terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Os mamíferos e as línguas humanas

Os mamíferos e as línguas humanas

22. Tratemos agora dum outro critério que a máquina não pode ilustrar, porque tocante aos fenómenos de doação que dizem respeito aos seres vivos, que só encontramos em quatro domínios científicos, com exclusão da física e da química. Ele é de tal maneira importante que explica porque é que elas não têm aqui o lugar preponderante que tinham em filosofia das ciências. Em relação a elas, com efeito, será preciso ‘adaptar’ à fenomenalidade dos seus inertes e aos campos respectivos as descobertas dos outros cinco domínios da nova fenomenologia.
23. Procuremos articular as descobertas biológicas da genética e da neurologia. Seja uma espécie de mamíferos que, dados pela natureza, se reproduzem. O casal duma fêmea e dum macho tem que gerar duplos, machos e fêmeas, que por um lado sejam os mesmos (da mesma espécie) e que por outro lado não idênticos (são outros indivíduos). Para se reproduzirem, estes indivíduos têm que habitar um território ecológico propício à sua alimentação e à sua segurança. Para estes dois tipos de reprodução, da espécie e do indivíduo, a natureza joga da mesma maneira, ensinou-nos a biologia molecular : a mesmidade da espécie e do conjunto organizado dos comportamentos dos indivíduos é garantida pelo mesmo programa genético. Este todavia – contra o que parece que alguns genéticos pensam, se se der crédito às declarações que fazem aos jornais – não pode determinar os comportamentos de forma estrita, já que cada indivíduo em que agir em função do aleatório das presas a apanhar, das fugas para não ser presa de outros, etc. : encontramos o aleatório como no caso do tráfego automóvel. Mas aqui é mais complicado : a mesmidade tem que jogar essencialmente com a possibilidade de alteração devida ao outro que se come e ao ambiente em geral, mas sem perder a mesmidade da espécie ; para isso, é necessário que o programa genético possa, ao mesmo tempo, regular o jogo químico do metabolismo da sua célula[1] e guardar as suas moléculas de serem alteradas quimicamente : tem que ficar retirado (em linguagem heideggeriana) no núcleo da célula, o que é o resultado desse admirável mecanismo da duplicação dum segmento do ADN em ARN mensageiro, o qual opera a síntese química da proteína requerida e degrada-se em seguida (Monod e Jacob), enquanto que o ADN permanece guardado como o mesmo em vista da próxima vez. Por outro lado, ele tem que conter em si todas as regras necessárias às sínteses de proteínas de cada um dos cerca de 200 tipos celulares dum mamífero, segundo o aleatório também da comida que chega à célula e os teores do sangue, sobre cujo equilíbrio vigia o jogo hormonal.
24. Uma visita rápida pela anatomia do nosso mamífero mostraria facilmente como ela é orientada para assegurar o metabolismo de todas e de cada uma das suas células : a circulação do sangue traz-lhes oxigénio e nutrientes, enquanto que os aparelhos digestivo e respiratório se encarregam da alimentação do sangue ; os músculos e as patas, o cérebro e os respectivos órgãos de percepção, têm que agir no território em vista de encontrar o que comer, beber, respirar. Como o consegue ? Tem que ser aguilhoado pelo jogo hormonal que, atento ao equilíbrio homeostático do sangue entre dois limiares[2], tem que o assegurar, accionado por via genética. Se o sangue tem falta de nutrientes, o paleo cortex segrega hormonas da fome que movem o sistema da mobilidade que o neo cortex governa. Ora, ele não poderá caçar nem fugir a um eventual predador sem que algo do território seja inscrito duravelmente nas sinapses do seu cérebro, segundo os grafos do neurologista J.-P. Chan­geux. Estes grafos, por seu lado, são também regrados para que acções aleatórias sejam possíveis, comportamentos regrados a partir dos órgãos de percepção até aos músculos da mobilidade, depois de terem atravessado o duplo cérebro, o paleo cortex emocional herdado dos peixes e répteis e o neo cortex das aves e mamíferos, mais desenvolvido em nós, humanos. Tudo isto implica portanto nos mamíferos uma certa aprendizagem e a respectiva memória. O que tem como consequência que nada do que, num comportamento, implica algum conhecimento do território ecológico e das suas situações (de caça e outras) não pode ser estritamente determinado geneticamente. No caso dos humanos, as regras desses comportamentos são os usos sociais (que deverão ser objecto de estudo das ciências das sociedades), mais gerais ou mais especializados consoante, que são inscritos nos nossos cérebros de maneira a que sejamos mais ou menos hábeis na sua efectivação, de maneira que esses comportamentos se façam espontaneamente, a partir de dentro, como nossos, apesar de serem originados de fora, aprendidos. Seja um exemplo simplista desta não determinação genética : se tenho fome, trata-se dum efeito genético devido à fraca taxa de nutrientes no meu sangue, mas se devo comer uma sandes, fazer uns ovos mexidos ou ir a um restaurante, é uma decisão sobre comportamentos que não tem nada de genético.
25. Da mesma maneira, o leão com fome só se sacia se tem a sorte de encontrar uma presa e que esta não tenha, por sua vez, a sorte de lhe escapar. É por isso que, na evolução dos vertebrados, o olfacto (que joga quimicamente, à maneira das hormonas) teve que dar lugar estratégico à vista, audição e tacto e respectivas aprendizagens : quer dizer que o jogo químico de tipo hormonal, motor dos comportamentos (de fome, no nosso exemplo) também está cada vez mais retirado do território, à medida do desenvolvimento do neo cortex. Retirados assim do território, tanto os genes como as hormonas são cegos em relação a ele (como o cilindro do motor em relação ao tráfego), não podem pois determinar nenhum dos comportamentos, apesar do jogo genético sobre as hormonas que permanecem o ‘motor’.
26. Chega-se assim às duas leis indissociáveis e inconciliáveis das espécies animais. Uma dela é a autonomia do destino de cada indivíduo, regida a partir do retiro dos seus genes e do seu jogo hormona, que não busca senão a sua própria reprodução[3], a sua vida, o adiamento da sua morte, sendo para isso obrigado a comer outros vivos, vegetais ou animais ; a outra lei, equivalente à do tráfego, é a lei do conjunto de todos os outros animais que procuram o mesmo, já que nenhum sobrevive sem o sacrifício de outros vivos : á a lei da vida, a lei da selva. O que é coisa de grande espanto, é que esta lei – inconciliável com a de autoreprodução de cada um daqueles que fazem parte dela (são portanto indissociáveis) – seja eficaz, que a sua eficácia seja o segredo último da evolução, do que Darwin chamou selecção natural[4]. Com efeito, assim como a lei do tráfego comanda a engenharia do automóvel, também a anatomia de cada espécie é comandada pela lei da selva, anatomia muito precisamente adequada à melhor maneira de caçar e de não ser caçado : tantas milhões de espécies, que panóplia imensa de tão diferentes astúcias, leque inesgotável das artes de capturar e de se defender, venenos, garras, mandíbulas e dentes fortes, tromba e cornos, ferrões e teias de aranha, refúgio em tocas ou subindo às árvores, até às asas para voar. O jogo da alteração, tanto na sexualidade como na nutrição, é assim estrutural à reprodução do mesmo, é isso que não existe na máquina : o que eu como, é o outro ser vivo, animal ou vegeta, que se torna em mim mesmo ; sendo isto verdade desde a primeira célula, cada animal é ‘feito’, substancialmente, se se quiser, em cada uma das suas células e moléculas, de outros seres vivos de outras espécies. Espantosa lei da alimentacionalidade.
27. Ora, sucede o mesmo no que diz respeito aos meus usos, que aprendo de outros e se tornam meus, de maneira tal que sem eles não sou ninguém, nem sequer ‘eu’ : o processo de aprendizagem, por exemplo, da maneira de conduzir um automóvel, ‘fabrica’ o seu useiro, se se me permite a feia palavra, dando-lhe a espontaneidade dum talento singular. Também assim com a linguagem. Deste mecanismo, recorde-se como a linguística de inspiração saussuriana explicitou a dupla articulação das línguas humanas (A. Martinet) : as palavras são por um lado constituídas por fonemas (ou letras), por outro articulam-se em frases. Aqui, o que é que é retirado ? Os gritos elementares dos hominídeos nossos antepassados, mudados para fonemas, isto é para sons sem significação, que não são imagem de nada, não querem dizer nada (como as letras), retirados portanto do campo da significação e da troca directa : a partir deles, as línguas formam milhares de palavras com as quais se pode comunicar, encadeando-as em frases muito regradas, segundo regras sintáctico-semânticas (M. Gross) a que ninguém escapa, que se exercem em nós espontaneamente sem a gente saber como, segundo regras que são as mesmas para todos os falantes duma mesma língua (é este automatismo que se perde quando há ablação da área cortical de Broca). Estas frases, encadeadas por sua vez em discursos, permitem também que o sentido das palavras mais frequentes conheça uma variabilidade polissémica relativa e regrada, aumentando assim o leque das possibilidades de dizer. Esta dupla articulação, Martinet mostrou-o há mais de 50 anos, é correlativa, dum lado da economia fisiológica da nossa fonação, que não chega a articular de forma distinta senão algumas dezenas de sons simples (como as teclas dos nossos teclados), do outro lado da nossa capacidade de memória cerebral verbal, já que se diz que nós só utilizamos 3 a 5000 palavras, embora capazes de reconhecer até 30000. Como é que funciona esta linguagem assim adequada à nossa anatomia ? De tal maneira que, por um lado, as palavras e as outras regras da língua são comuns a todos, vêem-nos dos outros, e por isso nos podemos entender, enquanto que, por outro lado, essas frases integralmente regradas saem de nós muito espontaneamente - sem se pensar, sem que se possa pensar em todas as regras linguísticas utilizadas nelas, raramente alguém se engasga para encontrar uma palavra precisa – de maneira adequada à situação aleatória de conversa ou outra em que se fala. Com efeito, numa conversa – em que cada um toma o fio da palavra que acaba de ouvir para lhe acrescentar outra coisa, de acordo ou em contradição – só tem sentido porque cada um dos interlocutores é mais ou menos surpreendido pelo que o outro diz, não sabe de antemão o que o outro vai responder, tem por isso que ser capaz de improvisar segundo o fio aleatório da conversa, mas sempre seguindo as regras da língua, comuns a todos. Tal como um carro no tráfego da estrada. Paremos um pouco para pensar esta coisa extraordinária : nós pensamos espontaneamente com as palavras dos outros, com as palavras de toda a gente. É uma das maiores questões do pensamento ocidental, nunca bem colocada, que conheceu, desde Platão – a sua reminiscência (Ménon) e a sua maiêutica (Teeteto) -, as respostas mais diversas[5]. É que há aqui duas leis inconciliáveis que jogam indissociavelmente : a do senso comum, que todos partilham, por um lado, no comércio ou tráfego da chamada comunicação, e a da pulsão a falar singularmente de cada um, a se destacar pelo que diz como inédito, pulsão essa que levaria à loucura se não fosse constrangida desde a infância a conformar-se à pertinência do senso comum, a dissimular o que vem espontaneamente à cabeça (Flahault, § 63) e que, se estivesse constantemente em contradição com a lei de todos lhe valeria a reputação de ser estúpido, ou doido, e a ser marginalizado socialmente. Pelo contrário, em sonhos por vezes a loucura triunfa.
28. Estes mecanismos de autonomia não funcionariam de maneira autónoma, justamente, se não houvesse um outro tipo de retiro a não ser o do ‘motor’ : o retiro daqueles que dão o próprio mecanismo, as suas regras iguais à de todos os indivíduos, da espécie ou da língua consoante. A mãe dum mamífero que o traz no seu ventre (o pai tendo-se retirado logo após a cópula) retira-se de maneira progressiva : gravidez e parto, retiro que mantém a alimentação pelo seio, novo retiro com o desmame, aprendizagem dos gestos de ver e mexer, de andar e falar, e por aí fora, até que, adultos, deixam a casa paterna. Este retiro dos pais manifesta-se eloquentemente na morte destes, os filhos permanecendo autónomos sem eles : tanto no que diz respeito ao ADN que regula a sua alimentação e crescimento como pelo uso da fala. Os próprios poetas não dispõem para fazer um poema das palavras dos outros (Ma­nuel Gusmão) : a linguagem é este mecanismo fabuloso vindo totalmente de fora, duma tradição bem ancestral que – enigma dos enigmas – tornou possível o talento singular dum Borges, dum Char, dum Dostoiewski ; os rastos dos outros, daqueles com quem aprendemos tal ou tal palavra, tal ou tal saber, têm que estar totalmente apagados para que esses rastos falem em nós a nossa palavra autónoma. Se escutássemos as vozes dos outros nesses vestígios (traces), como nos sonhos eles se manifestam por vezes, se ouvíssemos os nossos mestres a ditar-nos ao ouvido o que dizer em tal ou tal situação, seríamos alucinados, loucos.
29. Já que a lei é heteronómica, dada por outros, esta doação tem que se apagar absolutamente. Dir-se-á que se trata de mecanismos de autonomia com heteronomia apagada. Tanto é verdade da comida que nos é dada todos os dias para se tornar a nossa substância vital como de tudo o que se aprende ao longo de toda a nossa vida ; ainda que saibamos aonde aprendemos isto ou aquilo, quando usamos o nosso saber ao falar ou escrever, a recordação dessa doação está absolutamente apagada. E é sem dúvida esse apagamento absoluto que explica que ela tenha passado, ainda em nossos dias, segundo parece, desapercebida dos cientistas dos diversos domínios que se ocupam dela. O próprio Heidegger, cujo pensamento sobre o ser e o Ereignis permite esclarecer isto de maneira tão espantosa, não parece ter-se apercebido de todo o alcance do seu trabalho, inclusive ao nível dos seres vivos.


[1] Variável segundo os tecidos especializados e o aleatório do que se come, dos teores atmosféricos, as necessidades da célula em moléculas gastas, etc.
[2] Tensão, temperatura, pH, teor de oxigénio e outras moléculas essenciais, etc.
[3] E a da espécie nas épocas do cio.
[4] Ao contrário do que se diz habitualmente, esta não é um ‘mecanismo’, mas uma ‘lei’ da evolução.
[5] Trata-se duma longa história. No que nos diz respeito, os Europeus clássicos do século 17, na sequência de Occam, ocuparam-se de ‘pensamento’, deixando à linguagem o papel instrumental da sua ‘expressão, do interior para o exterior. Trata-se tipicamente do logocentrismo que Derrida desconstruiu.

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