filhos são para abalar, pode-se divorciar. Ter passado duma situação
de poder do pai e marido a outra de autoridade destinada a desaparecer foi
aliás o grande triunfo das décadas 60 e 70 do século XX, o estertor do
patriarcado (que não do machismo) com a vitória do feminismo e dos
homossexuais. A diferença entre autoridade e poder diz-se claramente: a
autoridade é necessária como condição da doação de saber e de saber-fazer, é
para apagar-se, tornando-se o que aprendeu doador por sua vez que ensina; o
poder impõe como regra uma espécie de fronteira endogâmica e de usos, castas
criadas outrora pelas armas, sendo a escravatura a sua maior chaga, e classes
criadas hoje pelo capital, e em parte pela escola, fronteira essa que impede a
maioria dos submissos de lhe escaparem facilmente. Muito mais em tempos de
crise e de austeridade sobre uma maioria de inocentes não endividados. Donde
que bem estar e justiça relevem de homeostasias, de conjunturas instáveis incessantemente
a equilibrar.
A rotina contra as inovações
57 . Burocracia e rotina são dois
mal amados da modernidade que só quer coisas novas, a quem a repetição
aborrece. Por ignorância, é claro: se estivéssemos sempre a inovar, estaríamos
sempre a desaprender! Se aprender é ganhar habilidade espontânea em usos
sociais, deveria ser óbvio que actividades tão inócuas como andar ou dizer
frases que sejam entendidas por todos implicam uma repetição benfazeja, assim
como ninguém instala um negócio, uma escola ou uma família num apartamento sem
querer uma rotina diária do funcionamento de todos, o que mais se teme sendo as
desordens de autonomias desatinadas. Os paradigmas das unidades sociais
implicam a sua auto-reprodução e por isso uma necessária disciplina das ‘vontades’
autónomas. Mas são também as nossas espontaneidades adquiridas que são
condutoras dessas rotinas: toda a inovação tem sempre um lado desagradável, o
de se opor ao que aprendemos, ao que já temos por base segura do nosso saber e
saber fazer. É por isso que é sempre muito difícil conseguir qualquer tipo de
reforma que altere hábitos adquiridos de há muito. Esta ligação entre a
auto-reprodução do paradigma dos usos da unidade social e as espontaneidades
hábeis dos seus membros é constitutiva do duplo laço de cada unidade social, aquele que liga o que chamámos
o estilo de
cada membro, dos seus comportamentos, dos seus grafos cerebrais resultantes
justamente da aprendizagem dos usos dessa unidade social, e vai portanto enlaçar-se
com o respectivo sistema de mobilidade, por sua vez duplo laço com o do sistema
de nutrição entre sangue e células, e o destas enfim. Em cada um destes
diversos níveis, em que sempre um dos laços dum é laço do anterior e o outro do
seguinte, há pois uma articulação de regras e aleatório que permite ponderar
questões de interdisciplinaridade científica, embora de forma complexa. E qual
é o outro lado do duplo laço da unidade social? É o das repetições dos mesmos
paradigmas noutras unidades da mesma sociedade, laço tradicional de ordem política,
em sentido geral do termo, entre todas as unidades da sociedade, que tem como
efeito garantir mecanismos de coordenação entre as diversas unidades e enlaçar
duplamente os membros das unidades sociais indígenas do todo social: submetidos
ao paradigma da sua unidade e às regras do conjunto com as outras.
58. A questão agora é de entender
o jogo deste duplo laço. Quando Margaret Thatcher disse, repetindo uma velha
tradição nominalista medieval, que a sociedade não existe, apenas homens e
mulheres individuais, não só mostrava ignorar o que é que suportava a sua
posição política de chefe do governo britânico, como ignorava as próprias unidades
sociais, empresas e famílias (como repete o discurso económico) que prevalecem
sobre os indivíduos. É esta cegueira filosófica que se trata aqui de
ultrapassar de forma fenomenológica, isto é, atenta às próprias ‘coisas’, como
queria Husserl, e não endoutrinando com representações flutuantes. O que é
‘motor’ e ‘aparelho’ neste duplo laço que deixa de poder corresponder da mesma
maneira a um ‘mecanismo’, já que uma sociedade é a dupla unidade de múltiplos
mecanismos? Isto é, o que é que é motor social, fonte energética e alimentar
retirada do conjunto social e o que é que é aparelho social, que regula o seu aleatório
quando este se impõe como devendo ser ‘governado’ politicamente?
59. Em que é que uma tribo é
diferente de outra, suficientemente afastada para que não haja relações entre
ambas? Os seus usos alimentares poderão diferir consoante a ecologia, a fauna e
a flora de que se alimentem e as respostas culinárias encontradas e respectivas
receitas; as línguas em que estas são narradas bem como os mitos, quantas vezes
relativos justamente a esses usos alimentares, que justificam, quer a sua
origem ancestral perdida no longo tempo das gerações, quer a “lógica das
qualidades sensíveis” em que eles pensam (que Lévi-Strauss magistralmente
restituiu); a lógica ainda do sistema de parentesco e da respectiva troca de
mulheres entre famílias, baseada no interdito do incesto e na exogamia
consequente, que leva os rapazes daqui a irem casar ali e assim a tecer o
tecido social, impedindo que cada família se feche nos limites da sua própria
descendência. Em cada família, a mãe veio sempre de outra família, variando o
sistema de troca com a rapariga desta que foi cedida a uma terceira. E ainda os
dons que se fazem, tendo ou não reciprocidade garantida, gesto que estabelece a
aliança social como prioritária sobre o conflito[58]
e abre a rivalidade e a lei da guerra, um pouco como a fala que se oferece ao
outro como diálogo; em ambos os casos, esta doação elementar pode virar
rivalidade. Ora, esta comunidade de parentesco que troca mulheres, bens e
palavras, comunidade de usos sociais e de mitos e da respectiva língua em que
se entendem, é o laço politico da unidade tribal que subtende as formas de reger
o colectivo das unidades quando for necessário: em caso de conflitos entre
famílias ou clãs diferentes, em caso de guerra, de cooperação económica (caça,
pesca), casamentos e outras festas colectivas com repetição dos ritos de
solidariedade tribal, etc.
60. O outro laço pode ser
caracterizado, de forma sem dúvida paradoxal mas que revelará as suas
fecundidades, por uma expressão clássica, a ‘propriedade privada’ (fora, é
claro, de sentidos jurídicos ocidentais). Embora haja grande diversidade,
geográfica e histórica, nas maneiras de organização social, o primeiro termo,
‘propriedade’, indica a proeminência dos membros de cada unidade social local
no seu agenciamento, excluindo os das outras unidades. Mas esta propriedade é
tudo menos arbítrio ou capricho, já que os usos da unidade são, em geral,
equivalentes aos das outras, com variações empíricas que se procuram afirmar,
lá iremos, mas pouco significativas, no sentido em que esses usos, sendo comuns
e ancestrais, são a coisa de todos: é este comum que é ‘privado’ por cada unidade
social local, é a ‘parte’ do tribal de que ela se apropria. O termo ‘privada’
implica tanto a ‘apropriação’, e portanto apartamento, separação, estabelecimento
duma fronteira, como a ‘privação’ da comunidade em relação à qual essa separação
se faz: todas as unidades fazem o mesmo, apropriam por ‘privação’ do bem comum.
O que significa que ‘privada’ diz como a unidade social é retirada
estritamente do
conjunto comum, como condição de poder ter autonomia nos seus usos próprios,
entre os quais avultam nomeadamente os que chamamos ‘trabalho’ e que têm a ver
prioritariamente com a constituição biológica de cada um dos membros. Pode-se
pressupor como regra – de que as análises considerarão as variações de modelos
sociais, as excepções – que ao nível do laço ‘político’ não haja actividades de
trabalho propriamente dito, mas reuniões de deliberação ou equivalente, que o
trabalho de reprodução alimentar e social se realize nas unidades locais, ainda
que com aspectos comunitários[59],
e possa assim ser dito que essas unidades ‘retiradas’, ‘privadas’, são o
motor da
reprodução social. Enquanto que o carácter ocasional das actividades relativas
ao laço político, com a sua dimensão de resolução de diferendos ou de
excepcionalidade em relação ao quotidiano, permite dizer que este serve de aparelho de regulação do conjunto tribal,
o qual, ao longo da evolução histórica, se irá tornando cada vez mais complexo,
desabrochando no Estado moderno[60].
A lei da aliança e a lei da guerra
61. Que estas duas leis são
indissociáveis, percebe-se: a aliança de várias unidades sociais em seus
paradigmas, unidas pela trança das alianças de casamento e filiação,
assegura-lhes capacidade de defesa contra estrangeiros, a regra de repartição
delas sendo de ordem ecológica, consoante a fauna e flora que dê para se
alimentarem, o que diz o limiar de número de membros por unidade: acima dum
limiar ecológico, há que segmentar a unidade social em duas, afastando-as
convenientemente em função do que há para comer. Mas porquê são elas
inconciliáveis? Responder a esta questão, obriga-nos a voltar à aprendizagem
dos usos pelos que vão nascendo e crescendo, à questão do respectivo motor
feito de ‘pulsões químicas’ e ‘de grafos aprendidos’, como se disse. Algo tem
que ‘atrair’ estes pequenitos para aprenderem e virem a tornar-se adultos
segundo os usos ancestrais, o que não pode ser senão a ‘envie’, o desejo, a
‘vontade’ de serem como esses outros, de se tornarem ‘seres no mundo’ tribal como condição de
sobrevivência, de participarem do paradigma dos usos. Pode-se pensar que os
rituais e a recitação de mitos, que não têm aparentemente justificação
‘visível’ como têm as outras receitas, terão como função a afirmação da
repetição ancestral como lei de sobrevivência da aliança, face à lei da selva e
à ameaça de guerra por outras tribos, como sugere a resposta que em todo o lado
antropólogos e missionários sempre obtiveram dos indígenas a quem perguntaram
“porque é que fazem tal coisa?”: “porque os nossos pais e avós assim fizeram e
nos ensinaram a fazer”. Como se disse citando Kuhn (n. a § 51), os paradigmas
só podem funcionar porque atraem os seus membros para os usos respectivos que consistem
em fazer como os mais velhos, já iniciados, fazem. Ora, além da primeira e
biológica atracção que é a saciedade da fome desde o desmame, que marca a
passagem do ser-no-seio-da-mãe para se ser-no-mundo-do-paradigma, em breve
outra atracção se vai abrindo às ‘vontades’ de cada um que cresce: a de ter o
melhor lugar na unidade, mais tarde na tribo, ou pelo menos um dos melhores,
vontade essa que é sempre acirrada por castigos e prémios com que se marca a
diferença entre o bem e o mal, segundo os costumes da tribo. Ou seja, à
primitiva ‘vontade’ de ser como os outros mais velhos vai-se t juntando a de
ser-se melhor do que os seus pares em geração, em rivalidade nos usos que dão
mais nas vistas, que dão origem a narrativas em torno dos seus protagonistas.
Porque as ‘vontades’ tendem por elas mesmas ao excesso que os usos moderam;
fora destes, tornam-se ‘invejosas’ (em francês: ‘envies’ que se tornam ‘envieuses’),
cegas e agressivas. Estas rivalidades das ‘vontades’ jogam-se adentro das
unidades, sem dúvida, mormente entre irmãos[61]:
porque justamente essas ‘vontades’ atraídas pelo paradigma para se tornarem
adultas nos usos não lhe podem fugir, não têm para onde, a ‘força de atracção’
do paradigma concentra cada vontade nos lugares a ocupar dentro da unidade. Mas
também há rivalidades em relação às outras unidades da tribo, rivalidades essas
porventura muito mais fortes, já que elas são preciosas a cada unidade social
para reforçarem a sua unidade interna: o jogo de atracção do paradigma[62]
tanto funciona para dentro da unidade (aliança) como ‘contra’ as unidades vizinhas
(querer ser melhor do que elas), os conflitos entre elas sendo das questões que
mais obrigam a reunir o conselho dos anciãos para se tentar apaziguá-las, tanto
mais frequentemente quanto mais as tribos são pujantes.
62. Essa pujança, com a sua
relação com as ‘vontades’ rivais, assinala-se nomeadamente face às outras
tribos estrangeiras, que não partilham os usos, as mulheres, a língua. Como é
manifesto na seguinte citação do antropólogo francês Pierre Clastres que evoca
o silêncio do discurso etnológico recente sobre a guerra nas sociedades
primitivas, em contraste com a unanimidade, desde o sec. XVI, dos viajantes,
exploradores, missionários, comerciantes, estudiosos: “americanos (do Alaska à
Terra do Fogo) ou africanos, siberianos das estepes ou melanesianos das ilhas,
nómadas dos desertos australianos ou agricultores sedentários das florestas da
Nova-Guiné, os povos primitivos são sempre apresentados como apaixonadamente
dados à guerra; é o seu carácter particularmente belicoso que impressiona,
sem excepção, os observadores europeus. [...] o que é suficiente para
autorizar uma constatação sociológica: as sociedades primitivas são sociedades
violentas, o seu ser social é um ser-para-a-guerra” [63].
A partir do contraste entre “a guerra de todos contra todos” de Hobbes e “as
sociedades tribais como sociedades de troca de mulheres, bens e palavras” de
Lévi-Strauss, Clastres enuncia o que vale como lei geral das sociedades
humanas: trocas adentro das fronteiras e guerra com os estranhos estrangeiros
além delas.
Tendo em conta que também entre irmãos a rivalidade é a regra, a rivalidade de
quem quer ser considerado o melhor e o mais forte, pode-se dizer que a dupla
lei das sociedades humanas é a da aliança e a lei da guerra, a troca e a sua razão sendo o antídoto desde sempre
contra esta.
Hoje, restringida a episódios regionais enquanto luta armada, a lei da guerra é
racionalizada nas organizações desportivas como espectáculos de competição
sujeitos a regras e arbitragem mas alastra sem pejo no discurso da economia e
das finanças, em que a palavras chave é a competitividade. Mas as rivalidades e as
concorrências multiplicam-se por todo o lado em formas ‘micro’ de que romances
e filmes dão constantemente exemplos a que amor e amizade, pactos de aliança,
buscam obstar.
Química, lei da selva e lei da
guerra
63. Assim como a lei da selva,
relevando da necessidade da alimentação dos animais por outros seres vivos, tem
uma motivação bioquímica, a do ciclo do carbono (fósforo, azoto, etc), também a
lei da guerra assenta numa motivação antropoquímica, a do jogo hormonal das
‘vontades’ (envies) poder sempre transbordar dos paradigmas, a razão social que
busca a homeostasia das unidades sociais. Entre as duas leis há continuidade e
ruptura, o que apenas a (i)lógica dos duplos laços permite compreender: elas sempre
se enlaçam noutros da cena anterior como saída por cima, entrópica (Prigogine),
em situações pletóricas buscando nova estabilidade instável, nova homeostasia.
Com efeito, o sistema de nutrição dos animais, ao invés do das plantas, só foi
possível em seu duplo laço com o sistema da mobilidade, como se viu; com a mira
na sobrevivência na selva, o duplo laço acicatado pela lei desta, implicou a
necessidade de desenvolvimento de força muscular ou de astúcias tácticas. Os
primatas antropóides resultaram de ambos: as suas forças musculares
dispuseram-nos para o combate, mas, encontrando na selva mais fortes do que
eles, tiveram também que desenvolver astúcias, de inventar pouco a pouco usos
recorrendo à habilidade das mãos livres pela marcha bípede, livre também o
rosto para o multiplicar sonoridades para os dizer e transmitir por
aprendizagem. Assim a lei da selva radica no sistema da nutrição animal e a
da guerra no da mobilidade. Enquanto esses antropóides nossos antepassados estiveram sujeitos à lei
da selva, a continuidade lenta entre as duas leis fez parte da própria evolução
biológica, à maneira da etologia das outras espécies vertebradas: não creio que
haja na paleontologia que estuda os vestígios pré-históricos nada que possa ser
dito pós-biológico. Ora, a lei da guerra foi-se marcando pelos encontros mais
ou menos esporádicos entre tribos estranhas umas às outras em seus usos e
falas: estranho é estrangeiro, faz-se-lhe guerra para nos mostrarmos e lhes mostrarmos
quem é mais forte. Ainda hoje, nos bairros dos subúrbios das metrópoles, essa
lei vinga com frequência, como por todo o lado o alvor do desporto foi o dos
bairrismos e dos regionalismos em redor dos desafios entre vizinhos. Se
Clastres tem razão, trocas adentro e guerra para fora, não há que estranhar
que, dantes como agora, a atitude espontânea face ao estrangeiro não seja a da
hospitalidade, que permanece rara, mas a do querer combater e superar,
mostrar-se ser o melhor. Digamos que está nestas leis a razão forte da chamada
questão do mal ou da violência, da sua primordialidade por assim dizer
espontânea, devido às suas raízes químicas: ela é o caos de Hobbes, o bellum
omnium contra omnes, a que se opõe o motivo do paradigma como sua inibição, lei de razão (de aliança) de qualquer unidade
social, em prol da sua auto-reprodução; enquanto que, além dela, a troca, o
direito, a busca da paz foram, ao longo de toda a história dos humanos, o que
procurou sempre controlar tanto quanto possível a lei da guerra, sobretudo
entre rivais de dentro. Quanto aos estrangeiros, a única paz que foi possível
foi a imposta militarmente pelos impérios, a “pax romana” sendo exemplar, e nos
dois últimos séculos o comércio internacional como mudança de nível, da guerra
das armas para a dos capitais.
64. A ruptura entre as duas leis
de origem química poderá ser assinalada de duas maneiras. Por um lado, quando o
canibalismo deixar de ser razão próxima de guerra. Por outro e sobretudo,
quando a invenção da agricultura e da domesticação de gado se tornar na maneira
das sociedades humanas dominarem em boa parte a lei da selva, embora ao
provocarem fomes terríveis como sua consequência, põem muitas vezes em causa a
própria libertação conseguida da lei da selva (“da fome, da peste e da guerra,
livra-nos Senhor”, rezava uma oração dos camponeses medievais). Haverá indícios
dessa ruptura nos mitos religiosos que se transformam: de relação mais ou menos
totémica dos humanos com tais ou tais espécies animais à ruptura clara dos
humanos com elas, que se farão aliados divinos dos seus antepassados. Por
exemplo filosófico, o motivo grego e depois cristão de alma imortal é a
afirmação da quase divindade desta e da ruptura com a animalidade do corpo
humano, gerado e corruptível, obrigado a alimentar-se: superação mitológica da
lei da selva, em filosofias que não poderão facilmente deixar de continuar a
pactuar com a da guerra, embora buscando deslegitimar as rivalidades locais,
aonde a troca pode ser chamada à razão. Mas também a história das rivalidades e
dos ciúmes entre filósofos ou cientistas ou outros escritores e artistas
mostraram, e continuam a mostrar, como a lei da guerra permanece a lei das sociedades.
65. O duplo laço geral das
sociedades humanas é por um lado o paradigma de cada unidade social (que une os
seus membros nos seus usos e se inscreve nos seus sistemas de mobilidade como
estilo dos grafos aprendidos) e por outro o que une as diversas unidades como
aliança, solidariedade contra a lei da guerra. As trocas de mulheres e de bens
na mesma língua e seguindo os ritos e mitos ancestrais fornecem a base dessa
solidariedade que a lei da guerra obriga a sobrepor-se às rivalidades entre
unidades: indissociáveis e inconciliáveis, as duas leis.
66. Nutrição e mobilidade, esta
implicando defesa e segurança, são o par de sistemas na base dos usos das
sociedades humanas que os paradigmas das unidades têm para atrair os que delas
nascem e crescem, donde por regra não têm saída. O paradigma protege (sozinhos,
eles perdem-se diante da lei da selva) como lei da aliança social prescrevendo
o que têm que fazer para a sua auto-reprodução, mas também resguardando as
mobilidades de cada um, limitando-as. Praticamente, segundo creio, em todo o
tipo de sociedades humanas até há bem poucos séculos: mesmo as migrações para o
Novo Mundo, do Norte como o do Sul, foram de unidades familiares que se transpunham
enquanto tais. O que chamamos liberdade, tanto quanto sei da história da modernidade
antiga, do cosmopolitismo helenista e romano, só apareceu quando as casas,
unidades sociais das sociedades de dominância agrícola reunindo quer o
parentesco (mais os escravos ou a criadagem) quer a actividade económica, sob a
alçada do pai e patrão, a liberdade só apareceu quando essas casas se cindiram
em dois tipos de unidade social: as famílias que se limitam aos usos da
reprodução do parentesco, das gerações e da sua alimentação, por um lado, e as instituições
que empregam
segundo especializações cada vez mais variadas durante algumas horas por dia e
excluindo as chamadas ‘funções naturais’ de que as famílias se encarregam.
Entre estas instituições, a escola encarrega-se das aprendizagens sociais que
transbordaram das possibilidades das famílias (as casas transmitiam usos
agrícolas e artesanais em autarcia) e que as novas instituições tornam
indispensáveis. O que significa que as novas unidades sociais têm dois tipos de
usos e portanto de paradigmas e que cada um que nasça e vá à escola e depois a
um emprego com alguma especialização passa a pertencer a pelo menos duas
unidades sociais, a não ser apenas dependente de um pai ou de um patrão ou de
um marido, e a ter um salário (retorno da instituição à família por via do mercado)
que lhe garanta alguma autonomia em relação aos seus usos: foi esta situação
que gerou o indivíduo moderno e a sua liberdade relativa. Esta alarga-se a círculos
mais vastos, de amigos, vizinhos, colegas de escola ou emprego, novos duplos
laços mais instáveis do que os primordiais instituídos, mas enxertando-se neles
em cada indivíduo. Se tivermos em conta nestes laços as curiosidades de cada
um, culturais e outras, aquém da esfera propriamente politica das nossas
democracias, é destes enxertos, das possibilidades assim abertas que se faz o
que chamamos e prezamos como liberdade, tecida de cumplicidades e de rivalidades[64].
Da justaposição à
especialização, tanto na evolução como na história
67. Prestar atenção a um enigma
que diz respeito a ‘acontecimentos’ e dependem portanto de mecanismos em duplos
laços com autonomia relativa, como um carro na estrada ou um carnívoro buscando
uma presa, não significa que se consiga ‘explicá-lo’ na sua singularidade mas
apenas, e já será muito, esclarecer-lhe os limites, do lado das leis heteronómicas,
quer as constitutivas da doação (espécie e paradigmas), quer as da selva e da
guerra. As ciências não têm outra possibilidade, embora com a vantagem de poderem
contar com experimentação laboratorial mas sem nunca poderem predizer os
percursos concretos de tal ou tal ser vivo ou tal ou tal mecanismo social. Mas
tanto a evolução biológica dos organismos durante 600 milhões de anos, a maior
parte das espécies que houve tendo já desaparecido, segundo dizem os
entendidos, como a história de dez mil anos de sociedades agrícolas, foram
suficientemente lentas para tornar possíveis transformações que escapam às
capacidades de gerações que não chegam a uma centena de anos de observação.
Antes de interrogarmos a incidência possível dum terceiro sistema da anatomia
animal, o da reprodução sexual, nesse enigma dos longos tempos, detenhamo-nos
numa regularidade surpreendente que se repete em ambas as evoluções
enigmáticas; embora sem terem finalidade no sentido tradicional, ontoteológico,
revelam um sentido na passagem de seres menos complexos para seres mais complexos:
essa passagem é a dum princípio de justaposição dos elementos das assemblagens –
células dos organismos e unidades locais das sociedades – para um princípio
de organização especializada desses mesmos elementos nas formas mais complexas, sem
perderem estas totalmente o princípio de justaposição aliás. A predominância de
cada um destes princípios é clara na diferença que sublinhámos (§ 46) entre os
compostos minerais, feitos de moléculas todas iguais que se justapõem em sólidos como em líquidos e
gases, e os unicelulares, formados de moléculas especializadas com as suas moléculas de
carbono, hidrogénio, oxigénio e outras, extremamente mais complexas do que as
dos graves inertes e bem diferentes entre si, segundo as diversas
especializações de funções que tornam possível a sua existência e reprodução.
Ora, sucedeu que estes unicelulares evoluíram para colónias de celulares
equivalentes, segundo o princípio de justaposição, que permanece visível nos
anelídeos, vermes feitos de anéis iguais (excepto nos extremos), antes de virem
a conhecer uma anatomia de órgãos diversos, segundo os dois sistemas de
nutrição e neuronal de mobilidade. Entre estes dois tipos de espécies,
encontra-se uma outra, do tipo dos bichinhos da seda, que começam por uma forma
justaposta de anéis antes de sofrer uma metamorfose em borboleta anatomicamente especializada
em seus órgãos. Ora, o que sucedeu nos invertebrados repetiu-se nos
vertebrados, como as colunas vertebrais testemunham do princípio de justaposição,
enquanto que o fenómeno das metamorfoses das rãs assinala a passagem à
predominância do princípio da organização especializada. Pode-se aliás pensar
que os tecidos de células todas iguais obedecem ao princípio de justaposição e
os órgãos (de vários tecidos compostos) ao de organização, e ainda que um
cancro é uma espécie de desforra daquele sobre este, com perca da especialização.
68. O grande espanto consiste em
encontrar o mesmo tipo de princípios a estruturar a evolução histórica das
sociedades humanas. Com formas residenciais diferentes, as tribos pouco
complexas consistem na justaposição de unidades sociais geograficamente
distribuídas, mas estas, tal como as colónias de unicelulares, são
especializadas em seus usos diferentes ao longo dos dias e das estações. As
casas das sociedades agrícolas virão a conhecer uma dupla transformação das
suas correlações: por um lado de dimensão, entre as de camponeses e as grandes
casas latifundiárias, com seus escravos ou servos, com os senhores
reservando-se as funções de protecção militar e deixando as de nutrição à
população rural[65]; por outro
lado, as casas das cidades especializam-se em artesanatos diversos, em torno
dos embriões das primeiras feiras e mercados. A industrialização fracturou as
casas entre instituições, que generalizaram este princípio de especialização, e
famílias, que mantiveram o princípio de justaposição, embora com grandes diferenças
de estatuto social nos dois extremos das chamadas classes médias. Ora, as manufacturas
– de têxteis, por exemplo que, desde a Renascença, fizeram a transição do
antigo Regime predominantemente agrícola à industrialização –, justapondo
largas dezenas de trabalhadores manuais para obter um grande volume de
produção, foram por assim dizer as metamorfoses da transição entre os dois tipos de instituição
fabril. A grande transformação operada pela revolução industrial foi a de
sociedades à base de energia biológica (animal ou humana), estruturalmente em
termos de autarcia, a escola e o mercado sendo-lhes marginal, para sociedades à base de energias
produzidas e especializadas, formando uma inédita heterarcia que se foi estendendo, cada vez
mais especializada, à dimensão global actual. Ora, é-nos possível saber as
razões desta transformação social: a invenção de novos usos, o da máquina a
vapor e depois o da electricidade, que releva da quarta grande linha histórica,
a da inscrição ocidental, com início na antiga Grécia, na sua invenção da definição, e que será alvo de posterior
indagação. Este paralelo inesperado entre os dois princípios na linha dos vivos
e na linha das sociedades humanas permitirá uma pista para entender a evolução
biológica?
O sistema da sexualidade e os
duplos laços na evolução
69. O motivo dos duplos laços
tornou-se muito mais complexo nas espécies pós-metamorfoses assim como nas
sociedades contemporâneas. Teremos que encontrar um desvio para abordar esta
questão, em forma de hipótese fenomenológica. Se há um paralelo entre os vivos
e as sociedades, serão as células justapostas em tecidos mas com moléculas
diferenciadas em metabolismo especializado que farão parceria com as unidades
sociais justapostas igualmente nas sociedades antigas mas estruturadas
internamente em usos diferenciados; isto é, o paralelo dos ‘usos’ reenvia para
as ‘moléculas’ das células, paradigma social comparado com metabolismo celular[66].
Para tentar compreender a evolução, tomemos uma espécie animal qualquer. Tendo
em conta os três duplos laços que dissemos, se forem tremores da cena ecológica a
afectarem o sistema da mobilidade e a precipitarem modificações do organismo, a
questão é a de saber o nível em que essas modificações se podem fazer, não
parecendo óbvio que seja directamente o do metabolismo celular (como é
postulado na teoria das mutações, que lhe acrescenta o ‘acaso’) mas o nível
intermediário, o círculo homeostático que diz respeito ao conjunto do organismo
e faz duplo laço com as células especializadas. Com efeito, assim como uma
célula que se reproduz não o faz apenas ao nível dos cromossomas mas sim no seu
conjunto com o citoplasma e respectivo metabolismo em funcionamento, também a
transformação dum organismo que venha a ter incidências na espécie implica, de
cada vez, substituir um círculo homeostático por um outro um pouquinho
diferente que continuará a andar bem, sem que haja nenhuma razão a priori para excluir o jogo das oscilações
entre os três duplos laços, enlaçados uns nos outros. Para ter lugar, essa
substituição deverá contar, parece em boa lógica, com cumplicidades adentro do
círculo homeostático, que todavia não façam parte do seu funcionamento normal
nem das suas oscilações. Acontece que as hormonas esteróides da sexualidade têm essa estranha
lógica, de estarem dentro do sangue e de ao mesmo tempo pulsionarem para fora
do animal, para o outro do outro sexo, de terem origem no metabolismo (de
certas glândulas) e serem despejadas no “meio interior” em que a homeostasia é
regulada, escapando no entanto à economia da nutrição, já que a sexualidade é a
inversão desta, uma contra-economia, um desperdício desatinado. Com efeito, ao
invés de todas as outras células especializadas, estas glândulas não estão ao
serviço da alimentação de todas elas, formam outro sistema ao serviço da
espécie, em excesso em relação à sua lei fundamental de auto-reprodução. Se se
compara com o que se passa em espécies assexuadas – os vermes que, a certa
dimensão, se segmentam em dois mais pequenos, por exemplo, ou a hidra de água
doce ou da esponja que fazem sair de si por gemulação uma hidrazinha ou uma
esponjinha –, pode-se dizer que a reprodução sexual das espécies animais
implicou a invenção da morte (dos cadáveres), da bipolaridade fêmea / macho, da
filiação e da fraternidade e portanto do parentesco, das condições da
aprendizagem[67]. Foi uma
espécie de segunda invenção da vida, de que o resultado foi a imensa diversidade das espécies: com efeito, a
divergência parcial dos genomas fêmea e macho e o terem que se fundir para que
haja reprodução implica de si mesmo um mecanismo de variação que dificilmente
pode deixar de ter tido incidências na evolução. Ora, esta invenção contraria a
economia das
autonomias animais em que, ao invés das plantas e suas proliferações de ramos e
folhas, cada órgão tem lugar e dimensão determinados num corpo ‘pleno’ deles. A
sexualidade multiplica e esbanja gâmetas e forças atractivas para que uma
percentagem mínima se cruzem por acaso e proliferem.
70. Voltemos às hormonas
esteróides e às suas estranhas propriedades (§§ 37, 51). Sucede também segundo
J.-D. Vincent que as hormonas sexuais têm um papel decisivo na embriologia do
cérebro, revelando uma possibilidade de hormonas machas virarem fêmeas e
vice-versa, e ainda a possibilidade em certas circunstâncias de virem tomar
lugar no genoma para a síntese de enzimas (p. 294); têm também um papel
fundamental nas metamorfoses dos invertebrados e dos vertebrados. O que estas
propriedades bizarras sugerem é que, sempre que as modificações da cena
ecológica fizerem pressão para modificações dos organismos (sabe-se desde as
ilhas Galápagos de Darwin que as mesmas espécies evoluem diferentemente em
cenas ecológicas diferentes[68]),
haverá capacidade de a sua circulação do sangue receber essas hormonas e estas
virem a ter efeitos inclusive de síntese de novas moléculas, além de que também
os mecanismos de expressão genética e os próprios ribossomas podem ter
incidências dessas. Hipótese de leigo, ligando leituras diferentes e pensando
pela sua própria cabeça: o desperdício sexual seria recuperado.
71. Por outro lado, e aqui com
mais liberdade, já que não intervindo nos mecanismos biológicos, pode-se propor
um outro argumento para este papel do sistema da sexualidade sobre os outros três, a partir do facto de a ultrapassagem do curiosíssimo
fenómeno das metamorfoses ter tido como termo – tanto nos invertebrados como
nos vertebrados – a formação de espécies endogâmicas de maneira bem mais estrita do
que nas espécies menos evoluídas, como se a reprodução sexual, tendo entrado
muito cedo na evolução, tivesse acabado por fazer parte de certa maneira da sua
dinâmica, para além dos esforços permanentes de auto-reprodução de cada
indivíduo a favor de e contra a lei da selva. O que parece significar que,
quanto mais vai crescendo a variabilidade das regulações na cena ecológica,
tanto mais o genoma ganha em poder enclausurante no que tem a ver com os
acasalamentos reprodutivos. O que será um bom exemplo de efeitos de duplos
laços, um que alarga a diversidade e o outro que, indissociável e
inconciliável, a aperta. A este argumento junta-se um outro muito forte. No que
é difícil de evitar chamar o cume dos vertebrados, a evolução deu origem a espécies
classificadas como ‘mamíferas’, em que o sistema de reprodução das espécies,
até aí feito através de ovos postos no exterior, veio alojar-se no ventre e nas
mamas das fêmeas : esta revolução da anatomia e da fisiologia do sistema de nutrição
feminino pelo sistema (terceiro) da reprodução sexual não teria tido nada a ver
com as hormonas esteróides, pergunta o leigo ?
72. Tratar-se-ia
duma espécie de sublimação hormonal das esteróides, oh Freud! capazes de irem além das suas
funções específicas no sistema da sexualidade – um sistema além dos da nutrição
e da mobilidade, estes economicamente ao serviço da auto-reprodução, aquele,
excessivo, ao da espécie. Como se, nos intervalos dos cios, lhes sobrasse tempo
para outras funções do sistema da nutrição relativas às oscilações dos duplos
laços, como se, antes da psicanálise humana (e porque seria esta só humana?
embora não susceptível de interpretação discursiva), já houvesse ‘sublimações’,
isto é, deslocamentos das funções estritamente de reprodução sexual para outras
de nutrição (nos humanos é também
para a mobilidade), provavelmente desde a embriologia, onde parece que as
esteróides têm funções interessantes (como li algures, já não sei onde).
Sexualidade e fecundidade das
sociedades, os interditos na história
73. Ora bem, este excesso sexual
que produz gâmetas e pulsões para o outro do outro sexo muito mais do que o que
será de facto eficaz em termos reprodutivos, esta maneira de jogar com a
estatística e de reintroduzir o acaso na biologia que a invenção da célula
substituíra pela regulação genética do aleatório, este excesso – que na
generalidade das espécies mamíferas é regulado pela periodicidade do cio das
fêmeas, o qual desapareceu nas dos primatas – manifestou-se como fortemente
problemático nas sociedades humanas, como todos fazemos experiência e que desde
os alvores implicou necessidade de disciplinas da parte dos nossos
antepassados. Se é certo que a fome e a sede obrigam as unidades sociais a
diligências quotidianas e à invenção de artes de caça, pesca e colheita, se doença
e morte dos parentes e amigos provocam dores grandes, a sexualidade dos humanos
parece ser a sua única função biológica que não existe para tolher faltas do
organismo mas que é dela mesma afirmativa, excessiva além da própria
reprodução, já que sem sintomas dos poucos dias férteis das mulheres em cada
mês e não desaparecendo durante a gravidez nem o aleitamento: excessiva como
erotismo. Foi
este excesso que colocou questões às sociedades humanas que sempre tiveram que
lhe pôr limites. É certo que a razão de ser desse excesso é a fecundidade que a
sexualidade assegura, mas que assegura de forma não segura. A fecundidade é
esta coisa habitual mas extraordinária quando se pensa um pouco, de um par de humanos
(de animais, invertebrados também) poderem gerar outros humanos muito pequenos,
necessitando de serem alimentados e protegidos durante vários anos enquanto
crescem, de isso multiplicar esse par em várias vezes e de serem todos
relativamente diversos uns dos outros, como se vai verificando à medida que crescem.
74. Os duplos laços dos vivos,
das sociedades humanas, são, ao invés dos automóveis que nos ofereceram o
primeiro modelo para os pensar, o segredo dessa fecundidade. Eles são, na
fenomenologia que aqui se faz, a maneira de pensar a trace viva, o rasto derridiano. Ora,
fecundidade e crescimento do que nasce pequeno são o que sempre provocou o
espanto dos humanos, dos shamans, homens dos rituais sagrados, são a phusis, o poder dos vivos se moverem
por si mesmos, kath’autôn, segundo Aristóteles. Em termos heideggerianos, a phusis
(dos que
crescem, desabrocham), a natureza (dos que nascem), é a doadora por excelência da
fecundidade e do crescimento que esconde o seu poder para que eles sejam
possíveis em sua autonomia. Essa doação revela-se fenomenologicamente no par
que concebe e sobretudo na mulher que, grávida durante nove meses, ‘dá’ à luz o
bebé e o aleita ainda uns meses largos. Ora, é destes seres preciosos porque
fecundos que os vários clãs fazem doação uns aos outros, levas tu a minha filha
que outro me deu a dele: cada unidade social, em suas linhagens patrilineares,
tem no coração da sua fecundidade uma mulher vinda de outra linhagem, o que é
patente que acrescenta diversidade, novo patamar no que a sexualidade promove
desde a sua invenção até à das mamíferas. O laço social das sociedades
humanas desde sempre que se faz desta troca das doadoras fecundas: é a lição de Lévi-Strauss, o
laço social tribal primeiro é o da ‘troca de mulheres’, correlativa do
interdito do incesto. O que significa que essa doação das raparigas a outro
clã, lei de exogamia, implica que ela seja preservada no seu clã de origem, que
os machos deste (irmãos, pai e tios, primos paralelos) sejam interditos face a
ela do excesso pulsional que faz parte intrínseca da sexualidade; ora, este
excesso sendo quotidiano, também tem que o ser o do interdito, com o que tal
implica de disciplina, como a seu tempo se viu, que é necessária para a boa efectivação dos usos
que têm a ver com a nutrição e outros aspectos da habitação. Não custa admitir
que haja aqui algo como um deslocamento das energias pulsionais, para
brincadeiras de criança primeiro, para o ganho de habilidades depois com que se
fará a melhor figura possível diante dos outros, no seu clã mas também aos
olhos dos outros: a figura freudiana da sublimação jogar-se-ia aqui também. A sua
dimensão social manifestar-se-ia nas festas como excesso público de todos,
quase como o erotismo o é entre dois, em geral privado.
75. Antecipemos brevemente a história para
rematar este capítulo. Além do interdito do incesto, será praticamente
universal a condenação do adultério, nomeadamente onde não se admita o
divórcio. Na Roma do século III da nossa era, cultos de origem persa (maniqueus)
aliaram-se ao menosprezo platónico pelos corpos e seus prazeres, tendo contaminado
fortemente a moral da religião cristã que veio a impor-se um século depois. As
classes altas das diversas civilizações elaboraram etiquetas de disciplinação
das pulsões sexuais e agressivas, como conta Norberto Elias no seu O
processo civilizacional, no que à Cristandade medieval e Europa diz respeito, em que refere também
a civilização chinesa, história da criação do ‘super-ego’ moderno. Tratava-se
dos cortesãos que passavam temporadas nas cortes reais e o interdito do incesto
não jogava entre casais nobres diferentes. Esse ‘super-ego’ veio a revelar-se
fecundo no advento do feminismo, quando as mulheres invadiram os empregos aonde
até aí só havia homens e se tornou necessário regular as relações entre ambos
os sexos. Esta história moderna veio a encontrar condições de ligeireza de
civilização após horrores sem medida, trinta anos de abundância e segurança
social, assim como música à discrição, cinema e televisão, condições essas que
favoreceram uma espécie de desenlace no ano mítico de 1968, desde o Japão à
Califórnia passando pela França em greve geral de um mês, que rebentou com as
clausuras familiares e deu origem a um regime de relações mais livres entre
rapazes e raparigas, entre mulheres e homens, como também entre parceiros do
mesmo sexo. Após episódios históricos de libertinagem aqui e ali, este
desenlace pode aparecer então aqui neste contexto que prolonga a evolução dos
vivos na história dos humanos – como se se tratasse de teleologia! – como
remate desta tão longa história que vem desde a invenção da sexualidade, esta
conseguindo enfim fazer vingar como erotismo esta ultrapassagem da sua função
meramente reprodutiva. Não sem sombras, hélas!, já que parece ser o que, risco
e insegurança, suscita insurreições de puritanismos furiosos e amedrontados nas
zonas ortodoxas das civilizações monoteístas, desde os Tea Party aos pilotos
que destruíram as torres de Nova Iorque: virá daqui algo a desmentir a teleologia?
O laço social tribal e o dom
como festa (e rivalidades)
76. Voltemos à tribo, para
podermos restituir aproximadamente a sua maneira de se enlaçar socialmente,
enlaçando cada uma das suas unidades locais, as quais por sua vez enlaçam os
que nela nascem e crescem, como já se disse. Se se aceita a caracterização da
fecundidade da phusis como o que se manifesta como doação, esta reenvia fenomenologicamente para
os antepassados e seus deuses. Estes enquadram-se na relação entre o Céu – o
sol, a chuva, o vento, as tempestades – e a Terra desta tribo, em suas
fecundidades e dores, mormente a sucessão de mortes e nascimentos que institui
a ancestralidade que ensinou os usos que permitiram à tribo estar ali, onde
vive e como vive, a aprendizagem desses usos sendo o que faz dos que nascem e
crescem os humanos tribais adultos. Nós, modernos contemporâneos, também assim
fazemos, aprendendo nomeadamente na escola os usos que os nossos antepassados
nos legaram como o que melhor deverá contribuir para bem vivermos, a diferença
estando na complexidade das heranças e dos usos, das razões culturais que
substituíram os sagrados de outrora: seja dito para se saber apreciar a
validade antropológica do que nos parece usos, mitos e rituais obsoletos.
77. O que se recebe dos
antepassados, são as receitas dos usos e dos costumes, os mitos e os rituais,
mas também os bebés que nascem e crescem, nomeadamente as meninas. E é disso
que se faz dom entre clãs de que Marcel Mauss escreveu o famoso Ensaio sobre
o dom. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (1923) e hoje serve de
inspiração a uma escola de cientistas sociais[69]
que procuram esclarecer formas de dom em actividades de economia solidária, nas
margens do mercado e da redistribuição social pelo Estado, esclarecer também o
tipo de laço social que essa economia promove: trata-se aqui apenas de tentar
contribuir para este esclarecimento, mas sem competência antropológica para
intervir no detalhe dessa reflexão colectiva. O motivo de dom, como num qualquer ‘presente’ ou
‘prémio’ que se ofereça, antes mesmo dos seus aspectos institucionais – a liberdade
do doador e do que recebe, a reciprocidade que se pode estabelecer entre ambos
–, parece implicar que aquilo que se dá tem como objectivo próprio o prazer do que recebe e agradece, possa
ou não retribuir. Prazer que os usos quotidianos, em suas utilidades manifestas
e o esforço que implicam no dia a dia, não outorgam, isto é, prazer que vai
além do utilitário, que o excede (como o actual erotismo de que se falou). “O que eles
trocam, escreveu Mauss, não são exclusivamente coisas úteis economicamente.
Antes de mais, são cortesias, festins, ritos, serviços militares, mulheres,
crianças, danças, festas, feiras” (ed. francesa, 1971, p. 151). “Fenómeno
social total”, diz ele ainda, que diz respeito aos membros das várias unidades
locais, a toda a gente, como se se tratasse duma festa. As festas são, se se pode
dizer, maneiras de sublimação social das energias duma sociedade, implicando
sempre festim, excesso gastronómico da culinária quotidiana partilhado entre todos,
músicas, danças e ornamentos corporais[70].
Os rituais e récitas de mitos que acompanham as festas assinalam que o que se
dá releva de dom recebido, no contexto que se experimenta incessantemente da
contingência de tudo o que sucede, de bom e de mau. É dessa contingência da
fecundidade que a festa celebra os ritmos anuais, de que nunca ela se dá como
garantida: o festim manifesta os frutos de colheitas, caças, pescas,
transfigura por umas horas ou dias de prazer social de comer e beber o que
tantas vezes no quotidiano se revela penoso e decepcionante face à habilidade e
experiência postas em jogo.
78. Esta fenomenologia
antropológica da phusis em sua fecundidade[71]
– circuito de dons para efectuarem prazer nos outros, as festas manifestam que
as fecundidades são comunitárias (e não individuais) – não implica nenhuma
visão idílica dos primitivos, já que ela se pretende válida em suas linhas
gerais para qualquer tipo de sociedade e suas festas e solidariedades
manifestadas, não implica que as festas escapem à lei da guerra. M. Mauss
sublinhou o carácter antagónico do dom: quem dá – sempre por definição buscando
dar prazer ao(s) outro(s) – afirma-se enquanto capaz da maior doação, desafia o
que recebe a fazer maior dom do que ele, melhores presentes, maior festa e festim,
a ser o maior da tribo, em suma. A rivalidade habita no seio do dom, da
troca. Dom
recíproco, implicando sempre liberdade de dar e de receber mas também obrigação
social de retribuir sob pena de desconsideração social, desde o dom que, troca
das mulheres, estabelece a aliança entre os clãs que dão e os que recebem,
estes fenómenos de dom e troca exteriores a cada unidade local são a dimensão politica do duplo laço social que enlaça todas as unidades
locais (cada uma sendo o respectivo ‘motor’), o ‘aparelho regulador’ do
conjunto social manifestando-se também nas reuniões dos ‘anciãos’ ou ‘chefes’
de clãs para decisões colectivas, nomeadamente relativas à guerra com tribos
estranhas, com quem se não troca, não se faz festa (§ 62). Esta dimensão politica do duplo laço social, mais do que uma estrutura, com
o que tal noção implica de estabilidade no tempo, no ciclo das reproduções da
população, corresponde a uma conjuntura, no sentido em que oscila entre limiares, à
maneira das homeostasias, o duplo laço só sendo manifesto nas trocas concretas,
alianças e rivalidades, sempre excedido pelo empírico delas que com elas
oscila, com os seus agentes igualmente empiricamente excessivos em sua
contingência (como a língua nas falas e nos falantes), hubris de que os Gregos em suas
tragédias sabiam que era preciso precaverem-se.
O duplo laço da linguagem
tribal
79. Assim como o social é uma
nova maneira de enlaçar duplamente os mamíferos humanos entre unidades locais e
o global da tribo e suas trocas e dons, capazes de enfrentarem a guerra das
tribos estranhas, sem corte entre biologia e sociedade, também a linguagem que essas
tribos inventaram se enlaça na biologia da respectiva espécie, em dupla
articulação que o seu teorizador, o linguista André Martinet, soube entender
quando a propôs. O que esta fenomenologia aqui lhe acrescenta é mostrar como
essa dupla articulação é um duplo laço relevando do duplo laço social. As
‘palavras’ de qualquer língua são compostas de várias dezenas de fonemas (a que nos alfabetos
correspondem letras) que as gargantas humanas conseguem pronunciar facilmente e os ouvidos
distinguir, que substituem os sons inarticulados de outros primatas, ou seja,
que são retirados da cena da significação: simples por um lado, e não significando nada,
gratuitos de imagem ou dizer (tal como as letras), são articulados de forma imotivada
segundo as
línguas (que por isso são estrangeiras entre si) para formarem palavras dotadas
de sentido. É possível que tenha havido no longo tempo da invenção das línguas
pelos nossos antepassados uma época em que elas foram constituídas apenas por
palavras, como sucede a certo passo da aprendizagem infantil, mas é óbvio que a
capacidade da nossa memória cerebral em reter apenas alguns milhares de palavras[72]
limitaria fortemente as línguas se não se tivesse inventado a maneira de
articular essas palavras com sentido em frases (e estas em discurso ou textos
mais longos) que permitem às nossas memórias finitas falarem indefinidamente.
Temos assim linguagens duplamente articuladas, caso único entre tudo aquilo a
que se chama correntemente linguagens (números, músicas, mapas, desenhos,
tabelas, etc.): pelo lado da nossa capacidade fonadora e auditiva, os fonemas
fortemente repetitivos que as bocas dizem como voz são ex-pressão do que falamos, são o seu motor[73], pelo lado da nossa memória
neuronal, as palavras articuladas em frases e discursos são o seu aparelho gramatical (morfológico,
sintáctico e semântico) que adequamos muito rapidamente ao aleatório das conversas
ou situações de cena de comunicação, sem sequer termos consciência explícita
das regras morfológicas e sintácticas que aí se jogam (dispositivo aprendido na
área cerebral de Broca), apenas escolhendo as que têm um significado na cena
(substantivos, adjectivos, verbos e advérbios, na área de Wernicke). Trata-se
pois duma dupla ligação, dum duplo laço próprio de seres no mundo que enlaça o que fala com aquilo
que do mundo diz e com aquele(s) que o escuta(m). Ora, só podem ser ambos
enlaçados com o que do mundo é dito se, além do conhecimento mútuo das regras
da língua, houver um pacto de confiança naquele que ouve de que o que fala não
o está a enganar, não lhe está a mentir e portanto a ter outras intenções do
que as que se deduzem do que ele diz. O que chamei pacto de confiança não é
algo que tenha que acontecer de cada vez que se fala ou se conta uma narrativa,
ele não pode deixar de jogar em todas as ocasiões: é pois inerente à linguagem
duplamente articulada de qualquer sociedade que ela seja regida por uma lei
de verdade que
produz os seus efeitos desde a sua aprendizagem, os erros infantis sendo corrigidos
e as mentiras, quando implicam tácticas para enganar os que escutam, sejam
condenadas socialmente. Aliás, a mentira que tem parte com a lei da guerra, só
colhe se parecer verdadeira, confirmando pois a lei da verdade. Sem ela, a
linguagem seria inoperante, como o seria uma língua surrealista, contradição
nos termos. Num mentiroso ninguém acredita, ele nega a razão de ser da linguagem
enquanto laço social que torna possível o crescimento de cada um e a
solidariedade quotidiana. É na escuta dos mitos ancestrais que esse laço ganha
como que um carácter ‘transcendente’, sagrado, acompanhado de canto, parte
integrante da festa, da manifestação da fecundidade como alegria.
80. O facto de o sistema dos
fonemas (das letras na escrita) ser imotivado e fazer portanto palavras
diferentes das das outras línguas (com alguma diferença também das regras
gramaticais) e de ser ele que se inscreve nos grafos neuronais dos natos da
tribo tem um duplo efeito: por um lado, o de criar um laço comunicativo entre
todos os seus membros, de qualquer unidade social, de permitir que todos
compreendam o que cada um diz, que é relativo aos usos (receitas), mitos e
acontecimentos da tribo, por outro, o de tornar estrangeiros, estranhos
incompreensíveis, os das outras tribos, com quem se não troca nem se fazem
doações e festas, mas apenas guerra[74].
A cena da habitação destaca-se na cena da alimentação, a que pertence com todas
as outras espécies vivas, pela lenta invenção de usos e de linguagem para os
dizer, sem que seja possível decidir prioritariamente pelos usos ou pelas
receitas que os dizem e ensinam aos mais novos. Ambos são desenvolvimento de
capacidades de seres que se alimentam no mundo e têm que se defender de outros.
Todavia há uma diferença a salientar entre estas duas capacidades interligadas.
Os usos quotidianos – caça, colheita de plantas, culinária – implicam transformação
de coisas do mundo, da cena ecológica mas, supondo embora a sua aprendizagem
temporal, passam-se no ‘presente’ da situação dos humanos (do Dasein, em linguagem heideggeriana), no
seu mundo, de que fazem parte enquanto tribo de mamíferos. Enquanto que a
linguagem, que oralmente se passa igualmente nesse ‘presente’, tem uma
capacidade específica, que se pode observar quer nos mitos que se contam em
festas quer nos preparativos desta ou ainda nas aprendizagens: essa especificidade
é a de como que largar a situação ‘presente’ em que se fala e ouve para retrazer
um passado mais ou menos mitificado ou evocar uma futura actuação: tendo sempre
os pés e as mãos onde se está, poder trazer a narrativa do que já foi ou a
preparação do que se quer fazer. É a esta bifurcação dos humanos que falam e ouvem
que se chama pensamento (a que só os que conhecem a língua têm acesso), é a ela que se deverão as
futuras invenções da história, a esta maneira do duplo laço da linguagem como
bifurcação articular o passado e o futuro com o presente e ampliar assim as
possibilidades da tradição a ensinar. Sabendo-se contudo, como se disse atrás,
que a rotina da repetição hábil e espontânea, aprendida que foi, se opõe a essa
inovação.
A invenção da agricultura e a
nova fenomenologia social
81. Se nas sociedades tribais já
a guerra era lei, conjunta com a da selva, a disjunção das duas leis fez-se,
muto lentamente sem dúvida, com a invenção da agricultura e da criação de gado.
Em que é que consistiu esta invenção? Basta pensar na maneira como um jardim
abandonado se cobre rapidamente de mato para se entender a força expansiva da
lei da selva na sua vertente vegetal: é a esta expansão que a agricultura se
opõe, delimitando um território dado donde se eliminam as espécies agressivas,
ditas daninhas, e as que não apresentam interesse alimentar para a espécie
humana e para as de gado e onde se multiplica a fecundidade das espécies
alimentares em excesso muito além da que a lei da selva permitia; a mesma
lógica funciona na criação de gado, protegido, nomeadamente as suas crias, dos
predadores da selva e garantidos pastos às espécies herbívoras que servem, quer
de alimentação aos humanos, quer de auxiliar em tarefas agrícolas, de transporte
e de guerra. Foi esta disjunção das duas leis que abriu a cena da história, autonomizando-se esta no
seio da cena da alimentação. O que se pode prever, a partir da fenomenologia animal e tribal, como
lógica desta cena? Ela regerá por um lado as transformações das unidades
sociais, do seu par usos / linguagem, isto é, as transformações dos seus
paradigmas como laços do ‘motor’ social, e por outro as correlativas
transformações do laço político, do ‘aparelho regulador’ do conjunto dessas
unidades, do seu equilíbrio como conjuntura a modos de homeostasia, a qual
depende também das outras sociedades vizinhas, das alianças ou guerras entre
elas. Ora, estas transformações visam antes de mais a satisfação da dupla
economia animal: alimentação e defesa e segurança. A questão duma fenomenologia
histórica é a da reelaboração dos duplos laços sociais na revolução agrícola
das sociedades humanas.
82. Em que é que a ‘lei da
guerra’ é uma ‘lei’, em que sentido deste motivo? Num sentido equivalente ao da
‘lei da selva’ com o seu motivo bioquímico do ciclo do carbono (§§ 37, 44), que
explica fenomenologicamente a dinâmica dos animais que crescem, a dinâmica
evolutiva da cena da alimentação, sem nenhuma ‘transcendência’ que lhe cubra os
excessos incessantes (extinção de espécies, por exemplo do leigo). Também a lei
da guerra com o seu motivo antropoquímico (§ 63) explica fenomenologicamente a
dinâmica do que cresce na aliança da cena da habitação pela ambição de querer
ser o maior, o melhor, nos vários níveis, quer locais, adentro de cada
sociedade, quer entre sociedades vizinhas[75].
Mas nesta cena, ao contrário da anterior, em todas as sociedades humanas se
manifesta, de formas diferentes, é claro, uma estrutura que busca ‘transcender’
os excessos dessas rivalidades sem as anular, sujeita esta a uma outra forma de
‘lei’, em sentido moral ou legal corrente, a lei da verdade inerente à linguagem, que exclui
erros e mentiras das trocas entre os indígenas. É esta lei que permite a
colocação duma instância ancestral sagrada enquanto laço comunicativo necessário à reprodução social.
Relevando da espécie como geração e da aliança social, o estatuto desta ‘lei da
verdade’ é diferente do das leis da selva e da guerra, como se tivesse sido
inventada pela lei de aliança social para conter a da guerra: trata-se duma instância
de dever (aonde
se gerou o que os Gregos chamaram logos e também o que os Romanos chamaram ius) que impõe, através de mitos
repetidos em rituais ancestrais, a inibição dos excessos da sexualidade (o
interdito do incesto, estruturante social, como se disse) e de conflitos que
ponham em causa a reprodução do todo social, o equilíbrio conjuntural entre as
várias unidades sociais, os seus clãs ou aldeias: tanto excessos como inovações
são ameaças à repetição dos usos e costumes que mostraram a sua eficácia nesse
equilíbrio conjuntural conseguido. O sagrado ancestral, os efeitos presentes
dos ausentes mortos – as entidades imortais que os mitos contam –, a repetição
ritual vale como
regulação que demanda repetição dos costumes, inibe os excessos e os sacraliza
nas festas. Estas três leis permitem discernir a célebre tese da tripla função
das mitologias indo-europeias de G. Dumézil e os usos ou ofícios sociais
correspondentes: os ‘produtores’, atinentes à agricultura e ao gado, os
‘guerreiros’, atinentes à guerra, e os ‘sacerdotes’, atinentes à instância do
sagrado.
83. O ponto decisivo, que se veio
a revelar predominante até à época das revoluções, foi o da multiplicação das
fecundidades agrícola e pecuária ter ultrapassado as necessidades dos que
trabalhavam nesse domínio e tornado possível em consequência libertar energias
das unidades sociais para outros usos especializados, criando-se além do ‘campo’
– onde a lógica da Terra continuava a preponderar sobre a do Mundo (§ 8) – a
‘cidade’ em que esta especialização dos usos implicou uma relativa
preponderância do Mundo sobre a Terra. Aumento da população e extensão
territorial consequentes a este excesso de alimentação e à especialização
fragmentaram as antigas unidades locais residenciais, dando origem a novas
unidades sociais locais, as casas, em que à vertente do parentesco se acrescenta a da
respectiva actividade económica, com o que tal implica duma maior ou menor
estratificação social, consoante o ‘valor’ dessa actividade, que na agricultura
dependerá da extensão de terra cultivada e na pecuária do tamanho dos rebanhos:
a sua grande dimensão vai ser até à industrialização a base da riqueza, conseguida com grande número de
braços a trabalharem, escravos ganhos na guerra ou servos protegidos pelas
armas patronais. Mas a vertente do parentesco é primordial na estrutura da
casa, já que o seu património se transmite por herança de pai para filho (mais velho ou
seguindo outro tipo de regra), assim como herdado por aprendizagem é o
saber-fazer económico, mais claramente nas casas citadinas de artesãos, com
saberes especializados (cerâmica, metalurgia nomeadamente de armas, tecelagem,
construção em madeira e pedra, objectos de luxo). O nome da casa, transmitido hereditariamente, é
para ser honrado, o que implica nos seus membros o procurarem que esse nome
seja ‘invejado’, seja pela riqueza, seja por obras (vitórias militares) ou
memória virtuosa de cidadania. O regime da autoridade do ‘pai’ (família)
‘patrão’ (economia) será, provavelmente em todo o lado, o do patriarcado[76].
84. A tese da tripla função das
mitologias indo-europeias de G. Dumézil ajuda a pensar a maneira como os
diversos ofícios se ligavam entre si. Os ‘produtores’ predominantes são os
encarregados da reprodução vegetal e animal, que responde à necessidade da
alimentação e é o substrato da riqueza; ela depende das fecundidades, sujeitas
a secas, tempestades, doenças e outros factores aleatórios que os humanos não
controlam, por um lado, mas é cobiçada por outros, estrangeiros, o que implica
a outra grande função, de segurança e defesa assegurada pelos ‘guerreiros’, em
todo o lado a classe nobre, a quem cabe a defesa e segurança dos produtores e
suas fazendas; mas como há também uma classe nobre nas sociedades vizinhas e sempre
já uma longa tradição de guerras entre uns e outros, em que os que se
justificam pela defesa são também autores de ataque como retaliação, o que de
facto joga como motivação da nobreza é o excesso da luta, a busca da glória das
vitórias, as conquistas de riqueza alheia, de escravos, de vassalagem e
respectivos tributos, a afirmarem quais são os mais fortes. Entre vitórias e
derrotas, reinos e até impérios e suas derrocadas, não há outra lógica para a
história das sociedades humanas, a não ser a que, em função dela mas nas suas
margens, por assim dizer, emergiu com a invenção da escrita.
85. A terceira função, a dos
‘sacerdotes’ que velam pela memória do sagrado, reenvia às duas primeiras mas
acrescenta uma nova dimensão às duas que advêm de transformações da cena da
alimentação (nutrição e segurança), já que ela zela pela relação dos usos com
os antepassados que os transmitiram e com os seus deuses que, além da morte,
são Senhores do sol, da chuva e da
vida, que decidem da incerteza das fecundidades e das batalhas[77]: se deles se recebem os bens que
alimentam os humanos, são-lhes retribuídos em sacrifícios de animais, dom
contra dom. E assim como os camponeses são defendidos pelos guerreiros, também
dos sacrifícios sacerdotais recebem a crença que os liga aos outros camponeses
e guerreiros, se for certo que o sagrado continua a ser o lugar da festa e dos
festins.
86. O duplo laço de cada
sociedade complica-se assim. As casas, em sua actividade económica, quer
agrícola quer artesanal, têm o papel de ‘motor’ social, as inovações de ordem
técnica sendo lentas donde que, para cada geração que aprende os usos do
trabalho, estes repetem-se rotineiramente. Ao invés das guerras e suas
oscilações, das campanhas dos reis que saíam a combater na primavera[78],
sempre susceptíveis de inversão das relações com os vizinhos mas correspondendo
sempre a um excesso de energia que se joga no combate; também os guerreiros,
donde sai o rei como chefe político, zelam pela ordem e conflitos entre as
casas, cabendo-lhes a dimensão política do laço regulador. A sua outra parte,
por assim dizer a sua dimensão inscritiva, preconizada pela tradição ancestral,
era assegurada pelos sacerdotes.
87. Em sociedades em que a
energia nos usos de trabalho é de ordem muscular, de humanos como de animais
domesticados, a riqueza que diferencia as casas depende directamente da
acumulação de uns e de outros, bem como da extensão de terra. Ora, acumulação e
extensão conseguiram-se pela lei da guerra, por apropriação por via armada que
o direito real depois confirmará como propriedade hereditária (que o estatuto
militar da nobreza continuará a merecer), o que tanto corresponde ao interesse
dessa casa, em regime tendencialmente autárcito, como da casa real que rege o
conjunto das casas nobres, já que é do número e da força delas, dos exércitos
capazes de mobilizarem, que advém a força do reino face aos outros vizinhos. O
paradigma dos usos, o laço que enlaça os membros da casa, diferencia-se entre
os que relevam do parentesco pelo nascimento ou casamento e os que relevam das
tarefas de energia manual, de que os primeiros estão isentos por condição de
nobreza, na Grécia e na Roma da primeira modernidade como na Europa. Há assim
uma nova fronteira endogâmica, que agora não diz respeito aos estrangeiros mas
a duas castas sociais, a dos guerreiros e a dos produtores, que aliás também
separa as casas artesanais da cidade, servis de se servirem das mãos, das casas
da fidalguia. Esta fronteira de casta atravessa também o laço político, que faz
duplo laço com o do paradigma da casa, manifestando-se na praça pública pela
diferença de usos entre os elementos de riqueza nobre (vestimenta, carruagem,
criados) e os elementos populares das vilas, o código ético sendo expresso nas três
sociedades evocadas justamente pela oposição nobre / vil (vilão, ordinário,
vulgar). Reinos e impérios, sujeitos a oscilações de conjuntura mais ou menos lentas,
se a guerra não intervém sendo ritmadas pelas sucessões dinásticas, na
genealogia das casas que liga, também pela via da religião, os indígenas
actuais à sua ancestralidade.
A ‘pax romana’
88. O exemplo do império
romano é muito
elucidativo do jogo entre os duplos laços sociais, entre a vertente política e
a religiosa. O que tornou possível o império, como os que antes dele houve, foi
antes de mais o que se pode chamar a ‘modernidade antiga’, as transformações
dos usos técnicos e o respectivo desenvolvimento das cidades, alimentadas estas
pelos frutos do trabalho dos campos entregues sobretudo a escravos de
latifundiários, conquistados nas guerras romanas conduzidas com armas resultantes
dos usos metalúrgicos. A partir de César e de Augusto, os exércitos guardando
as fronteiras e os latifúndios, foi possível durante cerca de dois séculos e
meio um império de “pax romana” que são os próprios guerreiros que sustentam.
Mas enquanto que as casas camponesas pobres continuam fieis à religião romana
tradicional, a dimensão ‘crítica’ da modernidade dos usos citadinos atingiu a
eficácia da ligação inscritiva dessa religião cívica que foi sendo substituída
por numerosos cultos vindos do Egipto e depois da Ásia Menor, Síria e Pérsia
nomeadamente (Cumont). Ora, era ela que, juntamente com a administração e o
direito romano, enlaçava o conjunto que os militares sustentavam. O século III
anunciou a derrocada da estrutura imperial, a religião cívica tendo deixado de
enlaçar as cidades e os militares, como foi manifesto pela maneira como a
sucessão dinástica dos imperadores deu lugar a um frenesim de assassinatos que
não deixava o usurpador aclamado pelas suas tropas gozar muito tempo do poder
tão cobiçado. Diocleciano e Constantino foram os reformadores da administração,
repartindo o império em duas metades e tendo o segundo, iniciado um processo
que foi continuado por todo o século IV até Teodósio que substituiu a religião
moribunda pelo novo culto cristão com a sua exigência ética monoteísta, vindo
do mundo judaico mas helenizado bastante cedo. Este remendo do laço religioso
contribuiu para fazer durar a parte ocidental do império mais um século e meio,
mas a estrutura militar que aguentava o laço político, a produção económica por
escravos desabou, consequência adiada do fim das guerras e da conquista de
novos escravos. Foi então o novo laço cristão que, em torno dos bispos das
cidades, assegurou a parte da administração civil romana, com restrição do laço
militar a laços feudais multiplicados e simplificados. A longa época que se
seguiu até ao (re)nascimento da Europa criou um sistema histórico inédito, o da
Cristandade medieval, com um laço religioso acima das diferenças sociais de
línguas e costumes[79].
Ora, foi este sistema, supondo a conservação parcial de antigas tradições
gregas e romanas, que explica a novidade em fenomenologia histórica que será a
Europa, pelo que somos obrigados a interrogar a formação, na Modernidade grega
antiga, duma cena filosófica de inscrição com a autonomia relativa da sua
escola na cena da habitação, sem a qual a Cristandade teria sido impossível, o
culto cristão teria sido engolido pelo desabar da pax romana como foram os
outros cultos espirituais.
A invenção da definição, isto
é, da cena filosófica da inscrição
89. A especificidade da escrita,
entre os vários usos especializados inventados pelas cidades, é a de buscar
reproduzir de alguma maneira a linguagem oral e suas regras de forma a poder
enviar mensagens para longe e conservá-las para mais tarde, juntamente com os
métodos de numerar quantidades e de fazer cálculos. A sua especificidade é a de
radicalizar uma possibilidade das línguas orais, que pela sua aprendizagem e
portanto memorização, podem mover-se na topografia e no tempo, cortando pois em
parte com o seu contexto de aprendizagem. A escrita com efeito corta, pela sua
eficácia mesma de durar e poder deslocar-se além do lugar e momento da sua
inscrição, corta com um dos ramos da bifurcação da linguagem (§ 80), aquele que
está vinculado à situação ‘hic et nunc’ do escrivão ou escritor. A hesitação
entre estas duas palavras diz de outra maneira esta possibilidade nova: alguém
pode ditar a outrem aquilo que quer que seja escrito; sendo a regra dos
primeiros tempos, em que escrever é um artesanato especializado de escrivães
(escribas), é num estádio prévio à própria inscrição que a ruptura se faz entre
o autor, quem diz o que há de ser escrito, e quem escreve. A bifurcação
quebra-se no envio ou na conservação do escrito longe do autor: o texto
escrito, ensinou-nos Derrida, rompe enquanto tal com o seu contexto de escrita,
com as ‘intenções’, por exemplo, que não se manifestaram no que foi escrito mas
lhe estavam ligadas no seu pensamento: foi por isso que Platão no Fedro condenou a escrita, enquanto
‘traição’ ao logos do pensador, irresponsabilidade do texto na ausência do escritor, que
aliás pode ter morrido entretanto. Ora, nos meados do primeiro milénio antes da
nossa era, esta capacidade de ruptura da escrita manifestou-se no surgimento em
vários lados – Zaratustra na Pérsia (sec VIII), Lao-Tseu e Confúcio na China
(sec. VI-V), Buda na Índia (sec. VI-V), os Profetas em Israel (s. VIII-VI),
também Heraclito, Parménides, Pitágoras, Sócrates na Grécia (s. VI-V) – de escolas
de exercícios espirituais[80], digamos assim, em torno dos
textos dum Mestre que rompera com os usos dominantes, religiosos inclusive, da
sua sociedade (riqueza, glória da guerra, luxos da mesa e do corpo) e propunha
outras intensidades para o viver, a sabedoria, a temperança, a virtude, um
misto do que chamamos intelectual com o que chamamos espiritual.
90. Sócrates foi pois um deles, inventou
a definição que
Platão e Aristóteles desenvolveram em seus textos, o primeiro limitado a
questões de politica e ética, o segundo voltado também para a elucidação das
coisas da phusis, esse espanto de os vivos nascerem, crescerem, aprenderem, morrerem. A
escrita alfabética, que os Gregos receberam dos Fenícios (actual Líbano)
acrescentando-lhe as vogais, tem a grande vantagem de transcrever os sons
elementares em letras e desposar assim a dupla articulação da oralidade,
permitindo facilmente que se leia um texto em voz alta e que se o dite. O que é
que a definição acrescenta ao duplo laço da língua, da escrita alfabética? Esta
im-prime as
letras como ‘motor’ (como mostra o teclado dos nossos computadores, em que
jogam os nossos dedos) desfiando as frases em suas regras (‘aparelho’
gramatical) segundo o aleatório do texto a escrever, da sua relação ao que
recolhe da realidade para que alguém, longe ou mais tarde, o possa ler. Não dispondo
senão de poucos milhares de palavras para escrever indefinidamente, além das
regras morfológicas sobretudo dos verbos (modos, tempos, vozes, pessoas,
aspecto, número), as falas e as escritas jogam com as diferenças do contexto
interno das frases para multiplicarem sentidos das palavras principais, nomes e
verbos, sem que essa polissemia, corrente também na oralidade, gere confusão nos que
ouvem ou lêem narrativas ou discursos. E os discursos ou textos com
preocupações oratórias ou literárias trabalham retoricamente essas polissemias
em ordem a acrescentar beleza ao que dizem ou escrevem, por vezes com alguma
perca de clareza pelo destinatário. Ora bem, o primeiro alvo da definição foi
justamente esta perca de clareza: ela procurou reduzir a polissemia como
ambiguidade lógica, e para isso cortou radicalmente com a morfologia verbal a
que se aludiu: só a cópula é /são é retida[81]
como ligação entre o termo a definir (sujeito) e a definição (predicado), S é P
(o homem é mortal; todos os homens são mortais, as mulheres também). Além da
morfologia, essencial em literatura, também se eliminam os índices deícticos
(eu, tu, aqui, agora, este, etc.), formas que reenviam para o contexto da
enunciação, o que permite eliminar a circunstancialidade da escrita da estrutura
do texto gnosiológico, relativo ao saber (filosofia, ciência, lógica);
tornam-se assim os termos definidos intemporais, sem lugar, impessoais:
essências, conceitos, ideias, capazes de conhecimento perene além da
circunstância em que o escritor pensa.
91. O alfabeto não é alvo
suficiente para se compreender porque é que a cena da inscrição se autonomizou
da da habitação, quando não parece que isso tenha sucedido com a literatura
narrativa, as epopeias, tragédias e outras formas poéticas e retóricas. Este
tipo de textos responde directamente a preocupações da cena da habitação,
embora de uma forma diferente, mais elaborada e festiva, do que as receitas de
usos técnicos ou a linguagem quotidiana, um pouco à maneira dos mitos e da sua
actualização em rituais por ocasião de acontecimentos ou comemorações solenes.
Sendo as mais importantes socialmente em forma de narrativas – acontecimentos
com os seus personagens e acções em dados lugares e momentos –, por mais longas
que sejam, elas supõem um começo e um final, em relação com a sociedade em que
foram escritas e lidas e que venera o respectivo autor, sem outro duplo laço do
que o que diz respeito à linguagem que se lê em voz alta e à escrita
alfabética. Não assim a definição. Uma essência definida é dotada duma
fronteira (fines, em latim) que a isola do seu contexto textual, da argumentação que sobre
ela e outras também definidas o texto desenvolve em seu pensamento lógico que
se procura, relativamente aleatório: isto é, um pouco como os provérbios na
linguagem popular, a definição é para ser repetida estritamente em qualquer momento do texto e
de outros textos, para ser transmitida tal e qual sem alteração de saber na
respectiva instituição, na escola que escreve, lê, comenta, discute os textos
gnosiológicos intemporais, os transmite de geração de mestres em geração de
discípulos. Enquanto que, comentados e debatidos, os argumentos, lugar do
pensamento e do conhecimento teórico das ‘coisas’ definidas, são por assim
dizer o ‘aparelho’ escolar que se vai adequando às questões tratadas, algumas
eventualmente novas na sua colocação quando a história se altera, pedindo novas
definições porventura (este duplo laço coloca-se pois adentro da textualidade
gnosiológica, é inerente à cena da inscrição). Em princípio as definições não devem ser alteradas
no seu quadro diferencial sem ruptura de paradigma. Ou seja, o quadro das
definições, inibindo os efeitos de polissemia, é o que estabiliza o paradigma
filosófico ou científico, o que é retomado de mestres em discípulos como
‘motor’ histórico além das gerações, sem dúvida porque elas são a garantia da
intemporalidade do saber, reduzindo, inibindo a vertente ‘significante’ ou
‘literária’ do texto, a rica morfologia da língua[82],
para não reter senão o sentido, o ‘conceito’, a ‘ideia’, em suma o pensamento, como se se tratasse duma única
articulação, tal como é a da escrita matemática (por isso a geometria foi tão
cara ao fundador da Academia, ela que escapava ao seu logos). Paradoxo da filosofia: logocentrismo, escreveu Derrida, o discurso do
logos
reduzido ao pensamento inteligível por esta dissimulação da escrita, da tinta sensível de riscos que permanecem,
dissimulação do gesto histórico de escrever pelo privilégio do pensar da alma,
o paradoxo consistindo em que os filósofos foram contudo sempre escrevendo e
por isso os seus pensamentos transmitidos, a escrita deles denegava-lhes o pensamento
sobre ela mesma.
92. É certo que foi precisa uma
longa história para que do ‘pensamento’ grego e do ‘eidos’ platónico se
chegasse à ‘ideia’ clássica europeia, história essa que se jogou na oscilação
dos debates entre a posição platónica e a posição aristotélica, e que tentei
delinear noutro lado[83].
Platão, depois de o Crátilo retirar à linguagem a capacidade de conhecer as coisas,
colocou os definidos como Eidê, Formas ideais celestes imutáveis (que as almas separadas
contemplam) a que correspondiam as coisas terrestres contingentes, geradas e
corruptas como os corpos. Aristóteles criticou fortemente essa separação entre
as coisas e as respectivas essências, tendo-as feito coincidir nas Categorias numa só ousia, a primária (‘substância’ da
coisa, aquém dos seus ‘acidentes’ particulares) e a secundária (sua ‘essência’
comum com outras da mesma espécie)[84],
a separação dualista da alma e do corpo desfeita no hilemorfismo. No entanto,
uma vez que Atenas clássica ignorava as línguas bárbaras e portanto a tradução,
não retendo senão os ‘nomes’ e as ‘coisas’, os efeitos da definição sobre as
palavras das línguas só lentamente foram sendo explicitados, podendo
resumirem-se três etapas. No helenismo, o bilinguismo estóico elaborou o motivo
do signo, essencial para traduzir, acrescentando aos nomes e coisas o lekton, o significado do nome que só os
indígenas da língua conhecem. Os Medievais, lendo e discutindo apenas em latim,
disputarão entre Realistas e Nominalistas se as essências das coisas estão
nelas (posição aristotélica) ou apenas na língua mental (Occam), posição esta
que, sob influência da filosofia árabe, gerará o ‘conceito’. Que as línguas
vulgares tenham irrompido na escrita filosófica, sem dúvida que contribuiu para
que o matemático Descartes, escrevendo também em francês, aliado do platonismo
e criticando o aristotelismo, isolasse a ‘ideia’ e estivesse na origem dos
debates em torno das representações subjectivas típicas da filosofia europeia,
entre ‘idealistas’ defendendo o dualismo e empiristas que o refutam e buscam
fazer a construção ‘mecânica’ (à Newton) do conhecimento dos sujeitos,
mantendo-se assim, sem se darem conta, no dualismo entre sujeito e objecto
que as representações (mentais) buscam unir.
A teologia cristã com motivos
filosóficos
93. Nesta história do pensamento
greco-europeu, interveio também o Cristianismo de origem judaica que foi
helenizado precocemente pelo platonismo de Alexandria, mormente pelo filósofo
cristão Orígenes (185-253) que reduziu radicalmente o que chamou ‘sentido literal’ das
narrativas bíblicas para reter como “digno de Deus” apenas o sentido
espiritual, aquele que se prestará a ser trabalhado pelos motivos platónicos
que predominarão na teologia cristã, nomeadamente no mundo latino de Agostinho
de Hipona, até Tomás de Aquino, enquanto que a antropologia hebraica das
narrativas bíblicas ficou confinada à liturgia. Não tendo nunca trabalhado o
detalhe da descendência do texto teológico de Orígenes nos chamados Padres da
Igreja do século IV, limito-me a sugerir que os dogmas ou definições dogmáticas que os
concílios propuseram, utilizando termos filosóficos gregos – por exemplo, a
Trindade definida como uma substância ou essência (ousia) e três pessoas (hypostasis) –, tiveram na teologia um papel
equivalente ao das definições em filosofia, o de, estritamente repetidas, serem
o ‘motor’ histórico das discussões sobre a argumentação, ‘aparelho’ que vai se
adequando às circunstâncias históricas e questões, as chamadas ‘heresias’, por
exemplo, que vão surgindo das releituras bíblicas. O que é de relevar aqui é
que o que a tradição cristã chama ‘teologia’ é tecido de motivos filosóficos,
onde se manifesta inevitavelmente a preponderância do filosófico sobre o dado
bíblico judaico litúrgico no aparelho eclesiástico e suas oscilações ao longo
da história ocidental do pensamento, Aristóteles tendo vindo a substituir
Platão nas universidades medievais. Nestas, que estiveram na génese da cena da
inscrição gnosiológica europeia por vir, filosófica e científica, os mestres
são clérigos e, ainda que capazes de precisarem a diferença entre os dois tipos
de discurso que cultivam, o metafísico e o teológico (em que a Physica de Aristóteles ficou como que
apagada), é muito provável que a contaminação dos motivos filosóficos que
jogavam num e noutro seja indescernível[85].
Percebe-se assim que, quando se tratou de procurar autonomia em relação à teologia
dominante da Escolástica, a redescoberta de Platão vindo ‘criticar’ o aristotelismo
tenha tido efeitos inéditos nos discursos clássicos do século XVII, tanto a
nível filosófico como científico: foi então entre estes dois registos que houve
contaminação, trata-se de filósofos que também são frequentemente cientistas e
já não clérigos por regra, nem sequer a maior parte das vezes professores
universitários.
94. O que é que possibilitou
estas contaminações? A especificidade das instituições de escrita – tanto a
escola como a sinagoga e a igreja cristã são unidades sociais – é a de se
justificarem por usos em torno da escrita e leitura de textos e da respectiva
transmissão de geração em geração, através já não de pais para filhos mas de
mestres para discípulos: estas instituições excluem delas mesmas o parentesco
que estrutura as casas, juntamente com as actividades económicas agrícolas,
artesanais, comerciais. Mas enquanto unidades sociais são instituições da cena
da habitação: o predomínio da escrita sendo também o de talentos ou vocações
para as questões dos textos, pode-se justificar a diferença delas para as casas
e seus parentescos (que articulam a cena da alimentação – phusis ou natureza – com a cena da habitação),
pelos termos que escolheram para dizer o ‘além’ da escrita em relação à natureza,
em latim ‘sobrenatural’, em grego ‘metafísica’. Como se ‘sobre’ e ‘meta’
dissessem tanto a articulação como a ruptura entre a cena da inscrição e a da
habitação. O
laboratório científico vai inovar neste ponto: o lugar essencial da
experimentação nele, a ‘mecânica’ por exemplo newtoniano, marca-o de algo que
releva da habitação, de instrumentos de trabalho ‘mecânicos’ que provocam
movimentos a serem medidos por instrumentos ‘geométricos’. Em geometria há
‘medida’, mas também números e cálculos, operações aritméticas. Se Platão
exigia o conhecimento da geometria aos seus académicos, é porque, com os seus
algarismos e desenhos, ela escapava à dupla articulação da linguagem e às suas
ambiguidades polissémicas, o que lhe conferia exactidão, relevando da utilidade
das medidas e cálculos geométricos nas construções da cena da habitação, mas
também a excluía da filosofia e do logocentrismo. Ou seja, a cena da inscrição
é desde o seu alvor lugar de contaminações entre tipos de escrita diferentes, e
é onde se distingue da cena da habitação a que a escola e a igreja todavia
pertencem enquanto instituições sociais. Tal como na língua segundo Saussure,
na cena da inscrição só há inscrições, nem sequer os riscos gravados ou os sons
das vozes que lêem ou discutem, mas apenas as suas diferenças e repetições.
Quando Euclides redige os seus Elementos, uma primeira aliança entre filosofia aristotélica
e geometria vem oferecer a esta um duplo laço teórico com os seus axiomas como
‘motor’ e argumentos de teoremas como ‘aparelho’, isto é, a possibilidade de se
historicizar como e com a filosofia. O que dissemos da universidade medieval é
suficiente para se perceber como nela escola e igreja se fecundaram mutuamente:
o próprio aristotelismo oferece uma lógica capaz de vir a ter efeitos de
autonomização relativa dos dois tipos de discurso filosófico e teológico quando
a impressão de livros veio juntar-se ao desenvolvimento das cidades,
manufacturas, comércio, descobertas geográficas e etnológicas e a tornar
possível, tanto a quebra da cristandade devida à Reforma e à sua proposta do
livre exame da Bíblia, como o novo cepticismo quer sobre a teologia, quer sobre
as coisas a conhecer que os textos lidos e comentados na universidade ignoram,
abrindo ao conhecimento por experiência além da autoridade dos Antigos.
Acrescentem-se as gramáticas que se vão formulando das línguas vivas e a substituição
paulatina do latim na escrita para se perceber como tiveram razão os seus
contemporâneos para falar de Renascimento: era a Europa moderna que nascia,
dava os seus primeiros passos, cultivava a dúvida como método de renascer
Renato. O laboratório será a primeira saída do logocentrismo, sem que os
próprios cientistas o saibam, porque se é certo que só eles sabem do que se
passa dentro do laboratório, acontece-lhes não saberem o que levam de filosofia
nas suas teorias quando nele penetram.
Depois da definição grega, a
invenção europeia do laboratório científico
95. Comecemos por uma distinção
quanto aos duplos laços das Ciências. Tal como no da Filosofia, há que fazer
uma distinção, enquanto elas são instituições sociais (escola e laboratório),
na cena da habitação, e enquanto
são textuais, na cena da inscrição. As inscrições, enquanto efectivadas
– receitas de usos, falas e textos, problemas de matemática, músicas e imagens
de cinema, e por aí fora –, são parte estrutural da cena da habitação, só se
autonomizaram historicamente como cena da inscrição na medida em que deram
origem a instituições específicas, a escola e o laboratório, que vieram a
revelar efeitos fortes de retorno sobre a cena da habitação, bem como sobre a
da gravitação e a da alimentação, efeitos esses resultantes da sua lógica
inscritiva própria, das definições, argumentações, experimentações,
teorizações. Foi o que lhes deu movimento histórico específico, de ordem técnica,
mas também económica, civilizacional, politica, sem que eu saiba dizer se e
como a literatura, a música, as outras artes têm também a sua especificidade na
cena da inscrição, em autonomia e em relação com o que privilegio aqui como
saber ocidental. É neste sentido que me parece dever ser retido o papel das
definições como inibidoras do sentido de certas palavras, bem como o das
equações físicas laboratoriais e seus motivos teóricos, como dando ‘movimento’
histórico, o chamado progresso do conhecimento, de que terão sido o ‘motor’ das
argumentações ensinadas e divulgadas que permitiram aos alunos e leitores
compreender aspectos significativos das lógicas das quatro grandes cenas. As
ciências europeias definem-se a partir do respectivo laboratório que é, tal
como a escola, uma instituição social[86],
uma unidade local da cena da habitação (as unidades fazem rede entre elas e com
os departamentos em que se ensinam) cujos usos não têm directamente uma
finalidade da cena da habitação (como as fábricas e as lojas, por exemplo) mas
de inscrição na cena que foi aberta enquanto cena histórica[87]
pela invenção da definição filosófica e do texto gnosiológico. Como qualquer
outra unidade social local, um
laboratório consiste por antonomásia num paradigma de usos (o motivo foi inventado por Kuhn
para ele), transmitido de geração em geração e sujeito a “revoluções
paradigmáticas”, paradigma esse em que o ‘motor’, que lhe dá força, movimento,
consiste nos gestos dos cientistas e auxiliares e respectivas técnicas de
experimentação e de medição de movimentos, os quais gestos e técnicas se
repetem em investigações diferentes; o paradigma destas – programas específicos
de descobertas, de busca de solução de “puzzles” (Kuhn) – é o “aparelho
regulador”, adequado não apenas à disciplina científica do laboratório mas
também à mobilidade histórica das suas questões nos diversos laboratórios, tal
como ela se vai explicitando na respectiva bibliografia, artigos, livros e
teses, deixando como rasto dessa actividade os manuais que funcionam no ensino
liceal e universitário. Enquanto instituição social, e tal como as outras
instituições em geral, os laboratórios relevam quer de interditos sexuais
durante o seu funcionamento (o assédio sexual tornou-se um delito), quer de
rivalidades entre investigadores quanto à consideração do lugar ocupado por
cada um e respectiva avaliação, o que implica a necessidade, para ter em conta
as exigências do paradigma de conseguir a solução dos puzzles, de deverem ser contidos
na complementaridade do trabalho de equipa estes efeitos internos da lei da
guerra, que por regra se traduzem mais visivelmente nas rivalidades entre
laboratórios diferentes, entre diferentes universidades.
96. Começando pela primeira das
ciências europeias, passemos agora à consideração do laboratório científico
enquanto tendo incidências de conhecimento na cena da inscrição. A primeira
observação a fazer, de ordem geral, é sobre a continuidade e a diferença entre
ciências e filosofia. A continuidade tem a ver, no essencial, com a maneira
como as ciências herdaram a definição da filosofia, ao ponto de os mais
importantes físicos do século XVII se considerarem filósofos, se inscreverem
como herdeiros da filosofia da natureza, da Physica de Aristóteles: também elas
necessitam de definir sentidos exactos, únicos, para as palavras chave do
conhecimento que pretendem. Mas ao especificarem a ‘natureza’ como o domínio da
filosofia de que se ocupam, regionalizando esta, já afirmam alguma ruptura com
o que virá a chamar-se ontologia, epistemologia, estética, ética, com outros
domínios que se delimitarão como filosóficos relativamente autónomos e de que
elas, ciências, se abstêm, inclusive incapazes, enquanto ciências, de se tomarem
a si próprias, à sua actividade, como domínio seu, que o será da futura
filosofia das ciências. A razão de ser desta auto-delimitação da actividade
científica, de forma negativa, como abstenção, não é senão o avesso da alteração
paradigmática positiva que o termo laboratório sugere: ao ‘escritório’
filosófico que define, a ciência acrescenta na sua estrutura um outro tipo de
inscrição que designa como ‘labor’, como trabalho, a que, além da ‘geometria’
que mede e calcula, Newton chamou ‘mecânica’, tendo a ver com movimentos e forças.
Não se trata já de ‘observar’ fenómenos para lhes definir essências, mas de os
fazer trabalhar, de os pôr em movimento e de lhes medir as diferenças entre a
partida e a chegada do percurso efectuado. Essas mensurações fazem-se com
técnicas determinadas que, com a evolução da física, serão inventadas ‘ad hoc’,
caso por caso, dimensão por dimensão melhor dizendo, e implicam que se trate de
fenómenos, que portanto relevam da cena da habitação, que não são essências
filosóficas. Ou seja, para que a sua análise seja susceptível de conhecimento
na cena da inscrição gnosiológica, sem lugar nem tempo nem circunstância, há
que repetir o gesto de delimitar, definir, determinar, inventado pela escola
socrática, mas agora em termos dos movimentos dos fenómenos que são trazidos ao
laboratório. Etimologicamente equivalentes, entre definir, delimitar e
determinar, foi este último que ganhou – com grande felicidade[88]
–, além do sentido dos outros dois, também o de causalidade: o laboratório é
determinante, ele é necessário para criar condições de determinação que não existem nem nas cenas da
gravitação nem nas da alimentação e habitação. A physica aristotélica tinha
fugido à dificuldade com o motivo de “acidentes” que sobrevêm a cada ousia singular, que não é cognoscível
cientificamente, gnosiologicamente, sem a redução desses acidentes, donde a sua
tese famosa: não há ciência do singular. É aqui que se coloca o grande desafio à nova ciência: os movimentos que
experimenta e mede o laboratório são singulares, como pode então haver ciência?
97. O motivo do duplo laço dá-nos
a razão dessa indeterminação dos fenómenos singulares, de eles ocorrerem como
‘acidentes’ ou ‘acontecimentos’ que, no que diz respeito aos vivos e aos
humanos, são constitutivos e duradouros em seus crescimentos e aprendizagens.
Também Aristóteles pretendeu que a ‘natureza’, estes vivos justamente, não é
susceptível de matemática, e foi esta segunda tese que Galileu contestou, sem
se dar conta de que o seu próprio gesto laboratorial confirmava o grande filósofo
grego: só retirando os fenómenos do seu contexto ‘natural’, sem o qual ele não
tem existência, a matemática é possível, ela é inerente ao laboratório. Mas
como é que a matemática se pode haver com fenómenos singulares? O que chamamos
matemática, as equações da Física no caso, não podem sem mais ajustar-se a
singulares; sem mais o quê? Sem o que no tempo de Galileu era a matemática, a saber, a
geometria com a qual ele demonstra o heliocentrismo e expõe as suas novas
ciências (Descartes estava inventando as coordenadas cartesianas, permitindo
geometrizar a álgebra e algebrizar a geometria). Ora bem, a geometria ‘mede’, como o nome indica, e
medidas só as há de singulares: ela situa-se pois, deste ponto de vista, no
pólo oposto da filosofia e da matemática. Mas é neste pólo que as equações da
álgebra se podem conjugar com o que ela mede, as distâncias do espaço, mas
também as diferenças de tempo, de peso, de temperatura, mais tarde de voltagem
eléctrica e por aí fora: os ‘resultados’ das medidas de cada experiência devem
ocupar o lugar das ‘variáveis’ da equação e permitir assim ‘resolvê-la’,
encontrar a sua ‘incógnita’ que será a solução física, uma dimensão que não se
pode medir directamente e que se pode conhecer a partir das dimensões medidas.
A equação foi o que o cientista teve que encontrar como hipótese para a sua
experiência, mas ela só resulta em ‘verdade científica’ quando for satisfeita
ao fim de numerosas experiências repetidas, no seu laboratório e nos de outros
colegas concorrentes.
98. Contra um pós-modernismo
fácil demais, que afecta também os próprios físicos, estas equações e as
respectivas leis, as newtonianas por exemplo, adequadas ao seu tipo de técnicas
de mensuração, são verdades para sempre, já que venceram a objecção feita pela experimentação medida[89].
O único inconveniente filosófico aqui, e que é de monta, é o do estatuto da
teoria que interpreta as equações e as dimensões a medir como suas variáveis,
já que os cientistas discutem da respectiva interpretação teórica. É neste
ponto que ela permanece herdeira da filosofia e dos seus debates incessantes
entre gerações e escolas diversas de pensamento. Do que se chama correntemente
‘objecto’ em ciência, relativo à chamada ‘realidade’, retém-se aqui a sua objecção à teoria que se busca. Porquê
‘objecção’? Porque há uma irredutibilidade estrutural entre o ‘querer saber’
formulado como uma hipótese definida e ‘o que há a saber’, como atesta a
história dos erros entre ambos: só há ciência porque a chamada ‘realidade’ lhe
oferece uma resistência massiva, quase caótica fora do laboratório. Foi essa
irredutibilidade ou inconciliabilidade que a definição desafiou, mas sem nunca
a conseguir superar: com efeito, o texto definido, intemporal e
incircunstancial, é, por definição de definição que arranca o definido do seu
contexto, irredutível aos contextos que se intentam conhecer, à tal ‘realidade’
que corresponde ao conjunto das cenas da gravitação, alimentação e habitação[90].
Isto ajuda a compreender que as verdades científicas da física[91] consistem na relação entre as
equações com suas variáveis e as medidas experimentais, as quais, de objecção
irredutível, se tornaram indissociáveis da equação verificada. Esta
indissociabilidade ganha no laboratório juntando-se à inconciliabilidade, eis o
que permite falar de verdade
científica, que a técnica saída dessas experimentações veio confirmar mesmo aos
olhos dos leigos. Uma tal verdade nunca a filosofia conseguiu, por definição de ‘escritório
filosófico’.
99. Podemos assim chegar a uma
tese defendida no texto de 2013, a da universalidade e historicidade da técnica
moderna. A lei física é representada nas respectivas equações, qualquer que
seja a matemática utilizada, a geometria por Galileu, e quaisquer que sejam as
convenções das medidas (Galileu medindo o tempo em peso de água): é pois
universal, acima das línguas duplamente articuladas que buscam interpretar
teoricamente a equação. É esta, com a respectiva lei, que é proposta como saber
universal nos manuais das escolas, universal para qualquer laboratório onde foi
e continua a ser verificada, onde se repete como um ‘motor’ científico que substitui
as ‘essências’ definidas da physica aristotélica. Como Galileu explicou que “as
diferenças e proporções” são as mesmas entre unidades diversas das mesmas
dimensões, isto é, repetem-se em qualquer convenção de unidades de medida
(tempo medido em segundo ou em miligramas de água), pode-se dizer que foi o
duplo laço entre a equação como ‘motor’ repetitivo e as medidas como
‘variáveis’ (que a experimentação regula) com as respectivas técnicas que se
revelou fecundo nas invenções dos laboratórios de engenheiros que utilizam as
equações físicas replicando as dimensões de forma variável nos seus artefactos
diversos. Ou seja, equação que se repete estritamente (‘motor’) e variáveis –
resultados experimentais de medições (‘aparelho’), o que se repete e o que
varia consoante as experiências, são a ossatura do laboratório – na instância
inscritiva do saber – tanto da física como ciência como do engenheiro que a
aplica tecnicamente. É pois aonde reside o segredo da simultânea universalidade
(equação) e historicidade (experimentação singular) das técnicas modernas
resultantes das Física e Química europeias e das escritas matemáticas exactas
que elas utilizam.
100. Qual é então o estatuto da
teoria física que interpreta a equação e as experiências? O exemplo de Galileu,
do tempo em segundos ou miligramas de água, mostra que ao físico importam
sobremaneira as diferenças de tempo (ou espaço, temperatura, etc) e que ele pode
continuar a não saber o que o tempo ‘é’, a não o saber definir, dificuldade que
os filósofos também têm, como se continua a repetir citando Agostinho de Hipona
e ignorando a excelente definição aristotélica: “o tempo é o número do
movimento segundo o anterior e o posterior” (Physica 219b). Onde se medem
cientificamente diferenças, não se conhecem cientificamente substâncias. As
interpretações das equações e experimentações correlativas são todavia necessárias
para se ‘pensar’ o puzzle[92],
pôr a hipótese da equação, inventar experiências adequadas, mas ficam entregues
ao conflito que finalmente se revela de ordem filosófica, da ordem das
definições, enquanto que a verdade física é da ordem da matemática e da geometria laboratorial. Isto pode parecer
chocante, mas quando Newton dizia que a sua nova ciência juntava mecânica e
geometria, ligava o movimento e as respectivas forças e a mensuração matemática
dele, parecendo esquecer a interpretação teórica a que chama “filosofia natural”,
como que dava entender que o facto de não ser capaz de ‘imaginar’ (hipothesim
non fingo) em
que é que consiste a força de atracção a distância da gravidade cuja equação
fornece não impede esta de ser recebida como ‘verdade científica’ ou ‘filosófica’,
como inumeráveis técnicas demonstraram pelos tempos fora. O Nobel R. Feynman
ensinava em 1961-62 que continua a não se saber o que é essa força, nem o que é
energia: não se sabe defini-las, interpretar em linguagem duplamente articulada
as verdades laboratorialmente demonstradas por equações e experiências. O que
permite ao fenomenólogo, apoiado nas descrições das outras ciências, propor uma
reformulação dos motivos de força, energia e campo de forças mais adequada à
unificação dos saberes cientifico-filosóficos, já que a interpretação teórica
não diz respeito apenas a cada equação matemática que conseguiu a sua solução
experimental mas a um conjunto de equações e experiências a integrar em
coerência teórica e que esta se revele adequada fora do laboratório, na compreensão da própria cena da gravitação,
segundo as leis que regulam o que nela sucede aleatoriamente.
101. Isto implica um estatuto
epistemológico das ciências exactas, as que usam álgebra matemática e técnicas
de mensuração a ela adequadas, que as outras ignoram: podem-se discernir nelas
dois níveis de duplo laço relativo à cena da inscrição. Um deles é estritamente
laboratorial e matemático, as equações que servirão de ‘motor’ científico a
todo o tipo de técnicas que se sirvam delas para medir os seus artefactos. É ao
seu nível, que de jure dispensa a interpretação teórica, que se escrevem os artigos científicos
das revistas especializadas que dão conta de novas experimentações e descobertas,
textos que dispensam a invocação teórica e são ilegíveis a quem não é do
ofício. É este nível que articula ciência e engenharia e não existe nas ciências
não exactas. O outro nível é o da unidade entre as equações e medidas com a
respectiva interpretação teórica, unidade que é a da própria compreensão dos
cientistas em relação ao que fazem e ensinam, ‘motor’ repetitivo (ao nível da
cena da inscrição) da compreensão global das leis que regulam a cena da
gravitação por quem quer que a tenha suficientemente compreendido e que consegue
então perceber porque é que a água cai para a terra e o fumo sobe para o céu. A
escrita deste nível é a dos manuais escolares e dos textos de divulgação e
permite algo de surpreendente: que quase toda a gente que passou pelo liceu
‘acredite’ que é a terra que se move, rotação e translação, contra a verdade
geocêntrica dos seus olhos que lhes diz o contrário, sem a qual aliás, sem as medidas astronómicas
geocêntricas (feitas a partir da Terra) não se pode demonstrar o heliocentrismo[93].
Questão diferente é posta pela a Física da relatividade e pela Mecânica
quântica, com fenómenos que também contrariam a nossa experiência corrente e
que não podemos apreciar sem instrumentos ópticos muito poderosos. A
dificuldade parece ser mais das interpretações teóricas, se for verdade que as
equações de uma e de outra vêm a coincidir com as da física newtoniana, quando
se trate de velocidades sem proporção com a da luz no primeiro caso e de
dimensões de escala corrente. Sendo assim, é sugestivo pensar que a mecânica
quântica não será susceptível de interpretação extra-laboratorial, já que as
partículas de que se ocupa (das quais aliás somente uma pequena meia dúzia é
capaz de duração enquanto partícula), são todas elas apenas “seres de
laboratório”, como disse N. Bohr do átomo, apenas susceptíveis de movimentos em
sentido expansivo, explosivo, nos grandes aceleradores. Será possível que num
deles se consiga fabricar com protões, neutrões e electrões separados (parados?)
fabricar um átomo de hidrogénio?[94]
102. Pode-se contrastar esta
‘física’ com a ‘physica’ de Aristóteles: o que as diferenças entre medidas de
laboratório conseguem mais além do grande filósofo e physico grego é reduzir
não apenas os “acidentes” como a definição faz, guardando a ousia, a “substância” enquanto dotada
de movimento no centro da filosofia, mas reduzir também a substância, por isso
mesmo que dela, tempo, espaço, corpo, matéria ou que seja, a Física nada soube,
até chegar à teoria do átomo e da molécula. Na Física não há senão
diferenças, poderiam
ter dito antes de Saussure, tanto Galileu como Newton, disseram-no à sua
maneira de praticarem no laboratório medindo, sem o saberem explicitar, como
ainda hoje os físicos parece não o saberem (assim como eu não sei as consequências
disto na física das partículas). Tal como na Physica de Aristóteles, a ousia enquanto essência definida, isto
é, repetida igualmente em qualquer contexto, é o ‘motor’ do conhecimento de
cada ousia
enquanto substância, que permite conhecê-la nas suas possibilidades (dunameis), entendendo os acidentes que
lhe advieram como a sua singularidade, também no laboratório da Física de
Newton cada equação com as respectivas técnicas de mensuração de tais dimensões
definidas, repetindo-se em cada laboratório, é o ‘motor’ que permite conhecer
as leis que ‘regulam’ os movimentos possíveis das coisas susceptíveis dessas dimensões.
As ciências das sociedades e o tempo
103. Economia e sociologia são
ciências que utilizam uma forma adequada de matemática, a estatística, cujo nome pode ser enganador,
já que não se trata tanto de conhecer um ‘estado’ de coisas (que dele mesmo não
ensinaria nada de interessante), mas as suas variações no tempo, os seus movimentos segundo os arquivos existentes,
cuja análise constitui o laboratório dessas ciências. Estaremos nas antípodas
do laboratório das linguísticas saussurianas e do seu privilégio da sincronia
face às alterações diacrónicas, históricas? Não necessariamente, porque de
jure os
movimentos a analisar deveriam ser os das sincronias que as hipóteses teóricas
postulariam, sendo que a lógica dessas sincronias consiste no assegurar a
reprodução da sociedade, o que será porventura relativamente menos interessante
nas ciências da linguagem, a que viremos mais adiante. Os paradigmas dos usos
de cada unidade social local, seu aparelho regulador, conhecem várias
temporalidades, ritmos semanais, mensais, sazonais, anuais, entre a reprodução
quotidiana e seus usos repetidos diariamente e a reprodução entre gerações. Por
suposto, estes usos repetem-se segundo a rotina que dispensa a história, de que
as sociedades chamadas tradicionais se defendem aliás tanto quanto podem: os
‘acontecimentos’ que ocorram fora dessas rotinas serão todavia preciosos aos
olhos do cientista social, sobretudo na medida em que os seus efeitos se
revelem catastróficos, isto é, impliquem alterações de alguns desses usos.
104. Foi o caso da lenta invenção
da agricultura e da criação de gado e da consequente especialização de usos
citadinos, como se disse. Essa invenção teve uma incidência notável na
temporalidade social, a introdução dum tempo económico diferido – entre o
trabalho de plantar ou semear e as colheitas, o do crescimento das crias, entre
a produção artesanal e a sua venda no mercado – que será frequentemente um
tempo de risco, devido a intempéries, doenças do gado, concorrência no mercado,
este à medida da sua extensão implicando uma rede de interdependências que as
casas agrícolas quase autárcitas ignoravam e que é a regra das cidades. Ora,
foi a invenção da máquina a vapor e o desenvolvimento das indústrias químicas e
depois da electricidade que acelerou o crescimento das cidades e o tempo
social, criando ritmos inéditos de trabalho nas novas fábricas, de forma
genérica regidos pela figura do engenheiro, com formação científica polivalente.
É o paradigma dos novos usos, entre máquinas e trabalho muscular dos operários,
que ele rege de forma a obter a melhor qualidade dos produtos que sairão para o
mercado. Ora, tudo o que contribui para essa produção, desde o edifício e as
máquinas, a matéria prima e as formas de energia, os trabalhadores e o saber
dos próprios engenheiros, tudo vem de fora, de outras fábricas e de minas, de escolas, das
famílias, e o capital (que também conheceu um processo histórico de acumulação) é a forma
financeira que reúne esse ‘tudo que vem de fora’, como a sua ‘cabeça’, e
permite ao engenheiro pô-lo em funcionamento produtivo. O engenheiro está pois
submetido ao economista, à ciência do mercado exterior à fábrica: em relação ao interior
da unidade social, é ele que conhece o paradigma que regula o que Marx chamou “forças
produtivas”, relação dos produtores às máquinas, matérias primas e produtos
acabados, cujo conjunto é o motor interno da produção. Mas ninguém que aí trabalhe come do
que ali se produz: a venda aleatória no mercado é a condição do pagamento dos
salários dos trabalhadores como do retorno do capital acrescentado da “mais
valia” que a fábrica acrescentou à matéria prima recebida transformada em
produtos úteis a famílias ou outras instituições. Só na medida em que os
trabalhadores recebem o respectivo salário é que têm acesso ao mercado a
comprar os produtos úteis para a sua alimentação e habitação, donde que o
aleatório das vendas sendo condição dos salários é-o também das compras,
fechando-se assim o ciclo do mercado de forma que o duplo laço da fábrica,
entre o que se produz sob a égide do engenheiro e do paradigma técnico e
relacional como ‘motor’, e o que se vende no mercado como ‘aparelho regulador’
não está confinado ao interior técnico mas estende-se pelo mercado fora, aonde
o capital se instituiu e se recupera (ou se perde em falência).
105. Tudo isto, de forma
simplificada, para tornar claro que máquina e capital (engenheiro e economista)
vão juntos neste duplo laço em que o engenheiro deve garantir a qualidade do
que o economista tem que vender, e para isso tem que usufruir de autonomia
técnica, e este sujeita aquele a baixar quanto puder os custos da produção, a
economizar em material e energia, com riscos sempre de atingir o nível da
qualidade dos produtos. A “mais valia” resultante da produção e da venda,
diminuídos os custos, é a repartir entre os salários dos trabalhadores, que
querem sempre ganhar melhor na medida em que melhoram a qualidade dos produtos,
e os lucros do capital, descontados juros e impostos devidos. É aqui que o
conflito é inevitável, já que o capital, seja quem for o proprietário
(individual, quotas, sociedade anónima), quer também obter a melhor partição,
recompensados engenheiros e economistas, e não há nenhum critério inequívoco,
aritmético ou científico, para decidir desta repartição entre salários de quem
produz e lucros do capital de quem dá as condições de produzir e vender, a qual
repartição se faz adentro do que Marx chamou “relações de produção”. Sem pôr
necessariamente em questão o carácter ‘privado’ da propriedade da fábrica pelo
capital, o que há que sublinhar fenomenologicamente é que os trabalhadores
(operários, técnicos, administrativos), cujo saber especializado é cada vez
mais importante, são tal como o engenheiro, o economista e o capitalista, mamíferos
(que se alimentam) e cidadãos (que habitam democraticamente a mesma cidade) que
não podem ser equiparados às máquinas e matérias primas (com que são enlaçados
como força ou motor produtivo) como “custos sociais”: a repartição entre
salários e lucros só pode ser de ordem política, de concertação ou de luta com
greves que fazem valer que os agentes temporais da produção sabem que o são. A
importância desta observação é prevenir que quando a ciência económica de
índole neo-liberal trata os salários como custos sociais a reduzir para aumento
do que chamam ‘competitividade’ – face à lei da guerra que domina a lógica do
mercado –, ela faz passar como ‘científico’ o que é ocultação da dimensão política
da economia, um dos laços reguladores das sociedades actuais (os outros são a
escola e os médias, o Estado e a sua administração).
A economia como ciência social
106. Adentro da fábrica
avaliam-se custos mas o dinheiro do mercado em princípio não circula de
departamento em departamento, algo de equivalente se podendo dizer das famílias
que compram no mercado aquilo de que se alimentam e habitam sem que haja internamente
circulação de dinheiro. O que é produzido, é-o como destinado a “valor de uso”
(Marx) de quem o compra, o mercado levando-o do produtor ao comprador submetido
a um “valor de troca”, como mercadoria indexada dum preço em termos monetários.
O domínio da economia enquanto ciência é este tempo de circulação das mercadorias
no mercado, os valores de troca medidos pela moeda, com a qual que se estipula a
‘língua’ do mercado, a dos seus preços, língua oscilante com as conjunturas do
mercado que vendedores e compradores aprendem para poderem avaliar compras e
vendas (dificuldade de qualquer emigrante, além da língua do país também tem
que aprender a língua dos preços). O economista não vai dentro da fábrica nem
dentro da família ver como se faz ou se vive, só se ocupa das estatísticas do
mercado, aonde estabelece o seu laboratório e que analisa com o operador
monetário: preços e quantidades de mercadorias transaccionadas, compara períodos
de variação. Qual é a diferença em relação ao laboratório de física? Também em
economia há redução laboratorial da cena: a fábrica que vende ou que compra, a família
que recebe salário, compra e consome, todo esse mundo em constante agitação
entre armazéns e lojas é reduzido sob números globais, custos, investimentos,
gastos, taxas. Mas a dimensão monetária do mercado não tem equivalência nenhuma
com os metros, segundos ou gramas dos físicos, não há técnicas de medida
científicas que possam depois tornar-se técnicas produtoras de artefactos
quaisquer, estes vêm justamente das fábricas que os engenheiros constroem a
partir da física e da química. A diferença matemática entre os dois tipos de
ciência é a que há entre álgebra e aritmética, entre equações com variáveis e
constantes, coeficientes e incógnitas, por um lado, e contas de somar,
subtrair, multiplicar e dividir, por outro. Ainda que as contas devam estar
certas, a falta de equações e medidas não permite que a economia seja uma
ciência exacta: as contas não fornecem nenhum conhecimento por elas mesmas, mas
os seus resultados permitem determinar taxas comparáveis em situações e
períodos de tempo diferentes e são essas comparações que a teoria económica
analisa, utilizando os conceitos que presidiram à escolha das estatísticas
prevalecentes.
107. Não é preciso ser economista
para, lendo artigos de jornal de diferentes cientistas em tempos de crise, se
perceber que há posições de ‘escola’ de pensamento que divergem, senão nos
conceitos, pelo menos na selecção dos números estatísticos a considerar caso
por caso e por via de consequência nas propostas de estratégias. A consideração
que a fenomenologia que aqui me inspira permite é paradoxal. Se se tem em conta
a chamada escola monetarista de Friedman e a escola de economia política de Keynes,
dir-se-á que a primeira se caracteriza por fazer da redução laboratorial da economia por via da moeda a
regra primeira, senão exclusiva, da sua teoria científica e de a levar às suas
últimas consequências: só o que se apresenta como ‘números económicos’ é tido
em conta, onde o capital é peça central e os salários não passam dum ‘custo’,
duma variável em que se pode sempre cortar para... para quê, de facto? Para que
os números globais possam crescer e serem ‘competitivos’ com os outros na guerra
dos capitais, de
que esta teoria económica, obnubilada, dir-se-ia, pelos grandes números,
aparece como o arauto. Qual é o busillis? É que a redução assim feita sem que
os cientistas saiam do laboratório, a sua ciência aparece-lhes, não como uma
ciência ‘social’, a que se pode chamar a sociologia dos mercados, mas como a
‘ciência da sociedade global’ que não há e provavelmente não pode haver mas que
faz falta. O que é particularmente grave, vê-se em época não apenas de crise
financeira mas provavelmente de mutação civilizacional do Ocidente face às
outras grandes economias ditas “emergentes” e face à catastrófica situação
ambiental provocada pela ilimitação da produção técnica[95]
num planeta limitado nos seus recursos. Quaisquer que sejam os limites de Keynes
face à situação actual, o que se pode conjecturar sem se saber dizer nada sobre
o ‘como’, é que a economia enquanto ciência deve ter como função primeira domesticar a guerra dos capitais. Tal como a filosofia, o direito e a medicina, enquanto actividades de razão, qualquer ciência tem como justificação compreender o que nas cenas
terrestres se apresenta como problemático, como causa de dor e de sofrimento, e
ter em função desse conhecimento adquirido uma actividade terapêutica. Creio
que o erro crasso da ciência económica actual é o de ter como elemento de
avaliação o crescimento dos números em termos de dinheiro, em vez de ser a qualidade da produção e do consumo. É certo que esta escapa ao economista, mas não
deveria escapar que a especulação financeira está a devastar esta qualidade e
que o carácter terapêutico da ciência económica deveria encontrar meios
científicos de vigiar por ela, a começar pelo emprego. Assim como a medicina
busca que não haja doentes como seu critério primeiro, a economia deveria
buscar antes de mais que não haja desempregados. Por duas boas
razões. Uma delas é que nas cidades onde hoje quase todos habitamos não é
possível e ninguém alimentar-se e habitar com um mínimo de dignidade se não
tiver um salário, já que a industrialização acabou com as antigas autarcias: é enquanto
cidadão que
qualquer um tem direito vital a um emprego e a um salário. A outra razão é que os empregados são o esteio da economia, os que a fazem com a cabeça e
as mãos nas máquinas e nas matérias primas, e que a ciência só intervém pelo
facto de ser necessário capital para que haja produção: lembremo-nos que os
trabalhadores começaram por ser escravos captados em guerra, que esse foi o
esteio da economia da chamada Antiguidade. A questão de hoje parece dever ser
retomar o ritmo do que sucedeu à abolição da escravatura: durante o século XIX
europeu e americano, 10 a 14 e mais horas de trabalho foram a regra, como o sol
a sol dos trabalhadores rurais, ainda vigente entre nós no 25 de Abril. As 40
horas semanais foram conseguidas durante o século XX. A questão parece ser
actualmente a de computadores e robots estarem a precipitar o desemprego de
forma crescente e massiva: o que é um bem do ponto de vista do trabalho vira-se
contra o trabalhador que perde o emprego e joga apenas a favor dos
lucros que têm que crescer, não apenas por desejo dos empresários mas por
imperativos ‘científicos’ da teoria, explicitados ou pressupostos apenas. Reduzir
os tempos de trabalho para que toda a gente tenha emprego, parece ser a principal
exigência económica do ponto de vista da economia como ciência social e é o que os economistas não vêem, sem perceberem que foi assim com as várias
etapas de progresso tecnológico.
As ciências da linguagem
108. Antes da abordagem de outras
ciências da sociedade, valerá a pena indagar das da linguagem, entre a
linguística saussuriana e a semiótica (Lévi-Strauss e Barthes)[96], que poderão adjuvar essas outras
ciências sociais que põem problemas de leitura de sentidos no seio da sua
metodologia laboratorial. Qual é a dimensão da linguagem que as suas ciências
visam? É a linearidade (do significante, veremos) quer das falas quer dos textos alfabéticos, a
qual linha é a espácio-temporalidade dos fenómenos da linguagem na respectiva
cena, a da habitação, onde ela foi inventada juntamente com outros usos
sociais, como a culinária. Mas chame-se desde já a atenção: a ‘linha’ não
pré-existe às falas ou escritas, nem o espaço nem o tempo delas, nem os sons
(nem os riscos) nem os sentidos, o que o laboratório de Saussure permitiu
demonstrar foi que espaço e tempo (isto é, a linha), sons e sentidos, são produzidos pela linguagem – auto-produzidos
poder-se-ia dizer – com o papel decisivo da língua, a qual todavia – como é típico
do produto dum laboratório científico – não existe senão nas falas e textos da
cena. É essa língua, dum certo povo, que, na sequência duma longa história
gramatical ocidental, o laboratório linguístico restitui, tal como nenhum dos
falantes ou escreventes a conhece conscientemente em suas regras quando fala ou
escreve (ainda que seja um erudito linguista). Por isso pôde ela ser praticamente
ignorada por Platão e pouco menos por Aristóteles: só em meio multilinguístico
Estóicos e Alexandrinos a vieram a analisar, partindo da primeira lista (que
nos chegou) do cap. 20 da Poética de Aristóteles.
109. O que é que faz o
laboratório linguístico? Pega em falas (de facto, em textos escritos,
‘gramática’ vem de gramma, escrita) e começa por lhes reduzir o sentido como condição de entrada no
laboratório, sujeitas a um critério dito de pertinência, a saber a) que as
falas admitidas tenham sentido na língua estudada, qualquer que ele seja,
condição óbvia já que se trata de estudar as regras da língua, e b) que as
várias operações tenham incidência de alteração de sentido, qualquer que ela
seja outra vez. A primeira operação consiste em delimitar frases nas falas
aceites, marcando-se assim um limite do domínio da linguística, que se ocupa
das frases e suas unidades inferiores, acima delas se situando as semióticas.
Nas frases operam-se segmentações que visam delimitar unidades mínimas de sentido (monemas, na gíria, com ‘mono’,
aproximadamente as nossas ‘palavras’) substituindo-as por outras que na mesma frase
lhes alterem o sentido: segmentação e substituição constituem a dupla
operacional da linguística, a comutação, que permite agrupar os monemas que são
substituíveis no mesmo lugar das frases em paradigmas, tanto sintácticos (nas
gramáticas tradicionais: substantivos, adjectivos, verbos, advérbios, preposições,
conjunções, e por aí fora) como morfológicos (sufixos dos verbos, o exemplo
mais importante, prefixos e sufixos variados). Estes monemas são por sua vez
susceptíveis de nova operação de segmentação e substituição que permite identificar
fonemas (letras do alfabeto, aproximadamente) como unidades mínimas sem sentido mas que a comutação revela como
constitutivas dos monemas, do que Saussure chamou “significante”. De forma
obviamente muito simplificada, temos assim como esta dupla comutação, em frases
para encontrar palavras, nas palavras para encontrar fonemas (ou letras), gerou
a dupla articulação da linguagem (§ 75)[97]
: a dos fonemas gerando os significantes e a das frases os sentidos, os signifiés
polissemicos
(que não são os ‘significados’ das palavras dados nos dicionários, mas os
sentidos que lhes advêm no contexto da frase e da fala).
110. Esta língua duplamente
articulada, em seus paradigmas, como é que ela joga nas falas concretas, entre
pessoas que, falantes da mesma língua, se entendem em falas que podem conter
frases que porventura nunca ouviram? Há dois níveis nesta questão. O primeiro,
se se trata duma voz nunca antes ouvida, já que as vozes variam com as gentes,
as idades, os sexos, a disposição, a região de origem, etc. É o mesmo fenómeno
que nos permite ler caligrafias ou tipografias diferentes, algumas nunca vistas
antes. O que ele implica é que não basta ‘ouvir’ ou ‘ver’ se se é estrangeiro:
“na língua não há senão diferenças”, o célebre aforismo de Saussure, significa que
dos sons que ouvimos ‘entendemos’ as respectivas diferenças e das letras que
vemos ‘lemos’ as respectivas diferenças como as mesmas em qualquer voz ou grafia: é
esse ‘mesmo’ de diferenças feito que é a língua. O leitor está aqui a ‘ver’
riscos (em times new roman, 12) e a ‘ler’ diferenças entre eles que lhe significam
letras e palavras, tal como fará com qualquer caligrafia mais esquisita que
esteja habituado a decifrar. Isto é, a perceber as diferenças repetidas como as
mesmas: há aqui um atropelo à lógica comum, é em diferenças que consiste a
repetição, a
qual dá identidade às unidades da língua. Que os significantes sejam puras diferenças, ‘nada’
de substância sonora ou gráfica, retoma nas línguas duplamente articuladas o
que encontrámos para as medidas do laboratório de física; também os signifiés são apenas diferenças puras,
agora diferenças entre significantes ao nível da articulação das palavras na
frase. O segundo nível da questão tem a ver com o facto de que estas diferenças
repetidas podem não estarem todas efectivamente ‘presentes’ na palavra, frase
ou fala de que se trata. Se leio ‘bem’, por exemplo, sei que é diferente de
‘bom’, embora o ‘o’ não esteja lá, mas é necessário o seu jogo paradigmático
como diferente do ‘e’ de bem, para eu ler esta palavra. Da mesma maneira mas
agora ao nível da frase, ao ler ‘bem’ sei que é diferente de ‘mal’, que também
pode não estar lá, mas cujo efeito como oposto no paradigma ‘bem / mal’ é
essencial ao sentido de ‘bem’. Há dois níveis de diferenças, umas ‘in præsentia’,
sintagmáticas, outras ‘in absentia’, paradigmáticas, explicou Saussure[98].
Em termos da différance de Derrida, numa fala concreta há um nível económico que se repete estritamente para todos (fora os
regionalismos, que relevam de sócio-linguísticas), o da língua, nível social, e
o nível dos sons e estilos que excede essa repetição, nível singular. A différance é o que ‘produz’, reproduz,
melhor dito, estes dois níveis que a linguística teve que separar, reduzindo o
da singularidade individual para poder restituir a língua comum, de
‘comunicação’. Essa língua, em termos da ciência linguística estrutural, é o
‘motor’ que se repete estritamente de maneira a ‘regular’ a análise sempre
possível da indefinida circulação das falas e textos, à diferença do que vimos
para a linguagem enquanto mecanismo de autonomia com heteronomia apagada: nas
falas e textos fonemas e letras são inibidos (de sentido, uma letra não quer
dizer nada) como condição de serem enviados a formar palavras, inibição que difere
a frase como
reprodução de sentido, capaz de acolher em suas palavras as coisas do mundo que
há que dizer nessa circunstância. O que implica o motivo de pertinência de
leitura: há que
conhecer os códigos da sociedade que produziu o texto e eventualmente das
sociedades seguintes que o leram, há pois que articular a semiótica com
antropologia, já que é desta articulação que releva o motivo de paradigma.
111. Mas como uma fala ou um
texto são por regra mais do que uma das suas frases, a questão da semiótica
como ciência é a de ser capaz de analisar o que relaciona as frases sucessivas entre elas de modo a que
haja alguma unidade nesse texto não seja um puro caos de frases sem relação
entre si[99]. O motivo
de código em
Lévi-Strauss como em Barthes parece-me prestar-se a uma tal e tão difícil
ciência. Assim como o laboratório de física ou química, que se propõe descobrir
o que não se sabe, implica a concepção de experiências capazes de levar a essas
descobertas além das equações teóricas, também o laboratório de linguística
implica a pertinência do cientista em relação à língua de que investiga regras,
a qual lhe dá um critério de aceitação das frases a analisar e das suas
variações de sentido com as comutações. Mas os sentidos das frases não intervêm
na análise, não decidem das unidades que justamente são necessárias como regras
de produção de sentido. O motivo de código jogando entre frases diferentes, por
vezes bem afastadas no texto, implica a pertinência de leitura dessas frases e
portanto dos seus sentidos: é sem dúvida a razão do insucesso histórico das
semióticas da segunda metade do século XX. Se eu sublinhei acima que o
‘signifié’ de Saussure não é o ‘significado’ das palavras[100],
foi porque este é tido como inerente justamente às palavras e o ‘signifié’
resulta de diferenças da frase (e do texto, aliás), é por assim dizer imanente
ao texto, tal como o significante; mas obviamente que também tem a ver com
aquilo que do mundo tribal se diz ou escreve. E a ‘impossível’ questão da
semiótica, nesta perspectiva, devendo analisar o jogo de sentidos do texto,
implica uma articulação entre ele e a antropologia. Ora, os nossos hábitos de
linguagem – derivados sem dúvida da tradição filosófica da definição que
privilegia os entes, as coisas, em relação à globalidade em que se inserem –
vão directamente à coisa (‘o que é que quer dizer tal palavra?’, resposta: tal
coisa). É este obstáculo que a semiótica tem que saber tornear, fazendo a
inversão desse hábito: ‘como se situa tal palavra no texto?’, tal palavra de
que eu conheço o significado, ou vou ver ao dicionário, mas de que terei que
descobrir o ‘signifié’, por via do código em que se insere.
112. A leitura das Mythologiques de Lévi-Strauss, ocupando-se de
textos muito estranhos à nossa razão ocidental, ajuda a perceber como ele teve
que proceder diante de textos mirabolantes. Se se tratava de termos que ele não
conhecia, tinha que indagar deles junto dos indígenas, e mais, tinha que
indagar dos vários usos e costumes da tribo onde o mito foi colhido como
condição de adquirir pertinência de leitor. Mas a abordagem de textos com
conteúdos ‘absurdos’ aos seus olhos ocidentais facilitou-lhe a metodologia de
inspiração saussuriana confessada: não se tratava de procurar uma explicação
para o inexplicável, nenhuma tentativa funcionalista ou hermenêutica sobre o
‘sentido’ religioso do mito, mas de lhe analisar as diferenças, de
estruturar-lhe os elementos, como as oposições céu / terra, masculino /
feminino, verão / inverno, calor / frio, e por aí fora, mas também correlações
próprias dos usos específicos, como em certos mitos a estrutura dos dois
lugares numa piroga, interligados mas opostos, ou em culinária assado
(directamente no fogo) e cozido (através da água que é aquecida). Quando essas
correlações se manifestam em vários lugares do texto, como se ele se citasse a
si mesmo em tais personagens que repete, é possível agrupá-las em códigos determinados num primeiro tempo
de análise que olha também para os usos sociais da tribo respectiva, e depois
articular os vários códigos entre si para encontrar o que chamou a lógica
das qualidades sensíveis desses povos[101].
Demarca-se assim da maneira formalista de Propp (ou Greimas, que não nomeia
sequer) de buscarem funções com personagens variadas, com o exemplo de águia,
coruja e corvo com a mesma acção em contos diferentes: os contextos permitem
restituir a oposição ‘diurno / nocturno’ para as duas primeiras, que se opõem
em seguida como ‘predadoras’ ao ‘necrófago’ corvo, depois estes três opostos
como ‘celestes’ ao ‘terrestre’ pato, etc. Vê-se como é necessário conhecer a
lógica dos usos tribais mas também como apenas a leitura atenta textual permite
descobrir engenhosamente as diferenças, os respectivos códigos que se mantêm
constantes nas diversas tribos. O que lhe permitiu aliás confirmar algumas das
suas propostas de decifração de mitos da América do Sul quando veio a abordar
mitos da América do Norte, mais elaborados, onde essas propostas são explicitadas
pelos próprios mitos, à maneira duma repetição laboratorial (outra confirmação
veio-lhe com a ajuda de astrónomos que lhe permitiram relacionar a lógica de
mitos do sul e do norte com as diferenças dos respectivos astros).
113. Bem diferente foi a maneira
de Barthes, que deixou de lado o problema da estrutura geral das narrativas
para se dedicar à leitura dum único texto, uma novela de Balzac, Sarrasine, indo inventariando o que chamou
conotações
(os termos reenviam a outros termos do texto, como suas diferenças, em vez de
denotarem o mundo) e que agrupou em códigos, como citações de diferenças que
se repetem e num segundo tempo se articulam entre si numa constelação textual
polifónica, restituindo a lógica singular do texto e testemunhando da exigência
da sua leitura, que partindo pois da leitura de sentidos acabou pela maneira
como essa lógica se dá emblematicamente na oposição de duas letras, entre S e
Z, uma figura masculina (sarrazin) que é feminizada e uma feminina que se
revela um travesti (Zambinella). Barthes publicou pelo menos três outras
leituras de textos pequenos, um conto de E. Poe e dois textos bíblicos, um
cristão e outro hebraico, que seguem a mesma metodologia, o que aliás me
permitiu retomá-la à minha tosca maneira na leitura duma das narrativas
evangélicas, a primeira e mais fruste, a de Marcos, tendo a sua relação com as
duas outras que dela dependem, a de Mateus e de Lucas, confirmado a justeza da
leitura, que não é fácil resumir aqui[102].
114. O primado do textual, das
suas diferenças conotativas agrupadas em códigos que se articulam, sobre o
hábito de ler atravessando o texto de cada vez para o que se julga que ‘ele
quer dizer’, desde que provindo da ascese de conhecimento do contexto de
produção do texto, tem assim a vantagem científica de permitir esclarecer também
lógicas desse contexto (que os historiadores por regra ignoram) e ainda, como
nos casos de Barthes e de Marcos, de elucidar a lógica escondida dos textos
fortes, aqueles que abriram caminhos. Em vez dum preguiçoso universalismo
humanista, esses códigos, ao repetirem a lógica dos usos sociais, permitem
caracterizar os diversos corpus de textos de diferentes sociedades e suas
civilizações, no caso do Ocidente aceder assim à caracterização dos corpus
especializados segundo os
paradigmas dos seus
códigos, mormente os resultantes de maneiras de, herdando da definição, excluir
quanto possível as polissemias das línguas, essas inimigas da Lógica. Esta
aliás teve que recorrer à sua transcrição em linguagem de tipo matemático, com
uma única articulação sem fonemas, para o conseguir de forma radical. Nunca a
filosofia manifestou maior homenagem às línguas humanas. Mas há que acrescentar
que esta metodologia barthesiana tem um grave inconveniente, o de demandar um
grande investimento de trabalho intelectual, o que em tempos de gente apressada
não deixa augurar nenhum futuro a esta semiótica prometedora. O motor dos
corpus, da dimensão textual dos paradigmas científicos, como deste tipo de
semiótica, reside assim nos códigos que se repetem nos variados textos que tais
corpus albergam, o termo ‘código’ sugerindo a sua conotação de lei para dizer
como eles regulam, como um aparelho, a circulação das frases desses corpus. O
problema que se põe é o de saber como é que os textos, cada texto, objecta à grelha que o lê: não tanto no
tempo de ir identificando os códigos, trabalho de paciência e experiência, mas
quando a respectiva articulação vem provocar surpresas ao leitor e revelar nós
na textualidade até aí passados inapercebidos aos laboratórios de investigação
literária ou filosófica. E são essas surpresas de renovação da leitura, no meu
caso de textos já muito estudados antes, que compensam o investimento de
energia intelectual.
115. O motivo do duplo laço nos
textos permite elucidar duas teses que foram sempre recebidas com dúvidas pelos
seus leitores mais apressados. Uma é a tese da incomensurabilidade dos
paradigmas segundo Kuhn, a outra é a do círculo hermenêutico heideggeriano, esta sendo uma
formulação filosófica que explica a outra também. Isto é, trata-se do mesmo
fenómeno que implica, com o motivo textual da diferença (Derrida), o da
aprendizagem. Se dois paradigmas científicos são incomensuráveis, é porque o
que se faz nos
respectivos laboratórios são usos teóricos e práticos diferentes, diferentes
portanto as ‘formações’ dos seus cientistas, as suas aprendizagens. E a questão
de saber como é possível, se o for, alguma comunicação, como se diz, entre
ambos os paradigmas, implica a investigação da maneira como ambos os paradigmas
foram historicamente instituídos, a desconstrução filosófica de ambos. E o que
é o círculo hermenêutico? É a constatação de que não se pode saber ler um texto
senão quando já se chegou a um certo grau de pertinência em relação a ele,
quando já se é leitor dele, se aprendeu e entrou no paradigma. É o exemplo de
todos os especialistas, mas também de qualquer um em relação à sua língua e
escrita, em contraste com os estrangeiros. Aprender é ser-se enlaçado pelas
regras da língua, do paradigma, do texto difícil, esse laço reproduzir também a
voz e os olhos do que a-prendeu, ficou ‘preso’ no motor desse laço e nas suas
regras, gramaticais e textuais.
É possível uma ciência da sociedade?
116. É possível descrever o
conjunto duma sociedade? Se se tratar da própria, parece claramente impossível,
já que o observador tem nela um lugar relativamente preciso que lhe comanda a
perspectiva e a falseia em consequência. Tratando-se de outra sociedade,
suficientemente diferente pelos usos e costumes, quer na história quer na
geografia, a dificuldade tem a ver com o etnocentrismo que comanda as nossas
leituras dos outros, já que só compreendemos em função do que sabemos e nunca
podemos suspender o conhecimento que temos sobre ‘o que é uma sociedade’, o
qual conhecimento preside às questões que pomos e mantém-se além das óbvias
diferenças. O nosso ‘ser no mundo’ é de indivíduos e resulta de alguns séculos
de história filosófica, científica e industrial que as outras sociedades
ignoram: como compreender ‘seres no mundo’ em que o comunitário é primordial? É
esta dificuldade de estrangeiros que dita a experimentação em antropologia ou
história, a maneira de construir o respectivo laboratório a partir da literatura
já elabora(toria)da antes e dos respectivos motivos teóricos mais ou menos
sujeitos a reelabora(toria)ção (desculpe-se-me as grafias em neologismo, que
acentuam o carácter de trabalho inerente à noção de laboratório). Essa
experimentação – dita observação – consiste na redacção de textos experimentais que serão
citados como
estrato científico que o trabalho teórico deverá organizar para esclarecer.
117. O problema que põe esta
maneira de misturar inextricavelmente as questões da grelha teórica com as
respostas recolhidas – de informadores ou de arquivos – é equivalente (mas
porventura mais difícil do que) ao problema levantado no § 114: como é que
estas ‘citações’ da observação objectam à grelha teórica no coração laboratorial? A única
resposta que me parece plausível passará num primeiro tempo pelo trabalho
semiótico aduzido acima, relativo quer aos mitos ameríndios quer a textos
fortes escritos na sociedade que se busca conhecer, passará pelas tentativas de
restituição de códigos de textos que se revelem relevar igualmente da “lógica
das qualidades sensíveis” (Lévi-Strauss), da análise da articulação entre textos
e sociedade. O segundo tempo terá que fazer jogar o tempo na experimentação, o
tempo histórico: como no caso de Lévi-Strauss, tribos ‘mais historicizadas’
confirmaram as análises dele ‘experimentalmente’. Se for certo que o que
garante a estabilidade social e a reprodução das unidades locais e das
sociedades é o paradigma das receitas dos respectivos usos nas suas diversas
temporalidades, do quotidiano ao anual e à substituição de gerações, o trabalho
do cientista deveria poder chegar a descrever a lógica desse paradigma em
suas rotinas;
seria a ocorrência de acontecimentos que viria agitar e eventualmente substituir parcialmente
essas rotinas, eles jogariam como a objecção de que o trabalho laboratorial
precisava para se confirmar.
118. Permita-se-me um testemunho
pessoal. Um texto inédito intitulado Qu’est-ce que le christianisme? Essai
de phénoménologie historique apresenta alguns exemplos desta questão na evolução
histórica desse fenómeno crucial do Ocidente que veio a marcar-lhe o
calendário. A leitura das cartas de Paulo de Tarso (entre 50 e 60) mostraram
que o motivo de ‘Filho de Deus’ atribuído a Jesus era de origem grega e não
hebraica, o que foi confirmado pelos textos de intelectuais cristãos gregos do
século II dirigidos a gregos não cristãos que nunca mencionam sequer o nome de
Jesus nem a sua messianidade (Cristo), mas referem-no sempre como ‘Filho de
Deus’. A leitura textual do evangelho de Marcos foi testada nos de Mateus e de
Lucas, que dele dependiam, as modificações que introduziram no sentido da majoração
divina de Jesus correspondendo ao apagamento de elementos narrativos decisivos
da primeira leitura como sintomas da sua lógica contraditória. Uma boa parte
das transformações do cristianismo nos dois primeiros séculos, que os textos
contemporâneos delas tinham permitido relevar, vieram a ser ‘reformadas’
aquando da Reforma protestante do século XVI, de maneira inesperada para o
fenomenólogo, embora não sistematicamente em todo o lado, de forma parcelar em
tal ou tal confissão.
O enigma da evolução histórica das sociedades
119. Esta questão permite pôr o problema de saber
qual é o segredo da evolução histórica. O segredo ou os segredos? Do que se
propôs como definição de sociedade pelo sistema dos seus usos que se
transmitem, em unidades locais, de geração em geração, cada nova geração tendo
forçosamente que os aprender, percebe-se que é na alteração desses usos que
consiste a transformação social, não a de tal ou tal uso, mas a de usos que afectem
suficientemente o paradigma para o fazerem oscilar. Usos e por via de
consequência os costumes, a maneira de organizar o conjunto das unidades
sociais. Parece óbvio que as alterações dos usos das primeiras sociedades de
humanos se fizeram de forma muito lenta, a invenção do fogo sendo porventura a que
sublinha o primeiro limiar, introduzindo uma primeira ruptura com os primatas
vizinhos que consistiu em fazer da alimentação um uso cultural, marcando uma
espécie de invenção de ‘cultura’ como outra coisa do que só alimentação, só
‘natureza’: a culinária é com efeito uma mistura de natureza e cultura, esta
acrescentando-se àquela, ao animal caçado, ao vegetal colhido, para o
transformar e regressando em seguida à natureza como alimentação. Que as pedras polidas e outros instrumentos de bricolagem
sejam anteriores ou contemporâneos do fogo, no registo dos usos técnicos ou, no
dos costumes, haja anterioridade do interdito do incesto ou da invenção duma
língua duplamente articulada, de mitos acompanhando o ritual de enterro dos
mortos tornados antepassados, provavelmente tudo isso no tempo se articulou em
passos longos. Algo de semelhante se poderá dizer da invenção da agricultura
que, após o fogo, reformulou muito fortemente a relação dos usos sociais com as
necessidades da alimentação, em tempo pedindo também muitas gerações, lento
demais para que os seus actores tenham podido ter algo como uma consciência da
alteração histórica da respectiva sociedade, que parece relativamente moderna,
atestada na maneira como se falou de Renascimento (no século XVI, creio). Esta
lentidão aliás deverá ser uma constante de análise de história concreta em
grande escala, onde nunca se encontrarão inovações de usos senão no pano de
fundo de continuidades rotineiras, o que faz eco ao que atrás se disse da
rotina como a regra dos usos, que se aprendem para serem repetidos, o que se
disse da preocupação de todas as sociedades, em todas as épocas, com a aprendizagem
das crianças, adolescentes e jovens.
120. Ora, o crescimento
individual é, pelo contrário, um tempo de rupturas na aprendizagem até se
chegar a adulto, ao longo duma vida vivida, para alguns pelo menos, como aventura. E é onde se pode encontrar na
história momentos de rupturas assinaladas, os das invenções de escrita das escolas de exercícios
espirituais em torno dos textos dum Mestre que rompera com os usos dominantes
da sua sociedade (riqueza, glória da guerra, luxos da mesa e do corpo,
religiosos inclusive) e propunha outras intensidades para o viver, a sabedoria,
a temperança, a virtude, um misto do que chamamos intelectual com o que
chamamos espiritual (§ 89); foram
essas escolas que
justamente abriram a cena da inscrição como cena histórica destinada a médio ou
longo prazo a ter efeitos na cena da habitação. Por exemplo, não será casual
que dos dois generais que ficaram como os maiores da história da Modernidade
antiga, um deles, Alexandre, foi discípulo do principal filósofo cientista
dessa época, o outro, Júlio César, legou-nos a escrita da sua guerra da Gália.
É que, uso inventado por certo, a escrita tem efeitos aceleradores do
‘crescimento’ dos seus leitores que aprendem muito mais do que no seu contexto
tribal, tem por isso efeitos multiplicadores sobre os costumes entre unidades
sociais, no registo do politico e do religioso bem ligados os dois na cena da
antiga habitação. Foi essa aceleração que aconteceu em Atenas, a escrita das
leis sendo ocasião de reformulações da organização política da cidade em termos
de democracia, a discussão ética promovida pela representação teatral de tragédias
abrindo à reflexão filosófica de índole política, assim como de outra maneira
sucedeu em Roma com a construção do Ius, corpus do Direito acabado no final do século II
(Schiavone). Estas escritas implicavam, numa cidade como na outra, a
instituição escolar para os vocacionados, o saber tanto tendo uma componente
espiritual como política, como é claro num Platão e provavelmente também o será
num Cícero. São as cidades, com as suas especializações artesanais e as suas
escolas de leitura, que são propícias a algumas rupturas de usos, lentas e
aprendidas muitas vezes de outras cidades no primeiro caso, mais aceleradas por
vezes na escrita de textos, porque estes têm uma força específica que
transmitem aos seus leitores, a de avaliarem criticamente as tradições
recebidas, míticas e religiosas nomeadamente, mas também literárias e
eventualmente politicas: ora, é nesse gesto de avaliação que reside o que chamamos
modernidade.
Esta não releva apenas da cena da habitação, mas sobretudo da dos efeitos nela
da cena da inscrição: o lugar da escola é provavelmente o segredo da história,
no helenismo sem dúvida, no mandarinato chinês também, nas universidades que a
Cristandade medieval inventou e ofereceu à Europa por vir.
121. Nas universidades medievais,
houve uma aliança entre a escola ressuscitada e a igreja cristã, também esta
sendo uma instituição relevando da cena da inscrição, de textos hebraicos num
primeiro tempo e gregos dois séculos depois; essa aliança sobrepôs-se ao longo
interregno da modernidade em que as escritas, tanto bíblicas como
teológico-filosóficas se fecharam em latim tendendo a excluir o que chamavam
com a palavra grega – ‘heresia’ – que dizia escolher, tornando pejorativo um
termo que outrora designava uma ‘escolha’ moderna, a das escolas espirituais,
filosóficas ou não[103].
Ora, essas universidades foram tornadas possíveis devido ao renascimento das
cidades e do comercio entre elas, das melhorias que foi havendo nos usos
técnicos e que vieram a abrir os inícios da grande alteração social da história
do Ocidente, que irrompe sem nada de equivalente nas civilizações da China, da
Índia ou do Islão que se torna otomano que no século XV parecem semelhantes aproximadamente
em seus usos técnicos, senão mesmo à frente da europeia que começa a sair da
Cristandade. A primeira grande viragem moderna manifesta-se entre 1450 e 1520,
entre a invenção da impressão de livros e o seu papel na Reforma protestante,
entre o começo da volta marítima da África pelas caravelas portuguesas e a primeira
viagem de circum-navegação: viragem que tanto o foi nos usos que o comércio dos
oceanos e a colonização das Américas fomentou como nos livros tornados mercadoria
relativamente barata, como nos costumes que esta difusão da escrita revolucionou,
reformando o cristianismo na zona norte da Europa, a que escapara à ocupação do
exército imperial romano, à sua língua latina também que se tornara a da igreja
e da escola (e que será mais rapidamente traduzida do que no sul permanecido
católico romano), ao mesmo tempo que a recuperação da arte e da literatura
romanas (o movimento começou em Itália) colocava a figura humana no centro das
perspectivas modernizantes, encetando na dependência do nominalismo a
desteologização da filosofia que conhecerá uma ruptura mais forte no século
XVII, com Descartes e Galileu que já escrevem também em francês e italiano.
122. Se se tem em conta que os
laboratórios de Física que começam no século XVII não teriam sido possíveis sem
muitas invenções mecânicas que nos séculos anteriores permitiram a expansão das
manufacturas e o desenvolvimento mercantil duma economia em passo para o
capitalismo, percebe-se melhor como foi possível a ruptura de modernidade que
esses laboratórios – marginais durante dois séculos em relação à universidade,
por regra que também vale para os filósofos que contam – vão impor: a aliança
que aí se faz entre a busca de saber filosófico e geométrico da cena da inscrição
e os usos mecânicos da da habitação. Embora James Watt (1736-1819) não tivesse
podido inventar a Termodinâmica que um século mais tarde veio explicitar a
teoria física da máquina a vapor, foi-lhe estritamente necessário ser um
profissional especializado em instrumentos de experimentação laboratorial,
estar colocado na segunda metade do século XVIII na fieira histórica técnica e
científica que se abrira, de nenhum relevo sendo interrogar-se o seu saber científico
para decidir se ele foi um físico ou um engenheiro, se foi a ciência que precedeu
a máquina ou se esta terá sido uma invenção puramente empírica[104].
O que é aqui pertinente é que a
máquina tenha sido a poderosa invenção dum uso técnico jogando segundo um duplo
laço de autonomia de circulação e de multiplicação energética na cena da
habitação. Para
entendermos este ponto crucial, faça-se uma comparação com o mecanismo de
aprendizagem do uso de máquinas como piloto e o de aprendizagem com a leitura
de livros. Em ambos os casos, o autor da invenção, escritor ou engenheiro, está
ausente, ao invés da aprendizagem oral com professor ou manual com um artesão,
casos em que se pode dizer que aprender equivale a o aprendiz manter-se no
mesmo contexto do que o que ensina, que virá ou poderá vir a substituir. A
máquina e o livro mudam estruturalmente de contexto, que não é o mesmo entre
escritor e leitor, entre engenheiro e piloto.
123. O livro impresso alfabeticamente
torna o saber acessível ao não académico, ao leitor curioso de saber em vários
domínios sem ter que se tornar especialista neles, antes pelo contrário
ganhando uma polivalência que lhe permite repetir, em sua voz ou escrita, algo
do que aprendeu e se tornou seu saber autónomo, sem fazer concorrência ao
especialista. O livro impresso vai além do alcance deste, no sentido do que
chamamos divulgação: o que o leitor aprendeu do que outro compreendeu e
escreveu, torna-se nele por sua vez compreensão do seu mundo de habitação
(duplo laço da leitura: os olhos seguem o laço das linhas de letras, o laço das
frases dá a compreensão do que está escrito, segundo a capacidade do leitor e
multiplicando-lhe o conhecimento e o pensamento), que tanto pode ter a ver com
o paradigma dos usos da sua unidade social como com o laço politico que a une
às outras. Saber adquirido assim: do que outros lhe ensinaram, agora diz ou
escreve num jornal: eu sei que, acho que deve ser assim... Assim se forjou, com efeito, da
divulgação dos livros e da leitura e discussão dos jornais, a opinião pública que compreendeu como esse laço
social que os enlaçava até dentro da sua própria casa era dominado pelos
interesses das grandes casas aristocráticas que comércio e indústria estavam
despojando das suas rendas que lhes eram obstáculo, que havia que “laisser
faire, laisser passer”. Tal opinião pública foi amadurecendo para a necessidade
e legitimidade duma transformação (demo) crítica e democrática desse duplo
laço, cada casa (mais tarde cada indivíduo) devendo ter uma voz, um voto no
colectivo que designava os governantes da dimensão politica do laço, que aliás
se deveria separar dos que administravam a sua dimensão religiosa, que já
começara a branquear face a este saber divulgado pelos livros, o humanismo
(Sloterdijk). Foi-se tornando politicamente manifesto ser este humanismo
necessário, a níveis de compreensão diversos, por certo, a toda a população,
foi ele que preencheu a escola, que originou a sua concorrência lendária à
religião no mundo do catolicismo.
124. Voltemos então à máquina, ao
contraste com os ofícios artesanais mais ou menos exigentes de habilidade em
que o aprendiz deverá içar-se à do mestre: o piloto não é engenheiro nem tem
sequer que saber reparar uma avaria mecânica, pode até pilotar diversos tipos
de máquinas sem grande dificuldade, como qualquer um de nós o faz hoje em dia,
terá apenas que aprender a tornar-se a ‘peça piloto’, como no caso da condução
automóvel, para poder fazer a máquina circular em seu trabalho, além da grande
poupança de energia em relação às técnicas artesanais. O duplo laço da máquina,
que nos serviu de modelo parcial para os duplos laços da vida animal e das
sociedades e linguagens, é justamente a capacidade da cena da habitação dispor,
ao nível material da cena da gravitação dos inertes (!), de uma autonomia de
trabalho inédita. Foi esta conjugação na Europa clássica, de dois produtos
inventados em duplo laço, multiplicadores, um de energia, outro de saber,
capazes de se deslocarem longe dos seus inventores para o uso de terceiros, a
divulgação de livros e jornais alfabéticos[105] impressos e as máquinas (com efeitos que a
electricidade fará aumentar fortemente), contando com o capital entretanto acumulado[106], que esteve na raiz da
“grande transformação” (Polanyi) das sociedades humanas, da sua aceleração ao
menos durante dois séculos vertiginosos em contraste único com a lentidão de
milénios de história. Só ela merece o nome de revolução.
125. Todavia este ritmo mais
acelerado não se impôs imediatamente, a máquina a vapor não escapou
inicialmente à lentidão das transformações, apenas a invenção dos comboios e
dos ‘vapores’ transatlânticos algumas décadas depois (a primeira linha de ferro
é de 1825, os primeiros navios de cerca de 1840) veio impor-se ao conhecimento
maravilhado das populações, burguesas sobretudo[107].
Não admira por isso que o termo ‘revolução’, com o que ele implica de violência
e espectacularidade, tenha sido privilegiado par dizer não a transformação dos
usos mas a dos costumes que a acompanhou. Nestas ‘revoluções politicas’, o
lugar da escrita, dos livros a longo prazo das leituras, dos jornais em prazos
mais curtos e fogosos, foi primordial em ir acumulando nos leitores das cidades
o desejo dos benefícios que o progresso vai manifestando e, por via de
consequência, o sentimento de hostilidade em relação aos que impedem o acesso
generalizado a eles, de maneira que uma qualquer faúlha de ‘fait divers’ possa
vir a atear uma revolução na ordem dos costumes políticos. Ela sucederá ao
longo do século XIX sob duas formas nem sempre distintas, a da recuperação
burguesa de atraso industrial contra aristocracias ultrapassadas, a da
reclamação da independência de colonizações ultramarinas, as mais célebres
sendo, ainda no século XVIII e por ordem cronológica, a Revolução Americana e a
Revolução Francesa. O século XX conheceu um terceiro tipo, frequentemente
misturando os outros dois com uma corrente teórica marxista que pretendeu fazer
à nova burguesia o que esta fizera à aristocracia e criar aceleradamente, como
que dum só jacto e repartindo do zero, a modernidade enquanto sociedade
socialista sem senhores: nas sociedades de tradição civilizacional, talvez se
possa resumir o seu sucesso na aceleração da industrialização económica por via
estatal e o seu fracasso na ignorância do duplo laço entre as unidades
industriais e o Estado, que hoje se revela tanto na Rússia como na China no
retorno político às suas formas pré-revolucionárias. Quanto aos países de
colonização africana, foi a existência de recursos minerais ou petrolíferos
importantes que fez abortar os sonhos da libertação colonial em regimes
oligárquicos cujas lógicas seguem as antigas tradições de parentesco (a chamada
corrupção). Uma boa parte do problema destas novas nações é a de saber quantas
gerações serão precisas para se passar da situação tribal colonial a uma
modernidade equivalente à ocidental: não há história ainda que permita uma
resposta.
O enigma da invenção singular de usos
126. Um dos grandes enigmas dos
humanos : como é que as regras complicadas e subtis duma língua,
praticamente iguais em todos os falantes e condição para que eles se entendam a
falar como não conseguem com estrangeiros, como é que
elas são impressas numa criança que sem as conhecer (nem um linguista aliás as
conhece enquanto está a falar) as usa espontaneamente como a melhor coisa sua para se
poder explicar a outrem, podendo dizer coisas que nunca ouviu, já que sabendo
jogar com essas regras não em forma automática e mecânica de repetição mas em
termos de saber responder adequadamente à situação aleatória em que se
encontra, enlaçado o eu com os outros da sua tribo que lhe falam e com o mundo que eles dizem; é
que é parte ainda desse enigma, como esse falar colhe as coisas do mundo a dizer de
forma inerente a esse dizer, como essa capacidade de colheita faz parte da língua. Esse enigma
julgo que estará destinado fenomenologicamente a permanecer enquanto tal, como
parte forte do que chamamos liberdade, como aporia que nos institui. É no seu
seio que se coloca um enigma mais susceptível de circunscrição, o da invenção
de formas novas de usos. Este enigma consiste no facto de por um lado, a
invenção provocar surpresa, por vezes até ao próprio inventor, mas por outro
ser conseguida a partir de usos já estabelecidos: surpresa para os usos da
tradição donde ela resultou e que
ela ‘critica’, e sobre a qual terá efeitos de novos usos, controversos muitas
vezes mas que sobreviverão à morte do inventor. Por definição, um invento é uma
composição inédita de elementos até aí mais ou menos esparsos que revela uma
lógica dinâmica nova, uma possibilidade (dunamis) capaz de atrair aprendizes, um paradigma até aí
não existente cuja fecundidade o torna transmissível de geração em geração,
capaz de sobrevivência devido ao seu movimento, ao seu trabalho, aos seus
efeitos (energeia), que é justamente o que surpreende. Em resumo, um duplo laço novo e
interessante para muitos que o aprenderão.
127. As invenções mais poderosas
não tiveram inventores, as da evolução dos vivos, as dos primeiros milénios
humanos, da linguagem e da agricultura, dos artesanatos e da escrita, até
aparecerem os primeiros nomes que foram historicamente guardados na Modernidade
antiga, distinguidos dos heróis lendários, dos reis conquistadores, aparecidos
nas escritos das escolas espirituais do primeiro milénio antes da nossa era,
nas primeiras literaturas gregas e romanas, nos que primeiro escreveram
filosofias, compilaram leis. Se nos ativermos aqui a invenções de que possamos
ter algumas narrativas que nos oferecem detalhes do processo de invenção, vale
em todo o caso começar por lembrar as ilhas Galápagos, a 1000 km do continente
sul-americano, não susceptíveis de contaminações de ADNs estranhos, que se
deram a Darwin como uma espécie de laboratório da evolução. Do que hoje sabemos
do processo da reprodução celular, ela consiste na maneira como três séries
diferentes de moléculas de carbono transmitem entre elas uma mesma diferença: do ADN ao ARN mensageiro, deste
à proteína que ele sintetiza no citoplasma. Esta mesmidade opõe-se à evolução (as células
são estruturalmente conservadoras, como se viu) e o que Darwin descobriu mostra
como as diferenças de cena ecológica das várias ilhas tinha favorecido, ou até provocado, as
diferentes evoluções das mesmas espécies iniciais (tartaruga e tentilhão), como
se a intervenção da sexualidade, dos cruzamentos de ADN macho e fêmea tivessem
fomentado uma diversidade de indivíduos que, ao fim de numerosas gerações,
terão resultado em espécies endogâmicas[108],
de indivíduos incapazes de se cruzarem entre si. Se foi assim que as coisas se
passaram, sexualidade que se revela inventora de espécies e sua enclausuradora
depois, processo que terá sido o que de forma geral terá presidido à evolução
animal, em que artrópodos, aves e mamíferos são mais estritamente endogâmicas
do que as anteriores em complexidade.
128. Este exemplo vem para
sublinhar o papel da cena ecológica no processo evolutivo[109],
o que transposto para a invenção por humanos leva a sublinhar o papel do
contexto do/a inventor/a nas cenas da habitação e inscrição, aonde haverá que
propor como primeiro factor da invenção, o abalo do contexto, o ‘tremor de
terra’ sofrido, um factor inexplicável fenomenologicamente ao qual se poderá
aplicar uma expressão que Levinas forjou para os santos (grandes inventores!):
eles serão movidos, em seus excessos de (com)paixão pelos grandes sofredores,
por um rasto que lhes sobreveio “num passado que nunca foi presente”, uma
insatisfação com o que aprendeu do seu contexto manchado por tão grande miséria
de humanos que o põe em marcha como quem coxeia, um pé dentro daquilo que sabe
e outro fora, em busca do que ignora, do que não existe ainda. A esse passado
que nunca foi presente pode ter pertencido uma qualquer iluminação, o testemunho
dum terceiro que abre uma paixão, uma vocação que põe a caminho sem se saber
bem ainda para onde. As biografias de inventore/as, de coisas muito diferentes,
começam muitas vezes por essa pré-história que marca o biografado como alguém
capaz de acolher algo inédito porque se pôs em busca dele ainda quando não
sabia do que se tratava: abertura duma possibilidade no contexto para a qual vai ser
preciso muito tempo, erros e enganos, desânimos e recomeços. Voltaremos em
breve a este coxear das tentativas e das falhas.
129. De forma geral, pode-se
dizer que a invenção dum novo uso pressupõe outros usos já estabilizados a que
se acrescenta uma melhoria que altera a regulação, por vezes um paradigma serve
de analogia para a ‘revolução’ dum terceiro, percebida por alguém que encontrou
impasses neste ou trazida por quem entra no paradigma sem ter passado pela
formação escolar de carreira. Mas obviamente que há que contar com o papel da
linguagem e dos números. Um uso é uma sequência de gestos a que se adequa, em
paralelo se dizer se pode, a receita, narrativa que diz essa sequência, a sua
transformação tanto se faz nas tentativas gestuais como nas de repensar a
narrativa, antecipando como ‘hipóteses’ as tentativas com maior flexibilidade.
Igualmente os números são uma sequência começada pelos dedos das mãos e
ordenada por repetições nas dezenas, centenas, milhares, a que se justapõem
conjuntos, por exemplo de laranjas que se querem contar, fazendo corresponder a
cada uma que se acrescenta uma nova unidade, um novo dedo quando se conta pelos
dedos. A vantagem aqui não é tanto a da antecipação mas a das operações que em
seguida se podem fazer com os números (somar os correspondentes a diversas
frutas para obter o total destas). Ora bem, estes dois exemplos simples
correspondem a invenções imemoriais que continuam a jogar nas formas de aprendizagem,
já que continua a ser assim que se aprende, e não só as crianças. Aprende-se
nestes dois exemplos triviais a colocar as séries de ‘coisas’ na linguagem ou
na numeração e a operar com estas fora do contexto daquelas para depois lhes
regressar. Saber passa sempre por esta sair do contexto para lhe regressar
mais tarde, por pôr face a face séries diferentes e jogar dumas para as outras
segundo analogias (de nomes ou de contas). A diferença entre aprender e inventar é que um se
faz por meio de alguém que já sabe que é o que falta no outro. Contra a ironia
dos que riem de quem ‘descobriu a pólvora’, há que dizer que essa descoberta
pode ser um passo no aprender a inventar o que ainda não foi inventado.
130. Na tradição europeia deu-se
importância na aquisição de conhecimentos ao mecanismo da chamada “associação
de ideias”, na qual, segundo Freud que na sua terapia o explorou a fundo sobre
sonhos, lapsos e anedotas, há duas formas diferentes. Seja um exemplo banal.
Alguém lê em voz alta o título dum jornal (final dos anos 90) que desencadeou
em mim a seguinte associação de ideias. (a) “um bispo diz que o episcopado
português deve apoiar a classe operária”; (b) brinco sublinhando o atraso
eclesiástico habitual na sua relação ao mundo profano; (c) penso em seguida nos
que dizem que o papa J. Paulo II contribuiu muito para o fim do comunismo
soviético; (d) e em seguida no que um jornal recente lembrava de como esse papa
tinha convidado as mulheres bósnias violadas por sérvios a não abortarem e
deixarem nascer os bebés; (e) penso então na Bósnia-Herzegovina num lapso de
Freud (analisado na Psicopatologia da vida quotidiana), nome geográfico de que nunca
ouvira falar antes dessa leitura; (f) penso enfim como o inconsciente
descoberto por Freud tem a ver com esta questão da invenção que então estava a
tentar perceber. Analisando as seis ‘ideias’, vê-se que de (a) a (d) a
sequência faz-se por afinidade entre elas, (c) objectando a (b) e (d) sendo uma
resposta irónica malévola ao remorso dessa objecção; de (d) a (e) há ruptura, é
o significante literal ‘Bósnia’ que faz transição, um ‘salto’ para outra coisa
sem relação com (a-d), voltando em seguida a afinidade dos assuntos, a relação
do trabalho de Freud com o que eu procurava. As primeiras afinidades têm a ver
com o meu percurso cristão e um certo anticlericalismo que me ficou, a última
com o meu ofício de filósofo da linguagem que leu Freud. Tudo banalidades, mas
vim a inscrever este exemplo no trabalho que estava escrevendo (Belo 2007, cap.
10, § 35) porque foi assim que Freud permitiu esclarecer um pequeno ponto do
que estava à procura, o que sucedeu devido ao ‘salto’ entre (d) e (e) num
significante literal e sem afinidade de sentidos, portanto perfeitamente casual
de que só resultou algo que me interessou por justamente eu estar alerta,
coxeando. Ora, escrever um texto inédito significa fazer uma composição entre
várias leituras diferentes, por vezes sem relações entre elas, mas que podem
cruzar-se no tempo da escrita, um pensamento trazido por esta, ao terminar duma
frase faz surgir uma outra não prevista que se encadeia bem com o que a antecedia.
A escrita permite frequentemente fenómenos destes, é uma das felicidades que
ela traz (se se souber despistar o risco de surrealismos), algo que se pode
pensar ser um mecanismo interno das invenções, que por vezes faz soltar um
‘eureka!’ de contentamento.
131. Boa razão para que na
pedagogia se insista com os estudantes em trabalhos escritos, alguns aprenderão
a descobrir, que inventar é mais raro. O arquitecto Manuel Vicente numa
entrevista ao Expresso em dezembro de 1988 distinguia entre as duas situações. Face a uma
encomenda com o seu caderno de encargos a que há que responder, o arquitecto
tem que ‘inventar’ uma forma, em seguida os outros mais novos do atelier vão-se
por a ‘descobrir’ os detalhes das soluções concretas dentro dessa forma,
volumes internos, portas e janelas, e por aí fora. Na história do pensamento
ocidental chamamos Filósofos àqueles que inventaram paradigmas de que muitos
outros depois descobriram aplicações, como me aconteceu a partir dos três
grandes pensadores da Fenomenologia e de alguns grandes Cientistas do século
XX: pondo-os face a face, correlacionando os paradigmas das suas invenções,
pude descobrir fecundidades deles insuspeitadas, este novo paradigma do duplo
laço, mas que parece difícil de ser apreendido, de tal forma mistura saberes de
domínios tão diversos que raros poderão apreciar o conjunto sem perderem o pé.
132. Não serão raras as
narrativas de invenções em ciências, mas a que J. Watson fez da ‘descoberta’[110]
da dupla hélice com F. Crick permite perceber muito bem os seus antecedentes e
consequentes, o seu alcance variando com o ‘zoom’ do enfoque. Segundo E.
Banlieu[111], eis o que
eles sabiam já: a composição química do ADN (açúcar, fosfato, as quatro bases)
como série principal, a noção de hélice em certas moléculas de proteínas de Pauling
e a importância das ligações de hidrogénio, que os ácidos nucleicos podem
conter a especificidade genética (Avery), as parcerias duas a duas das bases e
em proporções variáveis segundo as espécies (Chargaff), as fotos
cristalográficas em RX e as duas cadeias (R. Franklin e Wilkinson); toda esta
herança oferecia-se como sequências esparsas do puzzle a resolver, foi na
composição do conjunto que consistiu o essencial do trabalho dos dois sábios,
nenhum deles sendo homem de laboratório[112].
Tomando um pouco de distância e considerando as descobertas sobre o ARN
mensageiro de Monod e Jacob alguns anos depois, o conjunto de todas estas
descobertas consiste na invenção da biologia molecular, sendo sem dúvida a dupla hélice
que constitui a viragem decisiva, acabamento das várias descobertas anteriores
e presumo que as posteriores dos franceses tornadas possíveis. Mais do que a
solução dum puzzle, tratou-se de facto da espectacular instituição dum
paradigma proporcionador de inumeráveis puzzles.
133. Voltemos ao tremor do
contexto que afectou o futuro inventor ou descobridor, o tremor da sua
textualidade a que chamamos questão, em sentido forte, força que põe em movimento e sentido
que busca orientação, faz sair das pequenas rotinas aprendidas como formação
académica e profissional, torna-o um ‘buscador’ (chercheur), alguém alerta, que deverá
elaborar ‘hipóteses teóricas’, uma espécie de ‘síntese a priori’ antecipadora
da experiência, mas que tem que ser lentamente construída, a pouco e pouco. É
essa síntese que falta, que unifique e ponha em movimento o duplo laço da coisa
a inventar, falta porque as sequências que há não são suficientes ou que o seu
ajuste com a sequência principal não se faz, não pega. Anda-se mas como que o
passo em falso, o passo falseado no seu passar. Quando se avança um dos pés, o
outro fica firme sobre o solo, dando segurança ao andar, depois este avança e o
primeiro firma-se, o pé que vai para o futuro dependendo da segurança do outro
pé, o pé passado. Ora, foi este fundamento no solo que o tremor falseou, que
implica o coxear do que busca, e isso pode durar anos, toda uma vida entre 1927
e 1962 no caso de Heidegger, o passo de escrita de Ser e Tempo interrompendo-se ao abordar uma
secção intitulada “Tempo e Ser” que foi o título dado à conferência de
acabamento: tratava-se do tempo e do abismo, do sem fundo. Se mantivermos a
diferença de M. Vicente entre invenção e descoberta, a primeira diria a instauração
de paradigmas, a segunda a resolução de puzzles, será óbvio que a primeira tem
muito mais de bricolagem, de vazio de ‘dados’, pede mais ao acaso, o próprio
termo de questão e de busca implicando que se trata de falta de controle do
processo, que é este que conduz na incerteza e que manifestará a novidade que
se move, suscitando uma fulgurância no inventor, o que em filosofia se chama e-vidência, com o fim do es-forço e da e-moção do coxear, da força e do
movimento vindos de dentro (e-). É a obra que se revela como algo capaz de caminhar
doravante em seu duplo laço, do coxear do inventor pode nem haver narrativa.
Mas o processo não termina aqui, a revelação da obra terá que ser dada a outros
que participem de alguma forma do coxear questionante do inventor, capazes pois
de serem revolucionados por sua vez à leitura da obra, seja ela literária,
científica ou filosófica. Derrida lembrava algures que não saberíamos de Kant
se a sua obra não tivesse tido dois ou três leitores dignos da sua novidade.
134. Qual é a diferença entre a
recepção desses três tipos de textos literatura, ciência, filosofia, tão
diferentes entre si? No dossier do livro de Watson, a questão é posta assim: se
Crick e Watson não tivessem conseguido o que conseguiram, haveria outros que o
teriam feito, seria apenas uma questão de tempo, Crick chega a propor dois ou
três anos, enquanto que, sem Shakespeare ou Picasso (Chargaff), sem Rimbaud ou
Kafka (Péju), as suas obras nunca teriam sido inventadas. Enquanto que os
cientistas se sucedem uns aos outros, a ancestralidade é estrutural na
definição de paradigma nas ciências, a obra literária será comentada,
analisada, mas permanecerá um monumento cultural singular, cujo efeito é o de
tornar outros os seus leitores, a sua leitura modificando-se com as gerações de
leitores. Quanto aos textos filosóficos, eles situar-se-ão entre ambos: guardaram
a singularidade dos textos literários –
só Platão teria escrito a sua República, Aristóteles a sua Physica, Kant as suas Críticas – mas partilharam os paradigmas
dos motivos definidos, com alterações devidas às mudanças de contexto civilizacional
e as discussões que eles provocaram. A sua recepção será também semelhante: se
houve estima pelos textos gregos citados, também é certo que Atenas, no final
da sua época de esplendor, não parece que teria sido diferente se eles não
tivessem sido escritos. Mas é muito provável que Euclides não teria escrito os
seus Elementos sem os progressos da geometria na Academia de Platão nem da lógica da
argumentação silogística no Liceu de Aristóteles. É que há uma relação da
filosofia às ciências que dá um som diferente à posteridade dos textos
filosóficos: Atenas talvez não, mas a Europa não teria sido o que foi sem estes
textos dos grandes ‘inventores’ gregos, nem sem os escritos a respeito dum
outro inventor, judeu, de que a sua Galileia natal também não terá beneficiado
grandemente. Mas enfim, grande diferença entre estas obras singulares e o belo
nariz duma certa Cleópatra! Quando se pensa que os textos que Aristóteles
publicou se perderam como tantos outros e que os que temos, notas de ensino sem
dúvida, foram descobertos por acaso dois séculos mais tarde, o papel do acaso
na história ocidental mostra-se vertiginoso: os nós das grandes articulações
dessa história, ao contrário dos da evolução biológica, só o foram porque esses
textos foram conhecidos e lidos incessantemente nas escolas europeias durante
séculos, onde textos singulares abriram caminhos largos também, dum Aquino, dum
Occam, dum Kant, tão improváveis aquando da sua publicação. Dir-se-á que também
sem os textos literários de Homero ou de Sófocles a Europa não seria a mesma;
sem dúvida, sem eles também Atenas não seria a mesma, nem teria havido sequer
Platão e Aristóteles. Mas a diferença consiste na singularidade: será muito
ousado pensar que sem Cervantes ou Shakespeare haveria literatura europeia, mas
que sem os dois gregos não haveria filosofia[113],
que veio a tornar possível, em conflito com a teologia, a invenção do humanismo
e depois a do laboratório científico em suas alianças com a geometria e a
mecânica?
135. Na maior parte dos casos, as
invenções dizem respeito ao aparelho regulador, ainda quando há invenção de
paradigmas. A diferença entre filosofia e ciências, por um lado, e a
literatura, por outro, terá a ver com o facto de que as duas primeiras fizeram
invenções de ‘motores’ na cena da inscrição[114],
como se disse. A invenção da definição foi devida a Sócrates, disse
Aristóteles, acrescentando que ele só se ocupou de questões éticas, Platão tendo
achado que a definição não se podia aplicar a coisas sensíveis que estão sempre
mudando, fez delas as Formas ideais eternas (Metaphysica, A, 6,987b1ss). Com isso, inventou
o texto gnosiológico (embora sob forma de diálogos) e, além da ética e da
política, a ontologia com os seus duplos laços enlaçando leitores para a
abstracção. Houve assim três tempos na invenção da definição: o da hermenêutica
ética de Sócrates, procurando levar os seus jovens interlocutores a definir as
virtudes para as praticarem em autonomia, sem as terem aprendido; o de Platão,
inventando a ontologia em função pedagógica da ética e da política; o de
Aristóteles, que deu à definição o alcance filosófico que ela veio a ter
depois, arrancando as coisas a definir ao seu contexto, reduzindo-lhes os
acidentes e argumentando em seguida com essências intemporais e
incircunstanciais. Três tempos que partiram da maneira como em Sócrates a
dimensão espiritual da sabedoria ganhou dimensão intelectual, como Platão
sublimou de imortalidade a alma humana e as coisas definidas como inteligíveis,
espiritual e intelectual jogando a par, duma maneira que vingará no platonismo
médio, no cristianismo e no neo-platonismo da Modernidade antiga, como
Aristóteles enfim autonomizou as duas dimensões e articulou na Physica a definição entre filosofia e
ciências. A definição só se tornou ‘motor’ do discurso filosófico após esta
dupla viragem, que permite distinguir claramente entre esta herança grega e as
literaturas de sabedoria das grandes civilizações asiáticas[115].
A primeira precisou de introduzir na Academia a geometria como condição
intelectual de acesso à sabedoria, a segunda deveu-se ao facto do novo aluno da
Academia ser filho dum médico e trazer pois entre os seus interesses a
preocupação pela phusis, pelo movimento de alteração das coisas: a geração e a corrupção dos
vivos, em vez de marcas defeituosas, serem encaradas como enigma a compreender.
Empíricos embora, paradigmas vindos de fora, quer o saber geométrico e
astronómico, quer o dos médicos de então, vieram pois fecundar o que Sócrates
buscava e o levara a deixar a busca pela phusis dos seus antecessores.
Igualmente, a invenção da Física enquanto ciência do movimento uniformemente
acelerado por Galileu implicou a introdução da geometria na filosofia, duma
maneira que teria enchido Platão de espanto, assim como a mecânica, como Newton
dirá, o trabalho artesanal que sem as mãos hábeis do físico filósofo não teria
sido inventado dessa feita, a habilidade de medir o tempo pesando a água que
escorre durante ele. Ora, toda a argumentação de Galileu é feita de forma
geométrica, maneira que herdou da astronomia, como o telescópio terá ajudado, à
maneira laboratorial, a cogitar a experiência. Ora, no decurso desta, sem que
nunca sejam apresentados resultados das medições feitas, afastada a hipótese de
relação linear entre distância da bolinha que desce e o tempo da descida,
põe-se a de a relação ter a ver com quadrados: donde vem a hipótese, a
discussão não esclarece, mas pode-se pressupor que seja uma maneira espontaneamente
geométrica de raciocinar, como se faz por exemplo no teorema de Pitágoras. As
invenções socorrem-se sempre da prata da casa, das pratas de várias casas.
Quanto a Watt, é mais fácil de argumentar, já que, engenheiro de instrumentos
laboratoriais, ele dispôs da máquina hidráulica de Newcomen e do princípio da
energia do vapor de água fazendo mover um êmbolo num cilindro (há quem defenda
que foi este o verdadeiro inventor da máquina a vapor) e corrigiu-a suficientemente
para a tornar viável como ‘motor’ industrial, além da mera extracção de água
das minas de carvão: pode-se pensar que o trabalho essencial da máquina de Watt
consistia em, através dum sistema de biela e manivela (que já existia),
oferecer o movimento mecânico dum eixo rodando rapidamente, as correias de
transmissão desse movimento sendo em seguida utilizadas em fábricas para
aparelhos diversos, incluindo posteriormente comboios e navios.
136. Eis a definição geral de
usos sociais: aprender com maior ou menor facilidade o que outros inventaram
dificilmente.
Mas em filosofia, os grandes textos inventados que nos ficaram ainda hoje são
de leitura difícil.
137. Seja-me permitido dizer
como, lendo Derrida sobre o duplo laço, ‘descobri’ em 1985, a composição das
cinco disciplinas científicas com a fenomenologia, tal como a publiquei a
primeira vez numa nota de pé de página dum artigo no Jornal de Letras, semanário de cultura. Quando 20
anos mais tarde andei em Paris à procura dum editor para os dois volumes que
tinha escrito, poderia pretender que tendo descoberto tanta e tanta coisa em
tanta e tanta leitura, o embrião de 85 tinha-se mantido no essencial. “A
energia em estado puramente livre é explosiva: por isso os físicos fizeram do
‘big bang’ o mito da origem do universo. É certo que uma explosão pode ser
‘útil’: para matar os japoneses de Hiroshima, para libertar pedras numa
pedreira. Mas as espingardas e os canhões por um lado, os motores de explosão
por outro, procuram ligar fortemente essa energia de explosão para a ‘dirigir’
para um trabalho determinado. A esta primeira ligação da energia, moderando-a,
controlando-a, dirigindo-a, chamarei motor; à segunda ligação, já de ordem mecânica ou
cinética, que distribui, canaliza, utiliza a energia para efeitos estritamente
determinados, chamarei aparelho. O motor tem pois a ver com uma forte domesticação de
energia e o aparelho trabalha com ela sobre matérias primas para transformar
estas em produtos novoos, sejam estes quais forem. Ao conjunto chamarei máquina (no universo que conhecemos não
há senão máquinas, e eventuais degradações puras, como os buracos negros dos
astrónomos, ou provisórias como os cadáveres) [...] (1)”[116].
A nota de pé de página rezava assim. “ (1) Sejam quatro exemplos de outras
‘máquinas’ : o ser vivo é feito de uma primeira ligação, a dos genes de
cada célula, e duma segunda, a do sistema fisiológico do organismo, com
destaque para circulação da seiva ou do sangue; a ‘psiquê’ humana, do
recalcamento (primeira) e do enquadramento linguístico enclausurante a que
Freud chamou o ‘superego’ (segunda); a linguagem auditiva oral, do sistema
fonológico (primeira) e do sistema sintáctico-semântico (segunda); a sociedade
do interdito do incesto e consequente ordem dos lugares na família (primeira) e
da lei mais clausura ideológica (segunda). A primeira ligação caracteriza-se
pela repetição / reprodução extremamente estrita, pela sua como que
inexpugnabilidade: é o motor; a segunda pela maior adaptabilidade do sistema
de regras, pelo seu maior leque de
diferenças, maior lugar para as singularidades concretas: é o aparelho. O que
parece curioso: em qualquer das ciências destas ‘máquinas’, o que creio ser a
grande dificuldade de análise é, em todos os casos, a maneira cmo motor e
aparelho se articulam (determinações e indeterminações). Quanto à maneira como
estas ‘quatro’ máquinas se articulam entre elas para fazerem os humanos, talvez
seja questão para o século XXI.”
Filosofia com Ciências: da Physica à Fenomenologia
138. Resumindo a introdução sobre
a história da diferença filosófica. O motivo da diferença não parece ter sido
pertinente no pensamento grego clássico, com a excepção fundamental da que ele
herdou da mitologia: a diferença entre o Céu dos deuses e a Terra dos humanos e
outros vivos. Dois tipos de diferença: entre várias coisas, por um lado, entre
as coisas e quem as pensa, por outro. A definição reduz a primeira diferença
entre vários entes com o mesmo nome aos ‘acidentes’ particulares de cada um,
como Aristóteles explicitará. A discussão filosófica será em consequência sobre
as diferenças entre as ousiai definidas como ‘essências’, Platão tendo inserido a
diferença entre as coisas e quem as pensa na que há entre o Céu e a Terra, a
alma humana pensadora e as Formas ideais pensadas relevando do inteligível, do
simples, do imortal. Como se viu, a ruptura introduzida pelo laboratório de
Física foi a de as diferenças deixarem de ser entre essências para passarem a
ser entre medidas geométricas que reduzem as coisas medidas e de introduzir o
motivo de força, enquanto que de Descartes a Hume e Kant se reduz a diferença
entre o Deus do Céu e o pensador, complementando a maneira como Newton fizera
da Terra um astro do Céu, estendera a Física a englobar a Astronomia e anulara
a diferença mítico-cosmológica. Em Husserl, a diferença fenomenológica
dessubstancializa a consciência intencional, com redução em seguida da
empiricidade da coisa intencionada. Heidegger inverte a relação: não mais as
coisas antes das diferenças, mas a diferença ontológica, o Ser (pensado) é que dá as coisas, os entes, ocultando a
(força da) doação para os deixar ser em sua temporalidade. Se a linguagem é a “casa do Ser” e
se o seu pensamento é de palavras (gregas e alemãs) que indagará, ela não
intervém todavia na diferença ontológica, onde o pensamento predomina sobre a
palavra. Derrida herda dos dois grandes pensadores alemães, mantendo a reversão
heideggeriana que radicaliza enquanto escrita (que implica gravação, trabalho)
e já não ‘ser’, e aplicando a diferença fenomenológica à linguagem no seu
processo de escuta e de aprendizagem, que institui o sujeito que fala e pensa
(ouvindo-se). É a différance, espacialização e temporalização em relação do outro ao
outro e como inscrição que se repete como o mesmo (eidos, essência), repetição que todavia se excede
singularmente, sem que repetição e excesso sejam decidíveis, partilháveis (como
Aristóteles decidira entre ousia e acidentes). Como é que da différance a fenomenologia passou ao duplo
laço
gramatológico? Introduzindo uma nova questão, que se revelou ser a reformulação
na actualidade da questão da Physica de Aristóteles distinta da da Metaphysica, a questão
do movimento das
coisas, como é que elas se movem ou são movidas. Ora, em sentido geral, esta é
a questão das ciências, as quais se ocuparam de algumas dimensões dos humanos
(corpo, sociedade, trabalho, linguagem...) de que a ‘alma’ (o ‘sujeito’, a
‘consciência’) tinha sido despojada pela definição filosófica: tratou-se de ter
em conta as principais descobertas cientificas do século XX nesses domínios,
iluminando-as pelo duplo laço de Derrida (que o dedicara às urgentes questões
éticas e políticas) na sua perspectiva gramatológica. Pode dizer-se que a resposta
a essa questão consistiu na restituição das leis de produção e circulação das
quatro grandes cenas, bem como da anatomia das respectivas unidades fenomenológicas.
139. Pode-se então tentar
comparar a antiga Physica com esta nova Fenomenologia (sem confundir os mesmos
termos que jogam num e no outro caso, como ‘motor’), a ousia e seus
acidentes comparada
com a différance enquanto duplo laço, ambas buscando compreender o movimento e tendo como
exemplo maior o dos vivos, que nascem, crescem alimentando-se e morrem. Um
‘motor’ (kinoun) exterior efectuando-se sobre
uma ‘matéria’ (hulê) com ‘forma’ (morphê) altera esta visando uma
finalidade (entelecheia), uma obra (ergon),
faz mover a forma, dando-lhe força de fora. Ou seja, uma “substância
(essência)” (ousia) feita de uma ‘matéria’ com ‘forma’ tem capacidade (dunamis) de tal ou tal trabalho (energeia) ou fim (telos) que um motor exterior faz
movimentar dando-lhe força. Esta é a grande noção de substância do Ocidente, que Aristóteles
inventou para compreender como sucede o movimento, a alteração duma coisa (que
cresce ou aprende ou se desloca), a diferença entre uma ‘forma’ e outra na mesma ‘matéria’. O que
é que faz a inversão que põe a diferença antes da substância? Tentemos replicar
esta quádrupla causalidade num duplo laço: há um ‘motor’ que agora é interno
(da ‘exterioridade’ guarda o ser de elementos da espécie precedente) mas
alimentado energicamente de fora em ciclos temporais (como maneira de garantir
a positividade entrópica), enquanto que o ‘aparelho’ é o que dá sentido, a
direcção do movimento, a sua finalidade (entelecheia), como um animal que busca que
comer movido pela hormona do apetite; a ‘matéria’ corresponde ao que ele é como
singularidade excessiva, a ‘forma’ à sua especificidade, a diferença repetida
da mesma
espécie biológica (ou sociedade, ou língua). ‘Motor’ que todavia é
indissociável do ‘aparelho’ – sem separação na ‘substância’ – o qual trabalha
como dunamis, isto é, tem possibilidade de circular (entelecheia / energeia) na cena: possibilidade de
comer, beber, dormir / de ver e
mexer, aprender, trabalhar, fazer / de ouvir e ler, aprender, responder,
escrever. Porquê a indissociabilidade? Porque nenhum dos laços só consegue o
movimento, este implica que seja retido o que é alimentado como condição de força e seja diferida a direcção do movimento segundo as
possibilidades do aparelho, as suas regras adequadas à cena: duplo laço como différance, como condição de produção de
entropia (Prigogine), da estabilidade instável do movimento, digamos, condição
do ‘salto’ duma cena à outra (da bioquímica à biologia, no caso do metabolismo
que Prigogine analisou): um dos laços enlaça elementos da cena precedente como
motor, o outro enlaça elementos da nova cena, laços não substanciais, puras
ligações de ‘substâncias’. E porquê a inconciliabilidade? Pela mesma razão de
que há um ‘salto’ entre as duas cenas: a primeira cena chegou a um caos de
assemblagens, de unidades de circulação, na qual se inventou uma ‘saída’ para
uma nova cena, instável segundo a antiga mas com uma nova estabilidade, novas
regras, incompatíveis com as antigas. O que implica que a nova cena comande a
permanência do retiro dos elementos do ‘motor’ por força da sua lei de circulação: a) que os
aparelhos de mobilidade e de nutrição levem moléculas a cada célula e a
inibição do ADN permita a reprodução celular e portanto a do animal individual;
b) que o paradigma seja ‘usado’, efectuado, movido por useiros com força e
habilidade, isto é, sejam alimentados diariamente e tenham aprendido os usos,
devendo também descansar nocturnamente desse trabalho diurno; a) é condição de
b) que por sua vez tem a) entre os seus efeitos, a alimentação de cada um;
também falar e escrever, pensar e fazer ciência ou arte implica a) e b), mas também
implica b) da cena precedente, isto é, as condições da instituição como
habitação (onde se alimente e durma, onde trabalhe).
140. São as cenas que são
doadoras disto, por via doutras assemblagens que fazem doações retirando-se
para que haja ‘autonomia’ como Aristóteles a via, kath’auto. O retiro da doação é a
‘heteronomia’ da cena em geral e da espécie (da especialidade) em especial, os
dois níveis de Ereignis de cada cena. A diferença antes da substância é a heteronomia antes da
autonomia, doando-a e retirando-se, a espécie antes dos indivíduos (da galinha e do ovo),
os paradigmas da casa e da cidade antes dos useiros, a língua antes dos
falantes, o paradigma da ciência antes do cientista, em resumo, a tradição
antes da nova geração, como o campo de forças antes dos astros ou dos graves. São estas
regras da heteronomia da cena que as ciências estudam, descobrem, enquanto que, por definição de
autonomia, os mecanismos concretos em seus duplos laços de adequação à cena,
lhes escapam (tal como os acidentes de Aristóteles e os númenos de Kant), já
que são singularmente excessivos em relação à heteronomia. Destes, elas retêm os
limiares, o além / aquém dos quais o vivo ou a unidade social ou o humano não é
viável na cena: por exemplo, os parâmetros dentro dos quais os índices dos
teores do sangue devem situar-se numa análise concreta, os limites
paradigmáticos do corpus dum texto em análise ou duma unidade social.
141. Se se parte das substâncias,
não se pode decidir entre a galinha e o ovo, ambos se implicando mutuamente
(embora esta galinha com outro ovo). Como a tradição é entre substâncias e dela
mesma não é substancialmente nada senão a doação (de pais a filhos, de mestres
a discípulos), diferença temporal dum a outro, mas nem sensível nem
inteligível, nem simples nem composta, percebe-se que os Gregos tenham tido que
recorrer a entidades simples que escapam ao movimento, a alma imortal, o Motor
primeiro imóvel, ao eidos inteligível eterno, como radicalmente outros do que o sensível
do movimento dos compostos gerados e mortais. Que a alma tenha parte indissociável
com o eidos
resultante da definição e que esta seja fenomenologicamente ‘nada’ de
substancial, uma operação de escrita capaz de outras definições e argumentos de
saber que permitem conhecer economicamente uma variedade grande de coisas do
mundo, eis o que permitiria compreender que nos laboratórios de Galileu e de Newton
tenha vindo a revelar-se um ‘nada’ de diferenças medidas extremamente fecundo
de técnicas e capaz em seguida de afastar a alma e o primeiro Motor da geração
de pensamento, compreender que alguns séculos mais tarde outro ‘nada’, de
diferenças sonoras e gráficas feito(Saussure), pôde ser fecundo também. Uma
linguagem duplamente articulada ou ligada é um ‘nada’ duplo (língua como
sistema de diferenças sonoras ou gráficas) que liga por um lado fonemas em palavras
e por outro palavras em frases e discursos que pensam, que é como podemos
compreender hoje o que os Gregos chamaram logos, termo muito forte que não
compreendemos já, como prova a variabilidade de traduções a que ele é sujeito
num mesmo texto[117].
Verdade e relatividade
142. O que é a relatividade? Tudo
é acontecimento, tudo é relativo ao seu contexto, as ciências e as filosofias
ocidentais relativas à cena ocidental da habitação e inscrição, tal como é bom
que o meu automóvel seja relativista, vá para onde eu quero e não para onde
quer o engenheiro que o construiu. Os duplos laços deverão explicar esta relatividade
geral de forma não relativista, propondo a verdade dos duplos laços em suas cenas e
leis: até que ponto é que os relativismos ditos pós-modernistas são ainda
substancialismos que não fizeram a inversão heideggeriana de colocar a
diferença antes da substância? Não creio que Nietzsche e Deleuze possam ser
avaliados dessa maneira, seria injusto por certo, do que entendi do segundo,
que veio já após as grandes descobertas científicas, não sou capaz de o
afirmar; a minha suspeita que provavelmente também vale para Nietzsche (mas
este seria profundamente indiferente a estas descobertas), consiste em duvidar
da maneira como ele encararia as três histórias que aqui privilegiei, a da
chamada Natureza, ou seja a evolução da vida e sua lei da selva, a das
sociedades humanas e sua lei da guerra e a dos textos do saber ocidental, como
encararia – ele que desdenhou de Aristóteles, da Natureza e da História e terá assim guardado uma perspectiva
‘platónica’ de acontecimento – a verdade do saber ocidental que consiste na generalidade do
motivo do duplo laço como permitindo compreender a diversidade inacreditável do
Universo, o que eu chamaria uma maneira não relativista de compreender a
incomensurável diversidade. Verdade fenomenológica relativamente à história ocidental (habitação e inscrição)
que confirma o encontro inesperado com
a problemática da Physica aristotélica.
143. Há verdade fora da
ontoteologia? Que viragem implica à noção tradicional de verdade para que tal
seja possível? E o que é a (ou as?) noção tradicional de verdade? Há uma lei
de verdade
tribal, inerente às receitas dos usos que se aprendem e às relações entre os
diversos membros do paradigma da unidade social, lei essa que é condição do seu
funcionamento e da reprodução quotidiana da mesma unidade. Qualquer língua
implica essa lei de verdade em relação com os seus usos e mitos, segundo a mesma lógica das qualidades sensíveis
que Lévi-Strauss explicitou nas suas Mythologiques, mesma nos usos como nas
receitas e nos mitos. É o próprio funcionamento adequado de geração em geração
das unidades sociais que atesta essa lei de verdade indígena, antes mesmo da
demonstração antropológica sobre os mitos ameríndios. A ambição da filosofia
grega, com Platão e Aristóteles, foi a de romper com essa lei de verdade
tribal, porque carregada de rivalidades inextricáveis e ao serviço de
interesses contraditórios, de estabelecer uma nova lei de verdade que regesse
os trabalhos de leitura e discussão das respectivas escolas, Academia e Liceu,
e valesse para quem se aventurasse nas lides da polis, nas suas intermináveis
discussões. E conseguiu pelo menos que, com o helenismo, essa ambição se
espalhasse por escolas variadas do Mediterrâneo romanizado imperialmente.
Segundo Heidegger, a verdade tribal grega segundo a palavra alêtheia, dizia a verdade da coisa, do
ente, que velada se des-velava para quem a usufruía, Platão tendo proposto uma
nova economia da verdade escolar que vingou no Ocidente até hoje, em que o humano
tem o papel principal, a verdade como eidos ou idea, estabelecendo uma relação do
intelecto à coisa (mundo medieval) e depois do sujeito ao objecto (europeus),
acrescentando-se que a linguagem (tribal, já que diferindo consoante as tribos)
foi aliás excluída desse intelecto (desde o Crátilo, depois com Occam e Descartes).
Pode-se acrescentar que essa noção de verdade, ontoteológica (Eidos eterno, Deus cristão / ente,
coisa) e humanista (já não o ente mas o intelecto regendo essa lei), ainda que
de proposições, é uma verdade de essências, intemporal, sem que, nos dois
textos em que a estuda, A essência da verdade e A doutrina de Platão sobre
a verdade (ambos
de 1930), Heidegger lhe dê relevo. Ora, é a aceleração da história nos dois
últimos séculos, a história sendo o lugar do acidental, do relativo, que veio
pôr em questão esta perenidade da verdade principial e essencial, engendrando
diversas formas de relativismo. Ora, a questão dos duplos laços é que eles dão
conta do movimento essencial das coisas e das paisagens. É a análise do primeiro texto citado
que aqui nos vai interessar.
O Dasein não aprende
144. Há bastante tempo já que
desconfiava que o Dasein de Heidegger, não apenas em Ser e Tempo mas ainda nos anos 60, depois de
Tempo e Ser,
mantinha uma ligação ao ‘sujeito’ de que se queria cortado, como atesta o muito
importante motivo de ser no mundo. O que me faltava era perceber o que é que lhe falhou,
porquê não deu o passo e que passo era que obviamente não quis dar (não se
trata de pensar que ele se enganou). Ora, a leitura recente, pela 3ª ou 4ª vez,
de A essência da Verdade, revelou-me duas coisas que concorrem para compreender a questão. Uma
delas é que a verdade é sempre questionada em termos de ‘essência’ e esta,
essência do ente em totalidade, é a questão da metafísica e, consequência
lógica, o tempo não vem nunca à questão, apesar de ser onde se enceta a viragem entre os
dois textos que ligam o tempo ao ser, o de 1927 e o de 1962. Trata-se de metafísica em
sentido tradicional, o que não parece incomodar o pensador (senão fazia uma
nota ou um parêntese a alertar para o que ali não estava a poder tratar). A
outra é a maneira como a liberdade é aduzida como essência da verdade, através
da aperidade para o ente que se trata de ‘deixar ser’, e também aqui não
aparece nenhum dos motivos temporais de Ser e Tempo, angústia e ser para a morte,
cuidado quotidiano, distinção entre o que está à mão e o que apenas está ao seu
alcance; ou seja, o Dasein aparece posto diante do ente como um sujeito diante dum
objecto: tal como o sujeito, o Dasein não aprende. Embora haja outros textos entretanto, dez anos mais
tarde o magnífico texto sobre a phusis segundo Aristóteles trata da Physica deste, do 1º capítulo do 2º
livro, aonde os seus grandes motivos foram demonstrados, argumentados, a ousia sendo o que explica o ente
enquanto dotado de movimento, o que permitirá depois (justeza do ‘meta’) a
metafísica do ente enquanto ente. E é onde o tempo é dito o número do movimento
segundo o antes e o depois, como é sabido. Vinte anos mais tarde, a viragem consuma-se:
o ser e o tempo são dados aos entes (nascidos ou fabricados: de certo, mas isso
não é nunca dito) pelo Ereignis que dissimula a doação. O que me parece significar o
quê? Que até aí, desde 1927, sempre o Ser dominou o Tempo, a viragem iniciou-se com A
essência da Verdade que ‘abre’ a relação do Dasein ao ente para a relação ao ente em totalidade (inversão
do motivo da definição, do definido ao contexto, se dizer se pode), este dissimulado,
obnibulado. É o motivo essencial do retiro do Ser que aparece pela primeira vez, e
que no texto sobre a phusis é acrescentado a Aristóteles pela citação do aforismo123
de Heraclito que ele tornou célebre, sendo onde se vê a Physica sobrepor-se à Metaphysica. Claro que este § 144 à
cavaleiro não tem nenhuma pretensão exegética, não conheço suficientemente os
textos para isso. Mas o que me parece é que no texto heideggeriano não se deu
nunca o passo do ser no mundo para o ser que aprende do mundo e é pois instituído por ele: a
aprendizagem é o tempo dos humanos e sobremaneira o tempo em que o ‘sujeito’
muda, se transforma, não é sempre o mesmo.
145. A descoberta deste texto
sobre a essência da verdade é a da relação dela com a liberdade do Dasein e a retracção da doação do ente
que torne possível tal liberdade, o futuro retiro do Ser, e ainda, de passagem, um recuo
da liberdade em relação ao ente a que o Dasein está aberto no seu comportamento
em relação a ele: recuo e liberdade que deixam o ente ser o ente que ele é, de
velado a desvelado (alêtheia), comportamento com desvelo, dir-se-á em português.
Comportamentos esses que se repetem em relação a tal tipo de entes em usos
quotidianos mormente, domésticos ou profissionais, mas também em relação a
outros humanos da tribo, as quais relações também pedem abertura que os deixe
ser, desvelo em sentido mais apropriado até. O motivo de repetição aproxima
este comportamento do motivo da possibilidade do ser no mundo (Ser e Tempo), a qual tanto é do Dasein como do mundo, como aqui se vê
melhor, já que o retiro tanto se joga na doação (pelo mundo, o ente em
totalidade da tribo) como no Dasein. E é onde a questão da aprendizagem me parece
indispensável em sua temporalidade, necessária menos ao ente, se se trata dum
utensílio à mão, do que ao que aprende a utilizá-lo por ensaios e tentativas
orientadas por quem já saiba, e que também se retirará quando a habilidade do
comportamento esteja adquirida como espontaneidade do Dasein. Aprender a conduzir um automóvel,
por exemplo, leva algumas semanas em geral, tempo para o aprendiz saber
tornar-se, em seus gestos em situações aleatórias, na peça piloto do carro, que
este faça parte doravante das suas possibilidades. Isto é, o Dasein alterou-se nas suas possibilidades
e não apenas nas semanas em que aprendeu, já que toda a sua prática futura de
condução melhorar-lhe-á essa habilidade, a sua possibilidade. O mesmo exemplo
se pode aduzir, com muito mais tempo, para a aprendizagem da fala e as
transformações que virão ao Dasein com os estudos que fará, as especializações, a cultura
humana, espiritual e artística, e por aí fora. Nestes dois exemplos, é
essencial o deixar ser o ente, o carro na estrada, a língua da tribo e aqueles com
quem se fala, que se ouve. E esse deixar ser implica a inscrição no Dasein da lei da verdade, quer a da
condução automóvel, quer a da linguagem e da relação com os outros: é essa
lei que implica que se aprenda de
mestres, de quem já sabe, que se trate de doação com retiro de quem a faz, que
sabe muito mais do que o que aprende mas tem que o deixar ser, deixar aprender
à medida da sua ignorância.
A Verdade fenomenológica
146. Esta reflexão fez-se ao
nível da verdade tribal. Como é que ela se põe a um nível fenomenológico, que
joga com lógicas filosóficas e científicas além dos limites da tribo? Como
argumentar a verdade dos duplos laços de maneira aceitável por leitores
variados? Sabendo-se que um automóvel supõe muito trabalho laboratorial de
ordem científica, de numerosas especialidades da física e da química, que esses
saberes se ensinam em escolas em todo o mundo, pode-se falar na ‘verdade dum
automóvel’? Parece que sim, que é possível defini-lo segundo uma estrutura de
mecanismo de transporte, diferente duma carroça, duma bicicleta e dum camião,
mas não dum fogão ou dum edifício: essa verdade inclui-o nos meios de
transporte em estrada como cena geral de circulação, regida pela lei do
tráfego, e implica um motor que lhe dê a força do movimento desde que
devidamente alimentado e um aparelho que lhe permita ter uma direcção e chegar
lá, atento constantemente ao aleatório do tráfego. Acrescente-se que o
automóvel não é determinista, nem o será no dia em que possa ser pilotado
automaticamente: as regras da sua composição destinam-no ao aleatório da
circulação e são essas regras – impostas pelo engenheiro – que constituem a sua
verdade, não o destino tomado hoje ou amanhã.
147. Ora bem, a) cada espécie
biológica, b) cada sociedade, c) cada língua e suas culturas textuais, d) cada
psiquismo, e) como a física-química dos astros e graves feitos de moléculas,
enquanto descritos nas respectivas cenas históricas e as suas assemblagens
segundo os seus duplos laços, estes sendo definidos no respectivo retiro estrito a) pelo ADN retirado no núcleo
da célula, b) pelas unidades locais em seus paradigmas e inibição sexual
adequada, c) o alfabeto, d) o recalcamento inconsciente e e) as forças nucleares
do núcleo atómico, e com aparelhos reguladores diversificados, quiçá imotivados
e portanto escapando a uma definição genérica, todos implicam definições
fenomenológicas (ainda que os seus especialistas de laboratório não se
reconheçam nelas) mais complexas do que as do automóvel em todos os casos em
que se trata de auto-reprodução. Definições verdadeiras das respectivas
cenas e leis, das estruturas dos duplos laços como o que explica o respectivo movimento. Que a invenção da máquina a
vapor e depois de tantos tipos de máquinas tenha consistido em replicar uma
estrutura de duplo laço e que ela se mantenha em todos esses tipos de máquinas
como o que dá força e direcção a cada uma, não faz mais do que confirmar a
continuidade deste motivo fenomenológico ao longo de quase dois séculos e meio.
Se por outro lado, se tiver em conta como o pensamento filosófico greco-europeu
chegou em alguns dos seus pensadores ao seu ‘acabamento’ desconstrutivo e isso
só foi possível com a contribuição da sua descendência científica, esta unidade
fenomenológica dá-se, aos nossos olhos sem dúvida, como acabada na sua finitude. Isto é, verdadeira fenomenologicamente.
148. Estas estruturas não são
erros provisórios (como Newton também não o foi, apesar de muitos físicos o
pensarem, obnubilados por Einstein e pela estranhíssima Mecânica quântica) como
há quem o pense hoje das descobertas científicas actuais. Sem dúvida que no
detalhe dos trabalhos dos laboratórios, que o fenomenólogo ignora, haverá
frequentemente correcções de antigas descobertas, mas que provavelmente não
terão incidências sobre os duplos laços que não sejam de aperfeiçoamento
descritivo. Mas nem sempre o que parece é. Por exemplo maior, a linguística de
Saussure, Trubetzkoy, Martinet, Benveniste, Hjelmslev, Gross, que é a ciência
linguística desta proposta fenomenológica, foi ultrapassada academicamente pela
gramática gerativa de Chomsky, que é inadequada fenomenologicamente, não é uma
ciência mas uma técnica de tradução linguística pensada a partir da língua
inglesa, que tem a singularidade de ser praticamente desprovida de morfologia.
Não basta pois o consenso dos cientistas numa dada época, ainda que se possa
ver nesta afirmação uma arrogância filosófica, é claro. A verdade foi sempre
a paixão dos grandes cientistas e pensadores, reafirmá-la é fidelidade
reconhecida de quem com eles aprendeu.
Transcendência versus imanência?
149. Quereria terminar retomando
a suspeita que deixei aberta no § 144: porquê Heidegger não pôde ou não soube
cortar Dasein do ‘sujeito’? Julgo que o que estava aí em questão era a tradição
filosófica entre transcendência e imanência, que foi esta que ele quis evitar.
Intitulei o meu pequeno ensaio sobre ele Heidegger, pensador da Terra: ele por certo que recusaria
este título, como atestará a figura do Geviert, o Quadripartido, que em textos
dos anos 50 aparecem no lugar do que em 62 será o do Ereignis. Esses quatro são o Céu e a
Terra, os Divinos e os Mortais, que sem dúvida fazem eco a muita da grande
literatura ocidental de que não saberíamos prescindir. Em Heidegger, este
Quadripartido diz que no fundo ele permanece um pagão de antes de Copérnico; a
diferença Céu / Terra e quiçá a fecundidade dos Divinos diante dos corpóreos
mortais, ainda que ele busque que não seja oposição metafísica, essa justiça
ele merece, dirá pelo menos diferença entre a transcendência e a imanência,
esta fecunda, é certo, é a phusis, mas finita, já que mortal.
150. Como é que esta questão se
põe em Derrida? Por exemplo, na sua gramatologia, quando ele toma a redução
fenomenológica de Husserl[118]
para a aplicar à diferença saussuriana significante / voz ou diferença / sons,
ele sabe que essa redução implica a transcendentalidade do Ego fenomenológico,
e é por isso que em seguida ele tem que apagar a necessidade da passagem por
essa redução (sabendo embora que ficará sempre em dívida à fenomenologia): num
contexto de discussão com linguistas, além de Saussure, Hjelmslev e Jakobson,
para escapar ao empirismo, ao primado da materialidade sonora, ele só pode
aceder à diferença entre sons através da redução transcendental, mas depois tem
que a apagar, conseguido o seu efeito de redução da ‘substância’ sonora. É que
a trace ou différance que Derrida está propondo,
promovendo, se ouso, é prévia à oposição metafísica que de Platão nos vem e com
a qual ele tem que ‘tratar’: nem sensível
(a diferença entre sons não é um som) nem inteligível (diferença entre
sensíveis, não se destaca deles), nem transcendente nem imanente. Mas é um
‘movimento’ (espacialização temporalização) que vai acima dos sons que ele
reproduz ao fazer com que as suas diferenças produzam sentido, duplamente
articulado aliás, signifiant – signifié (Saussure). Se os sons duma voz são
imanentes a quem os diz, no movimento que os diz eles vão além da sonoridade,
transcendem-nos. Para se entender que não há aqui oposição entre imanência e transcendência
(por isso estes motivos não são adequados), é preciso ter em conta, contra a
tradição europeia do signo, que este não é constituído pela ‘união’ dum som e
dum sentido ou ideia, como se os houvesse primeiro e eles se unissem em
seguida: a diferença entre os sons a um nível produz os sons que não havia e a
outro nível os sentidos que também não havia: ora, isto sendo um exemplo
(forte) de différance, é um duplo laço, um movimento entrópico que abre uma nova cena, uma
imanência que se transcende / é transcendida ao fazer-se. O que são esses
‘sentidos’ que não havia? São coisas do mundo, receitas de usos, narrativas do
que aconteceu noutro lado, noutro tempo, coisas de ‘além’ da situação em que se
está que os discursos ou textos trazem a essa situação, o que chamei bifurcação (§ 80).
151. Questão geral: porquê
precisamos do que os Antigos chamaram transcendência? Acima das questões
relativas à cena da gravitação, dos átomos, moléculas, graves e astros, que
aqui nunca foi tida em conta, podemos falar da invenção da vida como uma
imanência molecular que se transcendeu em reprodução celular, como podemos
falar da animalidade como um sistema imanente de alimentação que se transcendeu
com um sistema de mobilidade que as plantas não conseguiram. E todo o processo
de evolução biológica e de história das sociedades humanas consistiu em
alargamentos do alcance dos alvos deste par imanência transcendentalizando-se
em duplos laços no que é a fecundidade, do menos sair o mais, da semente a árvore, a
capacidade de um par fêmea / macho se transcender em filhos, até às primeiras
transcendências tribais. Uma tribo que os seus paradigmas de usos e linguagem
transcendeu em seu território, enclausura-se na pujança da sua mitologia (céus
e divinos / terra e antepassados dos mortais) criando solidariedade entre as
várias unidades sociais e entre adultos e jovens, entre passado e futuro, para
se afirmar também face às tribos rivais. Ora, foi essa clausura, essa imanência
coroada religiosamente de forma holística (apanha todos os membros da tribo), que foi
renegada espiritualmente pelos que se despojaram dos desejos de reprodução, prazeres, honras e
religião, furaram a clausura em busca de outras fruições, sabedorias espirituais
com outra respiração. Onde isso sucedeu, Zaratustra na Pérsia (sec VIII),
Lao-Tseu e Confúcio (sec. VI-V) na China, Buda na Índia (sec. VI-V), os
Profetas em Israel (s. VIII-VI), também Heraclito, Parménides, Pitágoras,
Sócrates na Grécia (s. VI-V), foi como literatura que se transmitiu de mestres
a discípulos e fez escolas que substituíam a do saber fazer de pais a filhos. O
motivo platónico de alma permitiu expressar essa nova espiritualidade, saber e
virtude, que no Fédon se diz própria dos filósofos transcendendo a imanência do corpo mortal,
destinando-se à frequentação dos deuses após a contemplação das Formas substanciais
eternas. No cristianismo, a relação de presença do Deus criador do universo na
alma dos seus fieis prolongou a possibilidade dessa experiência espiritual além
dos filósofos, a qualquer humano, mulher ou escravo incluídos. Mas ao tornar-se
religião holística, viu-se do seu seio começarem a brotar comunidades
espirituais que não se contentavam com a nova clausura, e quando as condições o
permitiram, universidades e artes várias e literaturas se foram libertando da
imanência que a todos apanha quando se nasce.
152. Em tempos de secularização
acentuada que desde Copérnico, Galileu e Newton nos veio, o que hoje joga como
imanência, instâncias holísticas que nos apanham desde a infância, é a escola
com destino à reprodução social, aos futuros empregos, e o seu prolongamento em
televisões, revistas e todo o tipo de clausuras que se mexem em modas e
aquietam as gentes, as entretêm. Bom exemplo é o futebol, que eu aprecio, que
manifestamente consegue incluir as alianças de clube com as rivalidades face
aos outros clubes, criar liturgias anuais com seus campeonatos e entreter
milhões de pessoas. A transcendência não pede necessariamente jejuns e lugares
retirados (que multipliquem clausuras), mas revela-se nos grandes apaixonados
que buscam aventuras singulares que só se dão fora do espectáculo, da sua
glória e do poder do dinheiro, no despojamento do que não se compra nem vende
nem herda, da fecundidade inaudita que pode ser de arte, de amor, de
pensamento, de amizade, de serviço de pobres, que sei eu. Excesso cultural que
não se dá por ele, que foge a manifestar-se de preferência, que a imanência não
entende nem explica, mas que pega e fura em fisiologias fonológicas, manuais,
cerebrais, para disciplinarem as suas imanências de fonte química.
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[1] É o que o personagem Parménides no
diálogo com o mesmo nome censura ao jovem Sócrates, jovem de mais.
[2] Veremos como ‘razão’ moderna desta diferença (não necessariamente da
‘oposição’) a irredutibilidade que há entre a abordagem neurológica do cérebro,
dos seus neurónios e sinapses, e a abordagem do discurso pela psicanálise e
outras psicologias, ou ainda entre os neurónios acessíveis à aparelhagem do
laboratório e a ‘internalidade’ deles, segundo Damásio apenas acessível ao
próprio animal.
[3] 1ª parte do
capítulo 13 de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, retomada integralmente na 3ª
parte de La Philosofia avec Sciences au XXe siècle.
[4] Sem todavia parecer ter tirado ele próprio todas as conclusões dessa
proposta, como se percebe dos diálogos que travou com Ricœur e com o
matemático A. Connes. Voltaremos à questão com o neurólogo Randel.
[5] Foi aliás a consideração das cinco principais descobertas científicas do
século XX, iluminadas pelo duplo laço, que me pôs na pista, apenas os anos de
escrita daquele texto me tendo permitido lentamente dar-me conta do alcance do
que fazia, que, pela força dos grandes que lia, foi muito mais longe do que eu
poderia ter alguma vez presumido. Como testemunhas, dois textos provisórios que
escrevi e o que neles permanece de insatisfatório.
[7] ‘Assemblagem’
de elementos diversos duplamente enlaçados, como por exemplo o que chamamos, em
vários sentidos, ‘corpo’ e se caracteriza por uma relativa complexidade de
composição e por autonomia relativa em relação ao seu contexto. Assemblagem
será o nome genérico para cada mecanismo autónomo duplamente enlaçado nas
diferentes cenas.
[8] Endogamia das espécies dos artrópodos, aves e mamíferos, endogamia das
tribos e guerra às outras, privacidade das unidades locais de habitação,
incomensurabilidade dos paradigmas do saber (Kuhn), estrangeiras entre si as
línguas. Trata-se do motivo da imotivação da doação apagada.
[9] Esta dissimulação é a razão pela qual a ontoteologia joga como evidência
nos paradigmas científicos, que partem das autonomias como ‘dados’ sem se
preocuparem com o que as ‘dá’. Em fenomenologia, situou-se aqui justamente a
ruptura de Heidegger em relação a Husserl: o ser no mundo rompe com a consciência,
o Ser doador antes do ente e da sua percepção.
[10] Exemplifique-se
a diferença entre aleatório e acaso: que eu choque com um carro surgido
repentinamente à minha esquerda, é aleatório, faz parte do possível na
circulação automóvel cuja lei do tráfego o deve impedir; que o condutor desse
carro seja um colega de liceu que nunca mais tinha visto é um acaso que não tem
nada a ver com a lei do tráfego. A lógica dos três duplos laços da anatomia
animal implica uma progressiva redução do leque de aleatório desde o sistema da
mobilidade até ao metabolismo de cada célula; o acaso era o que reinava no mar
prévio à invenção de células capazes de auto-reprodução, desde que houvesse
moléculas propícias à sua volta. A lógica da evolução: substituir o acaso por
aleatório regulável.
[11] J. Monod,
em Le hasard et la nécessité, fala do “estado homeostático do metabolismo celular” (p. 98,
subl. meu).
[12] Não só não fala nunca nisso nos
seus textos, como recusou essa perspectiva derridiana quando lha propus, num
encontro em Lisboa, no Outono de 1988.
[13] “Reticência teórica em
utilizar os conceitos freudianos sem ser entre aspas, que pertencem todos, sem
excepção, à história da metafísica”, já que “um pensamento da diferença
ocupa-se menos dos conceitos do que do discurso” (1967, p. 294): o texto antes
de mais.
[14] Abertura violenta de caminhos na
floresta das sinapses neuronais, assim como os pés dos caminhantes abrem sendas
no mato.
[16] Assemblagem (organismo, unidade local de habitação, sociedade, texto,
grave, máquina, etc.) é sempre um composto com alguma autonomia na respectiva
cena, definido como mecanismo de autonomia com heteronomia apagada.
[18] A espécie
cavalar (ontológica), através duma égua parida (ôntica), dá um potro,
retirando-se para que ele cresça.
[19] O que se faz respectivamente no intestino e nos pulmões, os dois órgãos que
com o cérebro recebem do exterior e tiveram que encontrar solução para o mesmo
problema anatómico: aumentar ao máximo a superfície de trocas num volume
determinado.
[22] In Search of Memory, 2006, Norton. Encontrei-o citado por Nicholas Carr, Internet rend-il
bête? Réapprendre
à lire et à penser dans un monde fragmenté, Robert Laffon, 2011, cujo título inglês é The
shallows, Norton. Trata-se dum texto sobre a intoxicação da
Internet que torna incapaz de ler um livro de seguida.
[23] L’homme neuronal, Fayard, 1983. Randel conheceu-o e elogia-o, mas
não refere a sua teoria dos grafos.
[24] Intestino, rim e fígado, no caso da molécula AMP cíclico (p. 242). É um dos
pontos fortes da teoria da evolução: um mecanismo ‘inventado’ uma vez, e
portanto recebido no ADN, é aproveitado com frequência para solução de novas
questões.
[26] Damásio tem em O erro de Descartes o gráfico dum anel de simulação que implica esta
aquisição (p. 202 da edição francesa).
[27] Concretamente,
não sei como entender em termos neurológicos os motivos psicanalíticos de
libido e pulsão, que provavelmente reenviam ao jogo de determinadas hormonas.
[28] Ver
http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2012/12/no-paradigma-da-biologia-falta-o-ser-no.htm
[29] Eccles no
livro citado, como o seu título ilustra, mostra claramente como concepções
metafísicas, a partir de certo passo, intervêm massivamente na sua ‘ciência’
(ele também mereceu um Nobel, o que mostra que apesar da ideologia houve
descobertas científicas aprovadas pelos seus pares).
[30] Está-se
ainda no cartesianismo como ponto de partida da análise? no privilégio do
‘elementar’ (os genes) – sobre a anatomia e a cena ecológica.
[31] Segundo o velho Gaffiot, o sentido de ‘conscientia’ em latim é um saber com
outros, cúmplices (sem pejorativo). O ‘ap-prender’ será porventura um ‘prender’
que vem ‘de’ (ab-) outrem, criação dum laço recebido.
[32] “Uma das
propriedades principais do tecido nervoso é a memória [...] isto é, a aptidão a
ser alterado duma maneira durável por acontecimentos que não se produziram
senão uma vez. [...] ter-se-á que dar conta ao mesmo tempo [...] da permanência
do rasto (trace) e da virgindade da substância de acolhimento, do gravar dos sulcos e da
nudez sempre intacta da superfície receptiva ou perceptiva: aqui dos
neurónios”. “Os neurónios, escreveu Freud, devem portanto ser impressionados
mas também inalterados” (“Freud et la scène de l’écriture”, in Derrida, L’écriture
et la différence, Seuil, p. 298). Randel, o neurologista que queria ser psicanalista,
conseguiu responder a esta exigência teórica de Freud em 1895.
[33] É pelo contrário o predomínio
(implícito) do neurónio sobre a rede de diferenças que, substancialismo tradicional,
implica o determinismo em biologia, como Randel parece ter compreendido: “a
memória não repousa nas propriedades das células nervosas enquanto tais mas na
natureza das conexões entre neurónios e a sua maneira de tratar a informação
sensorial recebida” (p. 164). As conexões duma rede são – foi a lição do
estruturalismo – prévias aos elementos ou termos (substanciais) que elas
conectam: Randel nesta citação revela-se próximo do motivo da diferença.
[34] Há uma razão para as crianças demorarem mais tempo
a aprenderem a dizer ‘eu’, porque se trata duma palavra com um sentido fugidio,
nunca significa sempre a mesma pessoa mas muda consoante quem fala e a criança
terá que saber que esse sentido se desloca desses vários e sempre diferentes
‘eus’ para ser capaz dizer um ‘eu’ que até lá nunca se disse ainda. Mais
difícil para ela acertar, quando os outros lhe falam em ‘infantil’, em vez de
‘eu vou sair’, dizem ‘a mãe vai sair’, ou ‘o pai isto ou aquilo’. Essa
infantilização tem como consequência retardar a autonomia da fala da criança.
[36] Como sugerem as operações a cataratas em cegos de nascença contadas em
Condillac, Traité des Sensations, Traité des Animaux, [1754], Fayard, 1984, pp.
195-198
[37] Como é
óbvio, o uso que aqui se faz do termo ‘tribal’ não restringe a análise às
sociedades primitivas, que aliás ignoro razoavelmente; a antropologia social é,
em contraste com a história e a sociologia, o nível de ciências das sociedades
que se ocupa dos locais de habitação, tanto residência como trabalho,
analisando justamente usos quotidianos. A ‘tribo’ são aqueles com quem lidamos
habitualmente, familiares, vizinhos, colegas, amigos. Também a Linguística se
estende às semióticas, análises de discursos e de textos.
[38] Uso o termo
psicanalítico ‘pulsão’ para não ter que distinguir entre hormonas e
neuro-transmissores, quimicamente equivalentes, que não há que confundir
todavia com o que os neurologistas chamam ‘impulso’, o fluxo eléctrico de iões
que percorre os grafos.
[39] “Ser
descontente é ser homem / que as forças cegas se domem / à visão que a alma tem” (F.
Pessoa, Mensagem).
[40] ‘Paleo’ quer dizer ‘antigo’, ‘neo’ é ‘novo’, de desenvolvimento
posterior na evolução a partir do primitivo.
[42] Sem que se
saiba se as formigas dormem; mas Jouvet (O sono e o sonho) conta experiências que ‘mostram’
um gato a sonhar.
[43] Também a
policia de trânsito, não estando presente em todas as estradas, é eficaz
enquanto temida como podendo aparecer a qualquer momento: nem presente nem
ausente. Aliás, quando aparece empata o trânsito! Ou os bombeiros, não
presentes mas disponíveis.
[45] Em que é
que consiste o retiro estrito destas células que faz do seu conjunto um ‘motor’? donde
são elas retiradas? Do sangue que as alimenta e de que são totalmente
dependentes para subsistirem e se reproduzirem. À maneira das unidades sociais
autárcitas que se especializam e se tornam ‘células’ de grandes unidades
politicas a quem pagam impostos para garantirem acesso a bens que não produzem:
cedem soberania à rede social, cuja regulação providencia a todas essas
unidades.
[46] No caso de
inertes: movimento quer de transformação química em condições de proximidade
propícias, quer de deslocamento sob efeito de forças de gravidade.
[47] Estamos
perto do enigma do enigma crucial entre uniformidade ou conservação e invenção.
As cenas sendo lugar de aleatório procuram circunscrever este, delimitá-lo
quanto possível. A sexualidade sendo o maior factor de diversidade biológica e
social, as espécies e as sociedades estabilizam-se como endogâmicas, fazendo
‘guerra’ ao que lhe é estrangeiro, abominam o acontecimento (o ‘mal’, a
violência). Mas quanto mais as cenas, para perseverarem, buscam ‘razões’ de conservação mais complexas se tornam e por isso frágeis, permeáveis pois
a acontecimentos de hibridação, enxerto, que se tornará a certo passo a regra
que se sobrepõe à endogamia.
[50] Inédito sem
dúvida porque se trata, pura e simplesmente, da própria invenção da vida, da
base que todas as cenas seguintes supõem.
[51] “ATP,
nucleótidos, transferts, mensageiros e ribossomas, por exemplo, diz Barbieri,
são todos ribossoïdos” (p. 113).
[54] ‘Determina’
é aqui algo de diferente da causa / efeito, já que uma mesma lei determina
diferentes mecanismos, assim como a lei da selva determina espécies muito
diversas. Tal como as línguas segundo Saussure são imotivadas em relação aos sistemas
fonadores dos humanos e aos seus outros usos, esta ‘determinação’ é
simultaneamente ‘imotivadora’! Como dizia Levinas a propósito de Derrida que
aqui me inspira: “a história da filosofia não é provavelmente senão um
crescimento consciente da dificuldade de pensar”.
[55] ‘Sujeito’
exterior ao ‘objecto’ e por isso ‘contraditórios’. As duas leis dum duplo laço
são inconciliáveis mas não são exteriores, já que indissociáveis: nenhuma delas
existe previamente sem a outra. O ‘acontecimento’ não é contra o princípio da
não contradição, é-lhe prévio, este princípio lógico aplica-se apenas –
ontoteologicamente – a resultantes de ‘acontecimentos’.
[56] Que seriam
aceitáveis por biólogos crentes como acção omnipotente da divindade criadora.
Já o big Bang é uma ajuda de cientistas ateus aos crentes.
[57] Os
paradigmas são performances históricas: “as descobertas científicas
universalmente reconhecidas que, durante um tempo, fornecem a uma comunidade de
investigadores problemas-tipo e soluções” (Kuhn, p. 11), que “serviram durante
longo tempo para definir implicitamente os problemas e os métodos legítimos
dum domínio de investigação para gerações sucessivas de investigadores. Se
puderam ter esse papel, foi por terem em comum duas características
essenciais: o que conseguiram era suficientemente notável para atrair um grupo coerente de adeptos a
outras formas de actividade científica concorrentes; por outro lado, abriam
perspectivas suficientes para fornecer a estes investigadores toda a espécie de
problemas para resolver. Às performances que têm em comum estas duas
características chamarei doravante paradigmas [...] englobando leis, teorias,
aplicações e dispositivos experimentais, fornecem modelos que dão nascimento a
tradições particulares e coerentes de investigação científica” (pp. 30-31, eu
sublinho). Generalizando a qualquer unidade social, o paradigma é o conjunto de
receitas dos usos que aí se praticam (nos laboratórios kuhnianos: como resolver
problemas científicos) que ‘atrai’ cada useiro e o ‘liga’ aos outros para comporem
uma unidade social.
[58] “[...] é
pouco duvidoso que o dom ceremonial não tenha por alvo afirmar que é ao mesmo
tempo possível e infinitamente desejável substituir a aliança e a amizade ao conflito e para isso subordinar
as considerações de utilidade à obrigação de demonstrar generosidade” (Olivier Duroy, L’homme est-il un animal
sympathique ? Le contr’Hobbes, Revue du Mauss, n°31, 2008, p. 7-8).
[60] Ainda nas
sociedades do Antigo Regime os bens da Casa Real eram ‘privados’ dela, não
coisa do Estado, o que as revoluções burguesas vieram dissociar.
[61] Como
salientam as nossas fontes de civilização, hebraica e grega. O primeiro crime
da Bíblia é entre irmãos (Génesis, cap. 4). Também Aristóteles diz que “... hoje
compõem-se as mais belas tragédias sobre um pequeno número de casas (oikias), por exemplo as de Alcméon,
Édipo, Oreste, Meleagro, Tieste, Telefo e todos os outros herois que sofreram
ou causaram acontecimentos terríveis” entre familiares (Poética, 13.53a18-22). O terceiro
exemplo é europeu e moderno: na sua Interpretação dos sonhos, Freud introduz os sonhos sobre
irmãos sob o signo da rivalidade infantil, quando se desejou a morte deles.
[62] O físico de
formação que era Kuhn não terá pensado em reflectir sobre a ‘atracção’ que
colocou no coração da sua definição de paradigma, nem a terá ligado com uma das
primeiras grandes descobertas da Física, a incompreensível (para Newton) força
de atracção a distância que é a da gravidade. Digamos que o paradigma é uma
‘força de atracção’ antropológica que se efectua nas relações entre os seus
membros ao usarem e ao ensinarem a usar, que essa força jogará sobre as
‘vontades’ a um nível prévio à distinção entre consciente e inconsciente (e
está aqui uma das razões pelas quais o termo ‘vontade’ é inadequado para traduzir
a ‘envie’ francesa).
[63] P.
Clastres, "Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas",
in Clastres e outros, Guerra, religião, poder, [Libre 77-1], Ed. 70, 1980.
[64] Sem dúvida
que me é difícil dizer qualquer coisa sobre os usos que são assim enlaçados, os
que usam incluídos, sobre os fazeres e os dizeres, e ainda sobre as amizades,
os amores e os dissabores.
[65] Como se
disse, são os dois sistemas da anatomia animal, alimentação e mobilidade (caça-defesa), que são a base desta repartição dos
usos, o recurso sagrado ao ancestral, supondo usos e linguagem, dizendo a diferença
humana em relação às espécies primatas suas vizinhas.
[66] Metáfora
corrente, a família como célula da sociedade: então as máquinas e a electricidade,
por um lado, o mercado por outro, comparam-se com o sangue e suas hormonas?
Sumas organizadas que dão enciclopédias como justaposição de saberes e
hiper-especialização que não deixa hoje ninguém ser capaz de ler uma enciclopédia
como a Universalis?
[67] Não haverá
razão para espantos quando se encontrarem estes motivos no discurso psicanalítico
sobre a sexualidade humana enquanto sempre-já submetida à lei.
[68] O que parece excluir em boa lógica
que o mecanismo da sua evolução seja apenas mutações genéticas cegas (§ 127).
[70] Como ao
longo da história das sociedades agrícolas e das cidades, outras formas
excessiva de dom: as escolas espirituais e de pensamento, as artes, os
desportos...
[71] Faz-me uma
certa confusão que os “anti-utilitaristas” que Carvalho e Dzimira compendiaram
em Don et économie solidaire, com aprovação do autor de referência, A. Caillé, nunca
façam alusão à realidade biológica das gentes sociais, à alimentação ou à
reprodução, como se as ciências sociais se ocupassem de humanos não animais,
de ‘sujeitos’, criassem uma fronteira com as biologias, que estas aliás também
respeitam, sem nunca darem atenção ao que se aprende (e que releva do
‘social’), à lógica da selva,
como disse em http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2012/12/no-paradigma-da-biologia-falta-o-ser-no.html.
Mais avisado era Aristóteles que, contra Platão e a sua ‘alma imortal’,
definiu a cidade como ‘natural’, relevando da phusis.
[73] Tal como a im-pressão das letras do teclado no ecrã ou
pela caneta no papel são motor do texto escrito.
[75] Valerá esta
‘explicação’ apenas por se tratar de sociedades regidas pelos machos humanos
que, como nas outras espécies primatas, são mais robustos e dados à luta do que
as fêmeas?
[76] Sakaya
explica o comunitarismo das aldeias japonesas por o cultivo do arroz ser
colectivo, sendo possível que seja igualmente verdade de toda a Ásia do
Pacífico.
[77] Como são
exemplo, para o bem como para o mal, as listas de bênçãos e maldições dos
livros bíblicos do Deuteronómio (cap. 28) e do Levítico (cap. 26).
[78] A crer no
que diz, referindo-se ao Israel antigo, o primeiro livro de Samuel, cap. 11, v. 1: “no ano seguinte,
no tempo em que os reis vão em campanha...”
[81] E alguma formas verbais copulizadas, reduzidas também à terceira pessoa
singular ou plural do presente do indicativo.
[82] As dez Categorias de Aristóteles são o quadro do literário que a definição reduziu: quem,
onde, quando, como, dos ‘acidentes’ contados nas narrativas. É por isso que a ousia segunda, a essência latina,
sendo todavia, genial Aristóteles!, idêntica à ousia primeira, a substância latina,
não faz parte da lista: porque ela é uma categoria ‘filosófica’, não de
narrativa.
[83] Da Natureza à Técnica, da Modernidade antiga à moderna, e.book, 2013. Também Belo 2007,
cap. 13, primeira parte, 2009, cap. 3.
[85] Pelos mesmos pensadores. Tomás de Aquino escreveu textos filosóficos, De
ente et essentia, por exemplo, e textos teológicos, como a Summa Theologiae. Cada um dos artigos desta é
composto pela questão em debate, colocada de forma positiva (Utrum...), seguida de três objecções
correntes; depois o Sed contra recusa as objecções com um argumento de autoridade
teológica (citação breve da Bíblia, Concílio, Agostinho ou outro), seguindo-se
o Respondeo,
com argumentação em termos ‘filosóficos’ e no final a resposta, também assim
argumentada, às três objecções iniciais. O que significa que é uma razão
teológica em categorias filosóficas que tece inteiramente a Summa, salvo os seus Sed contra.
[86] Instituição significa que já desligada do cuidado com a alimentação, a
cargo das casas ou das famílias, consoante.
[87] Mas também a igreja, a sinagoga
e outras escolas de textos espirituais, com efeitos na cena da habitação. Na
China, foi a instituição do mandarinato que autonomizou a sua cena histórica de
inscrição, como o ensino do Corão no Islão, aqui aliás cruzando-se com a
filosofia grega pelo menos na sua grande época de civilização, contemporânea da
nossa época medieval.
[88] Não sei quando, mas não me admiraria que tivesse a ver com a história do
laboratório. Seja dito de passagem que Derrida, que na minha terminologia só se
interessava pelas cenas, que desconstruía justamente a definição e o
laboratório em prol da escrita e das suas polissemias literárias, confessou
numa entrevista qualquer que o termo que ele mais detestava era justamente
‘determinação’, cuja polissemia estou felicitando como dizendo bem a diferença
entre ciência e filosofia, sendo que esta definia para conhecer causas.
[89] Donde que os aperfeiçoamentos das técnicas de mensuração sejam factor
decisivo das revoluções paradigmáticas. As verdades de Newton continuam
verdadeiras para técnicas de mensuração que não atinjam velocidades como a da
luz (relatividade) nem as dimensões das partículas (quântica), como é o caso
nas engenharias correntes.
[90] Provavelmente, a famosa experiência dos ‘eurekas’ é uma maneira humana,
entre química e electricidade cerebral, de conciliar localmente as duas cenas,
ligada a argumentos que ajustam um puzzle do paradigma. Era por este tipo de
questões que o F. Gil andou em suas buscas.
[92] Onde a verdade e a má fé de Heidegger dizendo que ‘a ciência não pensa’:
com efeito, o laboratório não ‘pensa’ mas dá a conhecer, mas para isso os
sábios têm que pensar! O lugar que a definição e o laboratório têm nesta fenomenologia vem-lhes de serem operações
de escrita, em
sentido derridiano.
[93] Demonstração
essa que Newton fez a partir das leis de Kepler, dependentes das medições astronómicas
de Tycho Brahé, aplicando-as a outros planetas e satélites do que a terra, que
quase ninguém conhece.
[94] Esta questão maliciosa porá alguma objecção à conjectura da nuvem de
partículas que emergiu do big Bang?
[95] Que resulta, por sua vez, do laboratório dos engenheiros reduzir o ambiente
em que as suas técnicas vão funcionar: é aonde está a causa, por omissão, da
poluição crescente.
[96] A de Chomsky não é susceptível de duplo laço, não é portanto ciência do
ponto de vista fenomenológico aqui adoptado, apenas uma técnica de tradução a
partir da língua inglesa e da sua quase ausência de morfologia (justifiquei
esta posição em Belo 1991a). Quanto às semióticas dadas à luz nos
anos 60 e 70 franceses, que deixei de acompanhar numa fase que me pareceu sem
esperança de dias melhores, apenas estes dois autores me parecem merecer
atenção fenomenológica.
[97] Sublinhe-se de passagem que há unidades, nomeadamente os chamados
“deícticos” (aqui, agora, este...) que pertencendo embora ao nível da frase,
permitiram a Benveniste articular uma tripla categoria textual, discursivo,
narrativo e gnosiológico, essencial na semiótica de que adiante se falará, e
que por isso mesmo transgride os limites entre esta e a linguística, entre
texto e frase.
[99] Deixemos a semiótica das falas à
psicanálise. Esta pode ser considerada como uma semiótica dum texto só, mas não
escrito nem acabado: um texto oral e sexualizado sob o regime da lei tribal, e
que se está a fazer, de forma a que o seu laboratório, as sessões de divã,
tenham efeito sobre ele.
[100] ‘Signification’ em francês; os dois termos de Saussure, signifiant e
signifié, enquanto ‘substantivos’ não existiam em francês, apenas como formas
do verbo ‘signifier’.
[102] Também li
segundo essa metodologia a Poética de Aristóteles, o Sobre a Verdade e a Mentira de Nietzsche (Belo, 1994) e o 4º
capítulo do Discours de la Méthode de Descartes (Belo, 1987).
[104] Só a
oposição tenaz entre teoria e prática, que a Física justamente desmente, é que
impede que o seu nome vigore com a mesma importância de Galileu, Newton ou
Lavoisier.
[105] Enquanto
que parece que o efeito da escrita ideográfica chinesa terá sido o contrário
dum ‘progresso’, a manutenção única na história conhecida dos humanos dum
império de quase dois milénios e meio.
[106] Curiosamente, a máquina a vapor começou a ser comercializada em 1776, ano
em que Adam Smith publicou A Riqueza das Nações.
[107] Não sei se
há estudos sobre a literatura política, ensaística e narrativa do último
quartel do século XVIII e do primeiro do XIX contando a recepção da máquina a
vapor.
[108] No seu diário sobre a viagem do Beagle escreveu: “A história natural dessas
ilhas é certamente curiosa, e merece atenção. A maioria das produções orgânicas
são criações nativas, não encontradas em nenhum outro lugar.” (Ciência Hoje, Web, 20/05/2013). Seriam pois
invenções da evolução, estritamente.
[109] Ao invés da ‘determinação por mutações’, que muito provavelmente ocorrem
não ‘por acaso’ mas na sequência de processos de duplo laço que escapam à
observação laboratorial.
[110] É o termo que prevalece em ciências, com o pressuposto ‘realista’ de que se
descobrem as leis do universo; ‘invenção’ releva mais das engenharias e das
artes como a arquitectura.
[111] Na sua introdução à edição francesa de 1984 de J. Watson, La double
hélice, retomado
na portuguesa da Gradiva, 1994 (o original é de 1968).
[113] Nem cristianismo, aliás, que pariu a Europa a partir das universidades
medievais e da filosofia grega.
[114] Terá havido com os mitos provavelmente a invenção das primeira formas narrativas
de que todas as outras dependeram.
[115] Ver http://chinespensasemalfabeto.blogspot.com/,
em que se propõe a diferença entre o pensamento ideográfico chinês restituído
por François Jullien e o pensamento alfabético e definitório greco-europeu.
[116] F. Belo,
“Uns pós de electricidade (pós-modernos, evidentemente)”, JL nº 178, 3 dezembro 1985, pp. 19-20.
[117] Despistá-lo
sob essas diferentes traduções foi uma das condições das leituras que fiz quer
do Evangelho de Marcos quer da Poética de Aristóteles.
[118] Que em
Heidegger se resolveu na destruição substancialista da tradição greco-europeia,
ao que Derrida permanecerá fiel.
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