terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Evolução e heterarcia

Lógica da evolução por suplemento (1) : em direcção da heterarcia

92. Visto da Terra com as nossas ciências, o Universo constitui uma única cena de circulação de graves que se desdobrou em outras que acrescentaram às precedentes novas regras de circulação. Para se ver um pouco mais claro, se se tomar o ponto de vista da estritura da energia excessiva e caótica, pode-se dizer que há quatro grandes linhas de (sub) cenas : a da gravidade (estriturado o núcleo atómico), a da alimentação (o programa genético), a da habitação humana (a privação das unidades sociais com interdito do incesto ou equivalente), a da inscrição (o sistema fonológico). Desdobradas umas a partir das outras, as linhas terrestres desdobraram-se por sua vez – por diferenciação em espécies variadas – em numerosas sub cenas, segundo duas grandes evoluções, uma biológica e outra histórica ; com o mesmo tipo de estritura, estas evoluções consistiram numa complexidade crescente do jogo oscilante em retiro regulador.
93. Olhemos do lado deste jogo de oscilações. As células de um mamífero fazem tudo o que têm que fazer na sua especialidade para conseguirem ser alimentadas, esta alimentação permitindo-lhes em seguida fazerem tudo o que têm que fazer na sua especialidade para conseguirem ser alimentadas, e assim de seguida, sem que se possa decidir entre ‘fazer’ e ‘ser alimentada’, entre o activo e o passivo. Chamemos a isto o círculo homeostático. É a indecibilidade deste círculo que torna tão difícil de afirmar teoricamente uma lógica, quer da origem da vida, quer da sua evolução em seguida. Porque as células e o seu programa genético, ligadas entre si pela circulação do sangue, atêm-se tenazmente à sua reprodução tal e qual : a evolução deveria ser impossível[1]. Igualmente, Lévi-Strauss descreveu as sociedades chamadas primitivas como sociedades frias, isto é, resistentes às invenções e à mudança histórica, sociedades contra o Estado, insistiu P. Clastres. Como as células, trata-se de resistência à evolução, duma espécie de ciclo repetitivo da ordem do parentesco, os seus mitos e rituais tendo essencialmente um papel conservador (« fazemos como os nossos pais sempre fizeram »). Heidegger falou do círculo hermenêutico : não se entra num texto sem se estar já, duma certa maneira, dentro dele, dentro da sua problemática. É o enigma da aprendizagem, da sua impossibilidade : a andar, a nadar, a falar, a tornar-se indígena duma unidade social, residência tribal ou laboratório muito especializado ; e no entanto, da mesma maneira que houve evolução, aprende-se o tempo todo (sem que nos espantemos suficientemente), as sociedades re(pro)duzem-se apesar das contradições entre as ‘envies’ (invejosas) das suas unidades locais de habitação. Enigma ainda das invenções impossíveis que abrem novos paradigmas : e no entanto elas acontecem. Trata-se, em cada nível, da inconciliabilidade e da indissociabilidade das duas leis do double bind, entre a autonomia dada e a heteronomia doadora que permanece retirada, que, no jogo complexo dos acontecimentos, torna possível o que é impossível, sem que se saiba como. E visto que não se sabe, é preciso de-cidir, quebrar o círculo para o compreender. Foi a obra da definição, que quebrou o círculo hermenêutico ; de Crick que decretou o dogma do determinismo genético para garantir a evolução apenas pelas mutações ; de Newton, recorrendo ao Criador para pôr em órbita os planetas do sistema solar[2] ; dos pais, mestres e outros chefes que castigam para obrigar a aprender. No entanto os doubles binds resistem : com efeito, acima do mineral pelo menos, só as homeostasias são capazes de durar, esses equilíbrios instáveis que Prigogine nos deu a compreender.
94. O motivo do suplemento, que Derrida (1967a) propôs para compreender as relações entre escrita e sexualidade em Rousseau, pode vir ajudar-nos aqui. Um suplemento vem a mais, acrescenta qualquer coisa ao que havia já, suprindo uma carência, uma falta que ele vem preencher, como um jogador suplente numa equipa desfalcada de outro que se magoou : é um ‘sobre-mais’ (surplus) indispensável ao suprido. Se se quiser pensar assim a evolução, esta falta da cena precedente é preenchida pelas novas assemblagens numa nova (sub) cena. Paradoxo prigoginiano, a falta aqui é um excesso de energia a que falta ordem, estabilidade, que pede portanto um suplemento[3]. Ora, parece que em Derrida, que retomou frequentemente este motivo, ele jogou sobretudo para articular natureza e cultura, como se diz, sem ruptura entre ambas, sem dualismo pois. Seja um exemplo, o da invenção do neo cortex nas aves e mamíferos, desdobrado a partir do antigo (peixes e répteis)[4]. Há um duplo efeito suplementar, de acrescento e de retorno atrás. Quanto a este, a homeotermia (o sangue quente) devida a esse sobre-mais cerebral, beneficia o sistema de nutrição que pode em consequência adaptar-se a climas muito diferentes (é mais ‘biológico’, ‘natural’). O primeiro traz um desenvolvimento essencial na habitação, traduzido, segundo creio, num leque maior de astúcias e estratagemas, quer de predação e fuga, quer de capacidade de demarcar um território para si, um habitat, e de o defender : os ninhos seriam um testemunho eloquente, encetando a futura técnica. A emissão de sonoridades terá crescido também : ainda os pássaros e os seus cantos, encetando a futura palavra. Ora, trata-se de ‘criar’ um ‘mundo’ para os grupos, um mundo no exterior (mais ‘cultural’), o dos ninhos, dos ramos de árvores, das tocas, dos sons também, das vibrações do ar a certas frequências : ‘natureza’ e ‘cultura’ já são indissociáveis nestas espécies, pois que não se pode restringir a natureza apenas ao sistema de nutrição (como sucederá talvez nas plantas).
95. Este motivo derridiano permite generalizar a transição histórica das sociedades de casas autárcicas às sociedades heterárcicas contemporâneas, permite uma abordagem da lógica das evoluções, tanto biológica como histórica, ou até mesmo do enigma das origens[5]. A lógica da autarcia é a duma justaposição de assemblagens semelhantes, homogéneas, enquanto que a heterarcia consiste numa nova organização de assemblagens especializadas, heterogéneas, criando portanto uma assemblagem dum nível mais elevado. Ora bem, é o que se encontra antes de mais na passagem do não vivo ao vivo, um grave (uma pedra, água) sendo uma justaposição de moléculas iguais, uma célula uma nova ordem de moléculas especializadas, diferentes entre si. É em seguida a lógica da evolução : colónias unicelulares dão primeiramente origem a organismos (de células com alguma especialização) em segmentos ou anéis justapostos ; a grande etapa seguinte, repetida quer nos invertebrados quer nos vertebrados, foi a das espécies com metamorfoses, passagem dum estádio de segmentos justapostos a um outro onde a especialização é generalizada ao conjunto do organismo ; enfim, as espécies acima encontraram os meios de da sua embriologia seja já a da especialização organizada dos tecidos.
96. Encontra-se uma lógica semelhante na evolução histórica das sociedades humanas. As mais simples segmentaram a sua população em unidades locais, em que os usos são, por definição, especializados já[6], mas o conjunto da sociedade é a justaposição dessas unidades. As sociedades de casas justapõem as agrícolas que asseguram as funções de alimentação, mas especializam as de defesa pelas dos nobres, enquanto que as cidades esboçam já o futuro suplemento heterárcico nas casas dos artesãos especializados (o conjunto regional em autarcia) ; todavia, estes diversos tipos de casas asseguram todas a reprodução sexual do parentesco, em conjunto a hereditariedade e a herança. E será o desenvolvimento heterárcico das cidades, fecundado pelos laboratórios científicos e pela escola, que quebrará as casas autárcicas entre unidades de actividade económica (ou equivalente) especializada e unidades exclusivamente de parentesco, as famílias. Esta heterarcia também conheceu desenvolvimentos, até à tendência actual a globalizar-se. Posto isto, uma nova questão se coloca : porquê ter-se chegado a estas unidades especializadas na reprodução sexual ? Haverá um outro aspecto da lógica escondida das evoluções, biológica e histórica ?


[1] É também o que provavelmente torna muito difíceis as investigações em embriologia.
[2] A inércia de cada planeta é passiva enquanto ‘dada’ pelo campo (§ 79), activa enquanto que jogando neste sobre os outros. Newton compreendeu o seu funcionamento, mas não como é que começou.
[3] Em Rousseau aliás também.
[4] É este o responsável da homeostasia do sangue e da sua articulação com os comportamentos de predação e de fuga. O neo-cortex, cujos grafos passam também pelo paleo-cortex (é por isso que se trata dum duplo cérebro e não de dois cérebros), especializa-se nestess comportamentos. Esta articulação, a mais enigmática que há, entre as hormonas do paleo-cortex e portanto a homeostasia do sangue, por um lado, e os neurotransmissores e grafos do neo-cortex, por outro, é o lugar enigmático do chamado psico-somático, provavelmente das doenças com esse nome.
[5] Este enigma consiste essencialmente em que é a repetição, a reprodução, que é originária, isto é que não há origem.
[6] À maneira das moléculas duma célula.

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