O retiro regulador das oscilações entre pequenas repetições e acontecimentos
65. Após este longo percurso através das ciências das sociedades[1], voltemos à questão dos retiros constitutivos dos tão diversos fenómenos das diferentes disciplinas científicas, a fim de poder abordar um pouco melhor a questão mais difícil, a dos respectivos double binds. O que chamei, com inspiração heidegeriana directa, retiro doador, diz respeito à ‘vinda ao ser’ destes mecanismos autónomos vivos, à maneira como os mecanismos que estão na origem deles os ‘deixam ser’ autónomos de maneira progressiva, segundo a temporalidade do seu tamanho : retirados, esses doadores permanecem ‘apagados’ nesses mecanismos, que são o ‘rasto’ deles (Derrida). Enquanto que o retiro estrito – este de inspiração derridiana – faz parte dos mecanismos, retém a energia demasiada em repetições que se podem dizer automáticas, já que fora de qualquer interferência directa : no caso do automóvel, por exemplo, é impossível pôr a mão no cilindro onde se faz a explosão da gasolina ; o núcleo atómico é inexpugnável nas condições terrestres de temperatura ; os biólogos defendem como dogma que o ADN não recebe aquisições do ambiente ; o sistema fonológico de cada língua resiste também às mudanças na longa duração, reformula a fonética das palavras estrangeiras recebidas[2] ; o interdito do incesto permanece inexpugnável quando todos os ‘tabus’ sexuais parecem ter caído ; o próprio nome de recalcamento diz como tudo o que se aproxima dele é engolido com ele. O elenco é eloquente : obviamente que estas repetições automáticas não são adequadas às cenas em que a lei obriga a ter em conta o aleatório provocado pelos outros mecanismos autónomos, é portanto necessário que haja entre eles um mecanismo de regulação, que deve ter a espontaneidade da autonomia e a maleabilidade rigorosa da adequação à cena dos outros, à sua lei de circulação. No caso do carro, o mais simples porque sem auto nutrição, esta regulação é assegurada pelo aparelho, por tudo o que não é o motor cilíndrico de explosão. Desembraiado, ao ralenti, ele consiste apenas nas repetições estritas do êmbolo, a embraiagem e a caixa de velocidades são mecanismos de oscilação que permitem à máquina mudar de comportamento segundo os acasos do trânsito, de travar quando a toda a velocidade ou, pelo contrário, a acelerar depressa quando a estrada se abre, ganhar intensidade, a exaltação de guiar : trata-se do acontecimento em relação à monotonia dum engarrafamento, feita de pequenas repetições, pára, arranca. Estes mecanismos repetem-se – como uso – no condutor do carro. Ele aprendeu a regular as pequenas repetições da máquina e as suas oscilações, a ter também pequenas repetições automáticas na condução, a tornar-se ele próprio em certo sentido uma peça da máquina, já que os seus movimentos têm que seguir os acasos do tráfego quase maquinalmente, automaticamente, sem dar quase atenção, com a espontaneidade da habilidade, atento à direcção a tomar, aos outros carros, aos sinais do trânsito na estrada, com uma espécie de atenção flutuante, em calão psicanalista, que as pequenas repetições, com o seu automatismo, tornam possível. A atenção está sempre na expectativa dum acontecimento sempre possível ou à procura duma intensidade de velocidade, num rally, por exemplo, uma perseguição de carros num filme de acção.
66. Podem-se dar para a linguagem exemplos semelhantes de oscilações entre pequenas repetições e acontecimentos. Os fonemas (ou letras) são repetições estritas, em que a voz que as diz tem um papel motor, de ex-pressão (ou os dedos no teclado, de im-pressão). Mas as frases que se dizem têm uma quantidade de regras de morfologia e de sintaxe, preposições, conjunções, acordo de género e número, flexão dos verbos, que nós fazemos automaticamente, sem pensar nelas. Podemos supor que escolhemos, muito rapidamente aliás, os nomes e adjectivos, verbos e advérbios, mas eles chegam-nos à boca já encadeados em frases linguisticamente correctas. Poderíamos falar se tivéssemos que dar atenção a cada uma dessas regras ? Não posso evitar de falar aqui do livro mais extraordinário, do ponto de vista da metodologia linguística[3] : em 1975, pela primeira vez desde as gramáticas da Antiguidade, o livro Méthodes en syntaxe de Maurice Gross apresentou um análise de cerca de 3000 verbos franceses, isto é uma análise bastante perto da exaustividade dos verbos franceses mais frequentes, algo que nenhum linguista antes dele parece ter sequer sonhado (sempre só se trabalhou com alguns exemplos). Ele apresenta 19 quadros em que esses 3000 verbos são classificados segundo a sua aceitação de frases completivas em posição quer de sujeito quer de complemento[4], cada quadro dando um número maior ou menor de outras propriedades sintáxicas permitindo distinguir os seus verbos num conjunto de 2000 classes (1,5 em média) de verbos segundo as suas propriedades sintácticas. Ora bem, são estas propriedades que em cada um de nós saem todas feitas, permitindo-nos ter uma conversa ou uma discussão, com todos os seus aleatórios e surpresas, a ponto de por vezes se dizer algo que surpreende o que o diz, lapso que faça rir ou ideia que dê que pensar.
67. As unidades sociais privadas que são retiradas estritamente, são-no para assegurar a rotina quotidiana dos usos, usos diferentes consoante as especializações, é claro, mas segundo gestos (de cozinha ou de higiene, escrever em papeis, pôr tijolos, arrumar caixas, que sei eu ?) que se repetem em todo o lado. Esta rotina, tão mal afamada, é todavia aquilo que qualquer empresa tem que assegurar para ter um mínimo de produtividade, já que esta seria nula, ou melhor extremamente negativa, se cada empregado tivesse que inventar os seus gestos minuto a minuto. Ela é, ao contrário do que parece que se pensa muitas vezes, a condição da habilidade e da agilidade diante de qualquer acontecimento, de qualquer dificuldade que haja que evitar ou resolver mais ou menos depressa : tal como na estrada, quando o acidente possível ameaça, há que dominar as pequenas repetições e não que inventar novidades ! Week-ends, feriados, férias, são para os que trabalham acontecimentos que interrompem essa rotina, como para o patrão a conclusão dum bom contrato ou, ao contrário, uma greve do seu pessoal, uma epidemia, uma revolução.
68. Igualmente para a biologia. Deixemos de lado a questão complicada do metabolismo celular, para olharmos esse espantoso ‘meio interior’ (Claude Bernard) que J.-D. Vincent (1986) expõe e cujo equilíbrio homeostático é o que está verdadeiramente em jogo em qualquer organismo animal. O equilíbrio do sangue entre dois limiares : de temperatura, pressões arterial e de osmose, taxas de oxigénio, açúcar, pH, e por aí fora. A rotina da respiração (com os seus acontecimentos : constipação, tosse, charuto, corrida) e a da circulação do sangue (acontecimentos : refeição ou jejum, indigestão, infecção, bebedeira), são pequenas repetições ao serviço da alimentação de cada célula do organismo, cujo metabolismo está em certo sentido em retiro estrito, constantemente repetitivo, do conjunto orgânico. Encontra-se assim portanto uma regulação entre pequenas repetições e acontecimentos que nos poderá ajudar a precisar melhor, embora de maneira breve, o que está em questão nisto : um equilíbrio instável, oscilante, porque dependente do aleatório exterior em que ele vai buscar aquilo com que manter a sua estabilidade. O jogo hormonal parece ser o principal mecanismo que vigia sobre este equilíbrio, quer jogando sobre órgãos internos, quer pulsionando a comportamentos (de predação, de fuga ao predador, ao frio ou ao calor, etc.). Para o conseguir, ele tem que estar ‘presente’ quando é preciso e ‘ausente’ quando não o é (a hormona que comanda o apetite duas horas e meia mais ou menos - o tempo da digestão chegar ao sangue - antes de as células precisarem do alimento, tem que ser anulada por outra de saciedade desde que a refeição seja suficiente, também muito antes de as células terem beneficiado). É esta oscilação entre presença e ausência que me parece característica desta regulação, a ausência sendo justamente um retiro disponível para qualquer eventualidade, à maneira da atenção flutuante do automobilista.
69. Este exemplo permite passar ao jogo do cérebro e da sua misteriosa memória. Por um lado, tem-se a oscilação entre a atenção agarrada pelo acontecimento (ou surpreendida por ele) e a atenção flutuante dos usos de rotina, depois entre esta e a relaxação divagante, e ainda entre esta e o sono, e ainda entre o sono profundo ou lento e o sono paradoxal dos sonhos. Por outro lado, tem-se a memória requerida por estas oscilações. Quem sabe dizer o que é que ela é, a memória ? Em princípio, a resposta é simples e exacta : ela não pode ser senão os grafos das sinapses neuronais (Changeux, § 24), sob forma química, que é susceptível de estabilidade em contraponto com o fluxo nervoso, de electricidade iónica (portanto capaz de química) que percorre esses grafos, grafados aliás pela repetição desses fluxos. Mais difícil é querer precisar melhor. Seja o exemplo da língua : quando eu, português, escrevo em francês, onde está a memória da minha língua ?[5] E vice-versa, quando falo português, onde está o meu francês ? A memória é ausência. Nós sabemos uma quantidade imensa de coisas desde que aprendemos a falar e que fomos à escola : é-nos todavia impossível ‘saber’ explicitamente esse imenso saber, expô-lo diante de nós à maneira duma enciclopédia pessoal, ele só nos vem em conta-gotas, quando o aleatório dum acontecimento atrai a nossa atenção e o faz vir (sous-venir, sub-vir, dizem os franceses). Uma lembrança não é nunca senão um fragmento ínfimo dessa memória que se torna ‘presente’, a imensa memória permanecendo ‘ausente’, esquecida. Retirada. Só vem ao apelo de outra coisa, ainda que uma simples associação de ideias, segundo regras que nos escapam quase totalmente[6], além das dos textos, linguísticas e culturais à vez, a que ela obedece, parece, regras essas que parecem ter desaparecido dos sonhos.
70. Será que as unidades sociais têm uma memória ? Poderia ser o paradigma de Kuhn, tal como ele o definiu[7], se o alargássemos dos sistemas de usos dos laboratórios científicos aos de qualquer unidade social : o que, atraindo-os[8], liga os diversos useiros para cumprirem os usos tal como os aprenderam dos mais velhos iniciados, o seu sistema de receitas, em suma, a memória social do que há que fazer. Desde que o cérebro seja requerido, linguagem, uso, aprendizagem, unidade social, a memória faz parte : ausente que se torna presente de maneira fragmentária pelos seus efeitos na cena em questão, retiro regulador que torna as repetições susceptíveis de adequação ao aleatório dos acontecimentos, da mesma maneira que, mutatis mutandis, o jogo das hormonas para regular o equilíbrio homeostático do sangue. Não se pode opor a estrutura e o acontecimento, a repetição e o singular, a língua e a fala, a sociedade (a espécie, a instituição) e o indivíduo, e por aí fora : nenhum destes termos é mais do que uma forma de oscilação entrópica com o outro do seu par.
[1] Bem maiscomplexas do que as outras : elas contêm os fenómenos de todas as outras disciplinas, sem que os seus sejam mecanismos autónomos semelhantes, mas estruturas ligando mecanismos, é talvez a razão pela qual estão menos avançadas, do ponto de vista fenomenológico aqui proposto.
[2] Mais os brasileiros do que os portugueses, no caso.
[3] O método supõe, é claro, a linguística gerale de Saussure (1972), Benveniste (1966), a dupla articulação (Martinet, 1967), muito importante para o fenomenólogo.
[4] Um exemplo ao acaso da p. 65, traduzível em sintaxe do português. Testes darão conta do funcionamento de tal verbo com as completivas no indicativo (para ‘saber’ : ‘Paulo sabe que Maria virá’ , mas não ‘Paulo sabe que Maria venha’) e de tal outro com as completivas no conjuntivo (para ‘querer’ : ‘ Paulo quer que Maria venha’, mas não ‘Paulo quer que Maria virá’).
[5] « Nos erros », responde Wally Bourdet que os corrigiu.
[6] A psicanálise jogou dde maneira muito astuciosa a associaçõa de ideias para encontrar algumas. Estas regras são pequenas repetições ? Como os velhinhos que se repetem frequentemente, ou nós quando algo nos preocupa muito e nos tornamos incapazes de pensar noutra coisa ?
[7] A Física de Aristóteles, o Almageste de Ptolomeu, os Principia e a Óptica de Newton, a Electricidade de Franklin, a Química de Lavoisier e a Geologia de Lyell, são performances que, escreve ele. « serviram durante muito tempo para definir implicitamente os problemas e os métodos legítimos dum domínio de investigação para gerações sucessivas de investigadores. Se puderam ter esse papel, foi porque tinham em comum duas características essenciais : écrit-il, “ont longtemps servi à définir implicitement les problèmes et les méthodes légitimes d’un domaine de recherche pour des générations successives de chercheurs. S’ils pouvaient jouer ce rôle, c’est qu’ils avaient en commun deux caractéristiques essentielles: leurs o que tinham conseguido era suficientemente notável para atraír [eu subl.] um grupo coerente de adeptos a outras formas de actividade científica concorentes ; por outro lado, eles abriam perspectivas suficientemente vastas para fornecer a este novo grupo de investigadores toda a espécie de problemas a resolver [eu subl.]. Às performances que têm em comum estas duas cracterísticas, continua Kuhn, chamarei doravante paradigmas » (pp. 30-31). A herança, a transmissão entre gerações (e portanto a aprendizagem) é-lhe essencial.
[8] Por vocação ao ofício, por um lado, pelo salário necessário para a alimentação, por outro (para muitos, infelizmente, só este é que conta).
65. Após este longo percurso através das ciências das sociedades[1], voltemos à questão dos retiros constitutivos dos tão diversos fenómenos das diferentes disciplinas científicas, a fim de poder abordar um pouco melhor a questão mais difícil, a dos respectivos double binds. O que chamei, com inspiração heidegeriana directa, retiro doador, diz respeito à ‘vinda ao ser’ destes mecanismos autónomos vivos, à maneira como os mecanismos que estão na origem deles os ‘deixam ser’ autónomos de maneira progressiva, segundo a temporalidade do seu tamanho : retirados, esses doadores permanecem ‘apagados’ nesses mecanismos, que são o ‘rasto’ deles (Derrida). Enquanto que o retiro estrito – este de inspiração derridiana – faz parte dos mecanismos, retém a energia demasiada em repetições que se podem dizer automáticas, já que fora de qualquer interferência directa : no caso do automóvel, por exemplo, é impossível pôr a mão no cilindro onde se faz a explosão da gasolina ; o núcleo atómico é inexpugnável nas condições terrestres de temperatura ; os biólogos defendem como dogma que o ADN não recebe aquisições do ambiente ; o sistema fonológico de cada língua resiste também às mudanças na longa duração, reformula a fonética das palavras estrangeiras recebidas[2] ; o interdito do incesto permanece inexpugnável quando todos os ‘tabus’ sexuais parecem ter caído ; o próprio nome de recalcamento diz como tudo o que se aproxima dele é engolido com ele. O elenco é eloquente : obviamente que estas repetições automáticas não são adequadas às cenas em que a lei obriga a ter em conta o aleatório provocado pelos outros mecanismos autónomos, é portanto necessário que haja entre eles um mecanismo de regulação, que deve ter a espontaneidade da autonomia e a maleabilidade rigorosa da adequação à cena dos outros, à sua lei de circulação. No caso do carro, o mais simples porque sem auto nutrição, esta regulação é assegurada pelo aparelho, por tudo o que não é o motor cilíndrico de explosão. Desembraiado, ao ralenti, ele consiste apenas nas repetições estritas do êmbolo, a embraiagem e a caixa de velocidades são mecanismos de oscilação que permitem à máquina mudar de comportamento segundo os acasos do trânsito, de travar quando a toda a velocidade ou, pelo contrário, a acelerar depressa quando a estrada se abre, ganhar intensidade, a exaltação de guiar : trata-se do acontecimento em relação à monotonia dum engarrafamento, feita de pequenas repetições, pára, arranca. Estes mecanismos repetem-se – como uso – no condutor do carro. Ele aprendeu a regular as pequenas repetições da máquina e as suas oscilações, a ter também pequenas repetições automáticas na condução, a tornar-se ele próprio em certo sentido uma peça da máquina, já que os seus movimentos têm que seguir os acasos do tráfego quase maquinalmente, automaticamente, sem dar quase atenção, com a espontaneidade da habilidade, atento à direcção a tomar, aos outros carros, aos sinais do trânsito na estrada, com uma espécie de atenção flutuante, em calão psicanalista, que as pequenas repetições, com o seu automatismo, tornam possível. A atenção está sempre na expectativa dum acontecimento sempre possível ou à procura duma intensidade de velocidade, num rally, por exemplo, uma perseguição de carros num filme de acção.
66. Podem-se dar para a linguagem exemplos semelhantes de oscilações entre pequenas repetições e acontecimentos. Os fonemas (ou letras) são repetições estritas, em que a voz que as diz tem um papel motor, de ex-pressão (ou os dedos no teclado, de im-pressão). Mas as frases que se dizem têm uma quantidade de regras de morfologia e de sintaxe, preposições, conjunções, acordo de género e número, flexão dos verbos, que nós fazemos automaticamente, sem pensar nelas. Podemos supor que escolhemos, muito rapidamente aliás, os nomes e adjectivos, verbos e advérbios, mas eles chegam-nos à boca já encadeados em frases linguisticamente correctas. Poderíamos falar se tivéssemos que dar atenção a cada uma dessas regras ? Não posso evitar de falar aqui do livro mais extraordinário, do ponto de vista da metodologia linguística[3] : em 1975, pela primeira vez desde as gramáticas da Antiguidade, o livro Méthodes en syntaxe de Maurice Gross apresentou um análise de cerca de 3000 verbos franceses, isto é uma análise bastante perto da exaustividade dos verbos franceses mais frequentes, algo que nenhum linguista antes dele parece ter sequer sonhado (sempre só se trabalhou com alguns exemplos). Ele apresenta 19 quadros em que esses 3000 verbos são classificados segundo a sua aceitação de frases completivas em posição quer de sujeito quer de complemento[4], cada quadro dando um número maior ou menor de outras propriedades sintáxicas permitindo distinguir os seus verbos num conjunto de 2000 classes (1,5 em média) de verbos segundo as suas propriedades sintácticas. Ora bem, são estas propriedades que em cada um de nós saem todas feitas, permitindo-nos ter uma conversa ou uma discussão, com todos os seus aleatórios e surpresas, a ponto de por vezes se dizer algo que surpreende o que o diz, lapso que faça rir ou ideia que dê que pensar.
67. As unidades sociais privadas que são retiradas estritamente, são-no para assegurar a rotina quotidiana dos usos, usos diferentes consoante as especializações, é claro, mas segundo gestos (de cozinha ou de higiene, escrever em papeis, pôr tijolos, arrumar caixas, que sei eu ?) que se repetem em todo o lado. Esta rotina, tão mal afamada, é todavia aquilo que qualquer empresa tem que assegurar para ter um mínimo de produtividade, já que esta seria nula, ou melhor extremamente negativa, se cada empregado tivesse que inventar os seus gestos minuto a minuto. Ela é, ao contrário do que parece que se pensa muitas vezes, a condição da habilidade e da agilidade diante de qualquer acontecimento, de qualquer dificuldade que haja que evitar ou resolver mais ou menos depressa : tal como na estrada, quando o acidente possível ameaça, há que dominar as pequenas repetições e não que inventar novidades ! Week-ends, feriados, férias, são para os que trabalham acontecimentos que interrompem essa rotina, como para o patrão a conclusão dum bom contrato ou, ao contrário, uma greve do seu pessoal, uma epidemia, uma revolução.
68. Igualmente para a biologia. Deixemos de lado a questão complicada do metabolismo celular, para olharmos esse espantoso ‘meio interior’ (Claude Bernard) que J.-D. Vincent (1986) expõe e cujo equilíbrio homeostático é o que está verdadeiramente em jogo em qualquer organismo animal. O equilíbrio do sangue entre dois limiares : de temperatura, pressões arterial e de osmose, taxas de oxigénio, açúcar, pH, e por aí fora. A rotina da respiração (com os seus acontecimentos : constipação, tosse, charuto, corrida) e a da circulação do sangue (acontecimentos : refeição ou jejum, indigestão, infecção, bebedeira), são pequenas repetições ao serviço da alimentação de cada célula do organismo, cujo metabolismo está em certo sentido em retiro estrito, constantemente repetitivo, do conjunto orgânico. Encontra-se assim portanto uma regulação entre pequenas repetições e acontecimentos que nos poderá ajudar a precisar melhor, embora de maneira breve, o que está em questão nisto : um equilíbrio instável, oscilante, porque dependente do aleatório exterior em que ele vai buscar aquilo com que manter a sua estabilidade. O jogo hormonal parece ser o principal mecanismo que vigia sobre este equilíbrio, quer jogando sobre órgãos internos, quer pulsionando a comportamentos (de predação, de fuga ao predador, ao frio ou ao calor, etc.). Para o conseguir, ele tem que estar ‘presente’ quando é preciso e ‘ausente’ quando não o é (a hormona que comanda o apetite duas horas e meia mais ou menos - o tempo da digestão chegar ao sangue - antes de as células precisarem do alimento, tem que ser anulada por outra de saciedade desde que a refeição seja suficiente, também muito antes de as células terem beneficiado). É esta oscilação entre presença e ausência que me parece característica desta regulação, a ausência sendo justamente um retiro disponível para qualquer eventualidade, à maneira da atenção flutuante do automobilista.
69. Este exemplo permite passar ao jogo do cérebro e da sua misteriosa memória. Por um lado, tem-se a oscilação entre a atenção agarrada pelo acontecimento (ou surpreendida por ele) e a atenção flutuante dos usos de rotina, depois entre esta e a relaxação divagante, e ainda entre esta e o sono, e ainda entre o sono profundo ou lento e o sono paradoxal dos sonhos. Por outro lado, tem-se a memória requerida por estas oscilações. Quem sabe dizer o que é que ela é, a memória ? Em princípio, a resposta é simples e exacta : ela não pode ser senão os grafos das sinapses neuronais (Changeux, § 24), sob forma química, que é susceptível de estabilidade em contraponto com o fluxo nervoso, de electricidade iónica (portanto capaz de química) que percorre esses grafos, grafados aliás pela repetição desses fluxos. Mais difícil é querer precisar melhor. Seja o exemplo da língua : quando eu, português, escrevo em francês, onde está a memória da minha língua ?[5] E vice-versa, quando falo português, onde está o meu francês ? A memória é ausência. Nós sabemos uma quantidade imensa de coisas desde que aprendemos a falar e que fomos à escola : é-nos todavia impossível ‘saber’ explicitamente esse imenso saber, expô-lo diante de nós à maneira duma enciclopédia pessoal, ele só nos vem em conta-gotas, quando o aleatório dum acontecimento atrai a nossa atenção e o faz vir (sous-venir, sub-vir, dizem os franceses). Uma lembrança não é nunca senão um fragmento ínfimo dessa memória que se torna ‘presente’, a imensa memória permanecendo ‘ausente’, esquecida. Retirada. Só vem ao apelo de outra coisa, ainda que uma simples associação de ideias, segundo regras que nos escapam quase totalmente[6], além das dos textos, linguísticas e culturais à vez, a que ela obedece, parece, regras essas que parecem ter desaparecido dos sonhos.
70. Será que as unidades sociais têm uma memória ? Poderia ser o paradigma de Kuhn, tal como ele o definiu[7], se o alargássemos dos sistemas de usos dos laboratórios científicos aos de qualquer unidade social : o que, atraindo-os[8], liga os diversos useiros para cumprirem os usos tal como os aprenderam dos mais velhos iniciados, o seu sistema de receitas, em suma, a memória social do que há que fazer. Desde que o cérebro seja requerido, linguagem, uso, aprendizagem, unidade social, a memória faz parte : ausente que se torna presente de maneira fragmentária pelos seus efeitos na cena em questão, retiro regulador que torna as repetições susceptíveis de adequação ao aleatório dos acontecimentos, da mesma maneira que, mutatis mutandis, o jogo das hormonas para regular o equilíbrio homeostático do sangue. Não se pode opor a estrutura e o acontecimento, a repetição e o singular, a língua e a fala, a sociedade (a espécie, a instituição) e o indivíduo, e por aí fora : nenhum destes termos é mais do que uma forma de oscilação entrópica com o outro do seu par.
[1] Bem maiscomplexas do que as outras : elas contêm os fenómenos de todas as outras disciplinas, sem que os seus sejam mecanismos autónomos semelhantes, mas estruturas ligando mecanismos, é talvez a razão pela qual estão menos avançadas, do ponto de vista fenomenológico aqui proposto.
[2] Mais os brasileiros do que os portugueses, no caso.
[3] O método supõe, é claro, a linguística gerale de Saussure (1972), Benveniste (1966), a dupla articulação (Martinet, 1967), muito importante para o fenomenólogo.
[4] Um exemplo ao acaso da p. 65, traduzível em sintaxe do português. Testes darão conta do funcionamento de tal verbo com as completivas no indicativo (para ‘saber’ : ‘Paulo sabe que Maria virá’ , mas não ‘Paulo sabe que Maria venha’) e de tal outro com as completivas no conjuntivo (para ‘querer’ : ‘ Paulo quer que Maria venha’, mas não ‘Paulo quer que Maria virá’).
[5] « Nos erros », responde Wally Bourdet que os corrigiu.
[6] A psicanálise jogou dde maneira muito astuciosa a associaçõa de ideias para encontrar algumas. Estas regras são pequenas repetições ? Como os velhinhos que se repetem frequentemente, ou nós quando algo nos preocupa muito e nos tornamos incapazes de pensar noutra coisa ?
[7] A Física de Aristóteles, o Almageste de Ptolomeu, os Principia e a Óptica de Newton, a Electricidade de Franklin, a Química de Lavoisier e a Geologia de Lyell, são performances que, escreve ele. « serviram durante muito tempo para definir implicitamente os problemas e os métodos legítimos dum domínio de investigação para gerações sucessivas de investigadores. Se puderam ter esse papel, foi porque tinham em comum duas características essenciais : écrit-il, “ont longtemps servi à définir implicitement les problèmes et les méthodes légitimes d’un domaine de recherche pour des générations successives de chercheurs. S’ils pouvaient jouer ce rôle, c’est qu’ils avaient en commun deux caractéristiques essentielles: leurs o que tinham conseguido era suficientemente notável para atraír [eu subl.] um grupo coerente de adeptos a outras formas de actividade científica concorentes ; por outro lado, eles abriam perspectivas suficientemente vastas para fornecer a este novo grupo de investigadores toda a espécie de problemas a resolver [eu subl.]. Às performances que têm em comum estas duas cracterísticas, continua Kuhn, chamarei doravante paradigmas » (pp. 30-31). A herança, a transmissão entre gerações (e portanto a aprendizagem) é-lhe essencial.
[8] Por vocação ao ofício, por um lado, pelo salário necessário para a alimentação, por outro (para muitos, infelizmente, só este é que conta).
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