Um exemplo de obstáculo epistemológico
30. Gostaria de saber se a leitura do capítulo precedente trouxe alguma compreensão nova ao leitor informado no que diz respeito à biologia ou à linguística. O esboço de fenomenologia aí exposto, não o encontrei em nenhum dos livros de especialistas que me ensinaram o que posso saber nesses domínios[1]. Se o que avanço se revelar esclarecedor ao nível da divulgação, então terá que haver algures um obstáculo do lado dos cientistas, que não poderá ser senão de ordem epistemológica ou filosófica, deverá ter a ver com o nível em que este ensaio se situa. Com efeito, se esta proposta de filosofia com ciências tem algum cabimento, as ciências, filhas rebeldes da filosofia, devem ter guardado nelas – sem o saberem – algo da mãe. Tendo-o contactado por correio electrónico após uma passagem recente em Portugal, a réplica de Edgar Morin ao meu projecto esclareceu-me bastante : « há disjunção completa entre filosofia e ciências ». É de prever que seja uma visão das coisas, de índole positivista, bastante partilhada pelos cientistas. Tenho pois que insistir : não tenho nenhuma pretensão de ensinar a ninguém o que quer que seja de científico, tudo o que conto aprendi com eles. Tenho, sim, a pretensão de ensinar, inclusive aos cientistas, algo de filosofia que lhes poderá ser útil.
31. Retomemos então o exemplo da biologia. A grande descoberta da biologia molecular, quando se a compara com os outros domínios científicos retidos aqui, é o retiro estrito do ADN no núcleo da célula. Porquê este retiro ? A resposta é óbvia : tem que ser o mesmo ADN em todas as células (donde que muitos genes sejam inibidos, correspondendo a especializações de outras células), há que evitar que ele seja alterado, poupá-lo do metabolismo bioquímico. Ao nível deste, só o ARN mensageiro é utilizado e se degrada de seguida. É desta degradação que o ADN é retirado. Isto tem duas consequências. Por um lado, que o verdadeiro ‘motor’ das sínteses das proteínas seja o que o notabilíssimo biólogo italiano, Marcello Barbieri, chama o ribotipo, as diversas moléculas ribonucleicas do citoplasma, que têm que recorrer ao ADN a dado momento, sem que seja este a tomar a iniciativa (são necessários os mecanismos de regulação da expressão genética). Não há portanto que fazer do ADN o determinante de tudo o que sucede no funcionamento do organismo (no fenotipo, calão antigo que Barbieri retoma). É aí, creio, que os biólogos caiem na armadilha duma causalidade mecânica de origem filosófica e física. A segunda consequência : o papel do ADN e do conjunto do ribotipo limita-se[2] ao metabolismo, ao que se passa dentro da membrana celular (e nos seus arredores aquosos). Acima do nível celular, são os órgãos, segundo os dois grandes sistemas do organismo (o da alimentação e o da mobilidade, o cérebro regrando e articulando ambos num duplo sistema[3]), que se encarregam das diversas funções deste, as quais acabam por convergir na alimentação das células. O que significa que a lógica da evolução dos animais consiste no seguinte : no início da vida, as células, sozinhas ou em colónias, revelavam-se muito frágeis em ambientes com fortes variações, a evolução tendo consistido na junção delas e respectivas especializações de maneira que, ‘organizadas’, pudessem alimentar-se melhor, deixar o mar para a terra e até para os ares, etc.[4] Onde estará então o obstáculo epistemológico ? Julgo que numa espécie de visão ‘antropomórfica’ dos animais, opondo-os como ‘sujeitos’, ao mundo exterior, sujeitos que têm neles a sua dinâmica, que F. Varela chamou auto-poética ; ao contrário das máquinas, eles far-se-iam a si mesmos. Como se a nutrição fosse uma função do sujeito que se nutre (como a nossa maneira ‘civilizada’ de nos sentamos à mesa). Creio que se ignora assim a lei da selva (§ 26) que depende do que se pode chamar o princípio da conservação das moléculas de carbono. Estas não sendo infinitas, cada organismo tem que as ir buscar aonde elas estão : as plantas à atmosfera, os herbívoros às plantas, os carnívoros aos herbívoros. Não há pois auto-fabricação, mas uma cena de vida que fabrica os seus seres vivos, segundo uma lei geral de que cada um depende essencialmente e à qual tem que escapar o melhor que puder[5]. A biologia molecular, é o próprio Barbieri que chama a atenção para isso, imitou os filósofos das ideias do século XVII que colocaram a linguagem em posição secundária, instrumental[6] : aqui, foram os ribonucleicos que foram instrumentalizados.
[1] Com diferenças, sem dúvida : a minha formação de base é de engenheiro civil e depois tive uma licenciature em teologie em Paris ; no que diz respeito às outras ciências, defendi uma tese de doutoramento sobre a epistemologia da semântica saussuriana, enquanto que só conheço a biologia, a antropologia e a psicanálise por leituras de curioso. É notável que nenhum dos livros de biologia que li fazem referências significativas à anatomia, como se esta não contasse para a biologia molecular. A minhaa evocação dos §§ 23-24 não teria sido possível sem a Biologia das paixões de J.-D. Vincent.
[2] Salvo em casos excepcionais, as células das glândulas que produzem hormonas por exemplo.
[3] Eis uma lei que se repetirá noutros domínios : não são dois sistemas articulados, mas trata-se sempre de uma dupla articulação. É aonde Prigogine é importante : uma dada cena, quando está peltórica, desdobra-se numa outra cena que sresolve, segundo outras leis, o caos que a tornou necessária.
[4] O chamado ‘meio interior’ (Claude Bernard), sangue e linfa, assim como a seiva nas plantas e o líquido amniótico dos ovos e fetos, correspondem à necessidade estrutural do ‘mar’ como meio ambiente das células.
[5] Igualmente para os carros : a lei do tráfego (da cena) é primeira, não se fazem estradas nem fábricas ºpara ‘um’ carro, mas para milhares. Cada um dde nós, todavia ‘pensa’ no seu carro, condu-lo para o seu destiono escapando aos outros.
[6] Foi por a grande descoberta de Saussure, « na língua não há senão diferenças », ter permitido aos linguistas libertarem-se em parte deste obstáculo, que esta ciência teve no estruturalismo o papel de farol das outras ciências sociais.
30. Gostaria de saber se a leitura do capítulo precedente trouxe alguma compreensão nova ao leitor informado no que diz respeito à biologia ou à linguística. O esboço de fenomenologia aí exposto, não o encontrei em nenhum dos livros de especialistas que me ensinaram o que posso saber nesses domínios[1]. Se o que avanço se revelar esclarecedor ao nível da divulgação, então terá que haver algures um obstáculo do lado dos cientistas, que não poderá ser senão de ordem epistemológica ou filosófica, deverá ter a ver com o nível em que este ensaio se situa. Com efeito, se esta proposta de filosofia com ciências tem algum cabimento, as ciências, filhas rebeldes da filosofia, devem ter guardado nelas – sem o saberem – algo da mãe. Tendo-o contactado por correio electrónico após uma passagem recente em Portugal, a réplica de Edgar Morin ao meu projecto esclareceu-me bastante : « há disjunção completa entre filosofia e ciências ». É de prever que seja uma visão das coisas, de índole positivista, bastante partilhada pelos cientistas. Tenho pois que insistir : não tenho nenhuma pretensão de ensinar a ninguém o que quer que seja de científico, tudo o que conto aprendi com eles. Tenho, sim, a pretensão de ensinar, inclusive aos cientistas, algo de filosofia que lhes poderá ser útil.
31. Retomemos então o exemplo da biologia. A grande descoberta da biologia molecular, quando se a compara com os outros domínios científicos retidos aqui, é o retiro estrito do ADN no núcleo da célula. Porquê este retiro ? A resposta é óbvia : tem que ser o mesmo ADN em todas as células (donde que muitos genes sejam inibidos, correspondendo a especializações de outras células), há que evitar que ele seja alterado, poupá-lo do metabolismo bioquímico. Ao nível deste, só o ARN mensageiro é utilizado e se degrada de seguida. É desta degradação que o ADN é retirado. Isto tem duas consequências. Por um lado, que o verdadeiro ‘motor’ das sínteses das proteínas seja o que o notabilíssimo biólogo italiano, Marcello Barbieri, chama o ribotipo, as diversas moléculas ribonucleicas do citoplasma, que têm que recorrer ao ADN a dado momento, sem que seja este a tomar a iniciativa (são necessários os mecanismos de regulação da expressão genética). Não há portanto que fazer do ADN o determinante de tudo o que sucede no funcionamento do organismo (no fenotipo, calão antigo que Barbieri retoma). É aí, creio, que os biólogos caiem na armadilha duma causalidade mecânica de origem filosófica e física. A segunda consequência : o papel do ADN e do conjunto do ribotipo limita-se[2] ao metabolismo, ao que se passa dentro da membrana celular (e nos seus arredores aquosos). Acima do nível celular, são os órgãos, segundo os dois grandes sistemas do organismo (o da alimentação e o da mobilidade, o cérebro regrando e articulando ambos num duplo sistema[3]), que se encarregam das diversas funções deste, as quais acabam por convergir na alimentação das células. O que significa que a lógica da evolução dos animais consiste no seguinte : no início da vida, as células, sozinhas ou em colónias, revelavam-se muito frágeis em ambientes com fortes variações, a evolução tendo consistido na junção delas e respectivas especializações de maneira que, ‘organizadas’, pudessem alimentar-se melhor, deixar o mar para a terra e até para os ares, etc.[4] Onde estará então o obstáculo epistemológico ? Julgo que numa espécie de visão ‘antropomórfica’ dos animais, opondo-os como ‘sujeitos’, ao mundo exterior, sujeitos que têm neles a sua dinâmica, que F. Varela chamou auto-poética ; ao contrário das máquinas, eles far-se-iam a si mesmos. Como se a nutrição fosse uma função do sujeito que se nutre (como a nossa maneira ‘civilizada’ de nos sentamos à mesa). Creio que se ignora assim a lei da selva (§ 26) que depende do que se pode chamar o princípio da conservação das moléculas de carbono. Estas não sendo infinitas, cada organismo tem que as ir buscar aonde elas estão : as plantas à atmosfera, os herbívoros às plantas, os carnívoros aos herbívoros. Não há pois auto-fabricação, mas uma cena de vida que fabrica os seus seres vivos, segundo uma lei geral de que cada um depende essencialmente e à qual tem que escapar o melhor que puder[5]. A biologia molecular, é o próprio Barbieri que chama a atenção para isso, imitou os filósofos das ideias do século XVII que colocaram a linguagem em posição secundária, instrumental[6] : aqui, foram os ribonucleicos que foram instrumentalizados.
[1] Com diferenças, sem dúvida : a minha formação de base é de engenheiro civil e depois tive uma licenciature em teologie em Paris ; no que diz respeito às outras ciências, defendi uma tese de doutoramento sobre a epistemologia da semântica saussuriana, enquanto que só conheço a biologia, a antropologia e a psicanálise por leituras de curioso. É notável que nenhum dos livros de biologia que li fazem referências significativas à anatomia, como se esta não contasse para a biologia molecular. A minhaa evocação dos §§ 23-24 não teria sido possível sem a Biologia das paixões de J.-D. Vincent.
[2] Salvo em casos excepcionais, as células das glândulas que produzem hormonas por exemplo.
[3] Eis uma lei que se repetirá noutros domínios : não são dois sistemas articulados, mas trata-se sempre de uma dupla articulação. É aonde Prigogine é importante : uma dada cena, quando está peltórica, desdobra-se numa outra cena que sresolve, segundo outras leis, o caos que a tornou necessária.
[4] O chamado ‘meio interior’ (Claude Bernard), sangue e linfa, assim como a seiva nas plantas e o líquido amniótico dos ovos e fetos, correspondem à necessidade estrutural do ‘mar’ como meio ambiente das células.
[5] Igualmente para os carros : a lei do tráfego (da cena) é primeira, não se fazem estradas nem fábricas ºpara ‘um’ carro, mas para milhares. Cada um dde nós, todavia ‘pensa’ no seu carro, condu-lo para o seu destiono escapando aos outros.
[6] Foi por a grande descoberta de Saussure, « na língua não há senão diferenças », ter permitido aos linguistas libertarem-se em parte deste obstáculo, que esta ciência teve no estruturalismo o papel de farol das outras ciências sociais.
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