terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O double bind social

O double bind social

43. As sociedades têm que se alimentar (a cargo das unidades locais de habitação) e de se defenderem das outras (a cargo do conjunto). Com efeito, de maneira geral, em qualquer tipo de sociedade mas com concretizações mais ou menos complexas consoante, têm que se distinguir estas unidades locais de habitação – residências tribais, casas antigas, unidades de emprego (ou instituições) e famílias na modernidade – do conjunto social, digamos público, que diz respeito a toda a população (festas, guerras, legislação, etc.) Qualquer unidade local é retirada deste comum social, que é privado dela, esta palavra dizendo com felicidade o retiro estrito social. Que essas unidades sejam privadas, é uma condição elementar da habitação quotidiana, a retracção necessária para que os seus usos não sejam estorvados pela multidão exterior. Mesmo as unidades que recebem clientes têm sempre uma zona privada, ligada aos seus usos de ‘produção’. Ora, estes usos não foram inventados por aqueles que os aprenderam, repetem-se mais ou menos os mesmos nas diversas unidades sociais, são quinhão comum da sociedade. A privação diz que é este ‘comum’ que é apropriado pela unidade privada. Duma forma geral, fora do sentido jurídico, qualquer propriedade privada é uma retracção do comum, uma desapropriação[1], que é apropriada para que a habitação (os usos) seja possível de forma dinâmica, organizada em autonomia, livre. A unidade social privada liga os seus habitantes no sistema dos usos, com um laço que é social por si mesmo, muito semelhante ao das outras unidades.
44. Mas como a razão de ser desta privação é a dinâmica da sua apropriação, que ela seja ‘própria’ às pessoas da unidade, as suas ‘envies’ seguirão a regra geral de qualquer ‘envie’ : ‘envie’ de ser a melhor, de ser invejada (‘enviée’) pelas outras. As vestes e outros enfeites, o luxo, os presentes, a generosidade das festas dadas, desde os ‘potlachs’ aos casamentos riquíssimos, encontra-se sempre a mesma lógica, que cristaliza no culto do ‘nome próprio’ da unidade, da honra da casa ou da família, do prestígio da instituição. É óbvio que uma tal dinâmica ameaça o conjunto social de desagregação, impedindo as solidariedades necessárias em caso de catástrofe e nomeadamente de guerra. É por isso que as diversas unidades sociais são ligadas por um laço social global, por uma lei de regulação das trocas e da resolução dos conflitos, garantida por uma instância de autoridade.
45. O laço social é portanto duplo, ligando por um lado os useiros de cada unidade social e por outro as diversas unidades em uma sociedade, pensemos nas sociedades chamadas primitivas, tem que assegurar a reprodução de cada um, nomeadamente a sua alimentação, tem que ter em conta a boa dimensão da unidade em função da demografia, dos nascimentos, e das condições ecológicas ; é a fecundidade da terra, incluindo a das mulheres, que dá a regra da segmentação : não deve haver habitantes de mais nem de menos, nem ‘envies’ a mais nem a menos. Ora, como a fecundidade é a riqueza que todas as unidades locais procuram e que portanto atrai as ‘envies’ de umas sobre as outras, compreende-se que o laço de cada unidade seja inconciliável com aquele que rege o conjunto e tem que conter todos os excessos ; por outro lado, sozinha, nenhuma unidade se poderá defender das outras tribos estrangeiras guerreiras, donde que estas leis sejam também indissociáveis.



[1] O que taqmbém e verdade de tudo o que nós temos de mais ‘próprio’, a nossa singularidade, o nosso ‘eu’, o nosso pensamento, que nos vêm dos usos comuns desapropriados dos outros e apropriados (aprendidos) por nós (ou foram eles que nos apropriaram). As palavras dos outros com que nós pensamos, já se disse, ‘tornam-se’ as nossas próprias palavras.

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