terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Aristóteles e Kant

Filosofia com história : o exemplo de Aristóteles e de Kant

59. Num outro texto, Heidegger chama Gestellung à phusis de Aristóteles, a ‘natureza’, o que sugere que, sem o explicitar, ele teria pensado na variação desta palavra a diferença entre os dois tipos de sociedade, umas movidas pelas energias dos vivos e as outras pelas das máquinas. Sabe-se a importância que tem o motivo da autarcia em Aristóteles, a quem se deve o da ousia (tanto a ‘substância’ dos vivos como a sua commum ‘essência’, digamos aproximativamente). Se se compara com Kant, que introduziu a física de Newton na sua metafísica (Vuillemin) e em consequência excluiu a ‘substância’ – a ontologia torna-se gnosiologia, o ser é interpretado como ‘tese’ (Heidegger) -, poder-se-ia verificar que os seus pensamentos correspondem cada uma ao tipo de civilização de cada modernidade[1]. Assim, por exemplo, a autonomia do sujeito kantiano, que tem nele as categorias do pensamento gnosiológico (racional e científico), é adequada ao novo indivíduo que está a emergir para uma civilização Ge-stell, a saber de tipo científico e técnico, enquanto que as categorias de Aristóteles diziam mais respeito às narrativas dos seres vivos (quem, quando, onde, qual, quanto, em que posição, fazendo ou sofrendo o quê, um pouco como as dos jornalistas). Quer isto dizer que o contraste tão forte dos seus pensamentos releva das diferenças estruturais das respectivas civilizações, que são as diferenças entre duas Físicas, a dos seres vivos e a dos inertes. Se isto for admitido, podem-se encontrar paralelismos de espanto, com um projecto geral semelhante, digamos para privilegiar o movimento sobre a substância, a) sabendo-se que aquele é relativo (é também o caso da geração e da corrupção em Aristóteles), b) sem cair no relativismo (dos empiristas e sofistas) e c) criticando o eterno ou absoluto (Platão e Descartes ou Leibniz), a separação dualista entre o céu das ideias e a terra das coisas. Ora, este programa não é possível senão na medida em que a sintaxe teórica proposta[2] seja simultaneamente a do sujeito que conhece (Kant) ou do logos (Aristóteles) e do movimento físico na sua causalidade, este ‘e’ designando o lugar irredutível nos dois pensadores da experiência sensível a caminho do conhecimento inteligível. Quer dizer que, tanto num como no outro, mutatis mutandis, as categorias (de pensamento) são também o que unifica as causas do movimento físico : não se trataria de ‘duas’, uma do pensamento e outra do movimento, mas duma só (ousia, em Aristósteles, é tanto a essência quanto a substância). Assim como em Kant o transcendental torna possível o empírico na síntese a priori, há que compreender que em Aristóteles, também o logos ‘antecipa’ (acolhe e unifica) aquilo de que se pode falar, sem separação entre ideal e real. Esta síntese a priori acaba por negar, no fundo, a oposição ‘análise / síntese’, isto é que haja um qualquer ‘antes’ da dispersão : os númenos das coisas em Kant teriam um estatuto próximo quer da ousia primeira, a ‘substância primeira’ ou substrato de cada ente particular, não susceptível de ciência, cognoscível apenas no seus ‘acidentes’, quer da hulê, a ‘matéria’ aristotélica – que não é verificável senão informada por uma forma – a qual desaparece em Kant (no sentido pelo menos em que o fenómeno é o que aparece) com os númenos, a coisa em si desconhecida, a existência do Mundo.
60. E encontramos outra semelhança : o gesto aristotélico de criticar as Ideias eternas de Platão, gesto que permite conhecer as coisas deste mundo, é a aproximar da colocação por Kant de Deus fora do conhecimento humano, e portanto também da sua contestação das provas da existência de Deus. Porque se trata do mesmo gesto : a recusa dum referencial absoluto (exterior) para o conhecimento. É certo que os argumentos escolásticos a favor da existência de Deus (excepto o ontológico, claro) são de origem aristotélica, o que depende da sua física, do privilégio dos seres vivos como tendo o movimento por eles mesmos (euatô); em Kant, é a inércia dos corpos da física newtoniana que, relativizando a ‘substância’ – como massa mensurável ou quantidade de matéria, portanto em relação essencial com outras massas, não há massa senão em relação a outras massas (§ 66n) – e atribuindo qualquer modificação do estado inerte dum corpo (em repouso ou em movimento rectilíneo uniforme : isto é qualquer efeito de aceleração, positiva ou negativa) a forças exteriores ao corpo (recusa pois da « força de inércia » de Newton), é pois essa inércia do movimento físico que despede o Deus dos filósofos. A alma imortal, com a sua relação privilegiada às Ideias ou a Deus, também é despedida do conhecimento, tanto em Aristóteles como em Kant, pelas mesmas razões realistas, como se diz : para que o conhecimento possa começar exclusivamente pela experiência sensível, sensações, percepções, imaginação, etc. É, em cada um à sua maneira própria – autarcia e autonomia respectivamente – a afirmação racional e com brio da finitude humana. Tão opostos nas respectivas físicas, tão próximos no entanto no grande gesto filosófico : será necessário afastar-se tanto dum pensador para se tornar seu próximo ?


[1] Havendo o cuidado, é claro, de precisar que as relações entre os diversos elementos da civilização moderna europeia não se explicitaram simultaneamente, mas com disparidades cronológicas : a máquina a vapor foi inventada cem anos antes da termodinâmica que fornece a teoria dela, ou então as armas de fogo, substituindo as armas brancas da civilização ‘natural’, surgiram na viragem do século 15 para 16, um pouco antes do protestantismo. E se Napoleão toca o sino pela morte da conquista, também inaugura com o seu código civil a administração moderna.
[2] Que leva Kant a ultrapassar o atomismo, como Aristóteles recusa o de Demócrito.

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