terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Unidades sociais

Unidades sociais : usos, aprendizagem, ‘envies’

38. Será primeiro necessário distinguir as ciências das sociedades, as cujo domínio é, de jure, o do conjunto duma sociedade, a saber a antropologia (sociedades pouco complexas), a história (sociedades agrícolas em torno de cidades) e a sociologia (sociedades modernas em que os cientistas intervêm), com uma indecisão entre as duas últimas no que diz respeito aos últimos séculos como período de transição, distingui-las pois das ciências sociais especializadas em certas estruturas sociais (e respectivas estatísticas) : demografia, economia, linguística, ciência jurídica, medicina pública, etc.
39. A análise das estruturas elementares do parentesco por Claude Lévi-Strauss depende da sexualidade, um dos mais estranhos fenómenos biológicos[1] : um inacreditável desperdício, o excesso de produção de gâmetas e, cada vez mais quando se sobe a escala dos vertebrados, de pulsões sexuais para o coito (delimitadas todavia pelos ciclos do cio) ; com efeito, a organização da sexualidade para a reprodução das espécies foi inventada pela evolução em função das probabilidades dum encontro casual entre duas células fêmea e macha. A biologia animal contradiz assim todos os princípios de economia da anatomia e da fisiologia dos seus organismos. Ora, entre os humanos, o desaparecimento do cio levou esse desperdício a um excesso tal que parece que a universalidade do interdito do incesto se justifica como condição estrita da convivialidade quotidiana dos humanos[2]. Seria com efeito uma consequência da lição de Lévi-Strauss, o interdito do incesto é a exogamia : tudo se passa como se não pudesse haver unidades locais de habitação estáveis a não ser que a sexualidade seja estritamente restringida, por um lado, o que leva, por outro lado, as diversas unidades locais[3] a trocarem as suas filhas e portanto a criarem relações sociais de aliança entre elas. Estas relações de aliança fazem a sociedade : com a troca das mulheres, estabelecem-se as condições de dimensão demográfica que torna possíveis a invenção e a transmissão dos usos tribais, língua, mitos e rituais, e ainda a solidariedade em situações mais difíceis, nomeadamente as de guerra[4].
40. Só que, dum ponto de vista fenomenológico, as ciências das sociedades estão menos avançadas do que as outras. Os humanos sendo animais de que a biologia se ocupa, que se devem alimentar e que são mortais, a sua dupla reprodução, no dia a dia e de geração em geração, tem que ser a questão crucial de qualquer sociedade, por onde deveria começar a sua abordagem, no sentido de se encontrar uma definição geral de sociedade, que seja válida desde as tribos à nossas[5]. Pode-se com efeito tentar encontrar uma analogia entre disciplinas sociais e biológicas : no passado, sucedeu que se metaforizassem por vezes as sociedades como organismos. As unidades destes são as células, compostas por sua vez de moléculas diversas, assim como os discursos linguísticos, que também se reproduzem, têm palavras enquanto unidades, compostas por sua vez de fonemas ou letras. Ponhamos que as unidades sociais de residência duma sociedade são as suas ‘células’ – cuja finalidade fundamental é a sua dupla reprodução, dia a dia e de geração em geração – aonde habitam segmentos da sua população, e que elas são compostas, na sua actividade quotidiana e ao longo do ano, pelos usos a que os seus habitantes se dedicam (as ‘moléculas’ sociais). Não será difícil de aceitar que, sendo mortais, tenham que ter como preocupação vital a de fazerem aprender esses usos às novas gerações que os substituirão. Uma sociedade não é a sua população, que não é empiricamente a mesma de 50 em 50 anos : será necessário definir sociedade pelo sistema de usos que ela reproduz incessantemente na Terra geográfica que habita e que a alimenta. O que se faz nas suas unidades locais de habitação.
41. E o que é um uso ? Uma espécie de ‘gene’ social, um elemento essencial da dupla reprodução da unidade de habitação : trata-se de qualquer coisa muito difícil de inventar mas mais ou menos fácil de aprender. Seja o exemplo duma receita culinária na sequência dos seus gestos e dos materiais utilizados : ela pede um certo tempo para ser aprendida, implica, caso a caso, um certo aleatório a fazer face segundo as circunstâncias concretas, uma habilidade a ganhar, ou até uma especialização, uns são mais capazes, outros menos. São portanto susceptíveis de avaliação pelos outros habitantes da unidade social. Os usos seriam a chave do que os sociólogos chamam a « socialização dos indivíduos » : o interesse científico deste motivo, em contraste com o de « acção » (Touraine) ou de ‘prática’ (Althusser), e até de ‘consciência’ (Husserl)[6], é de evitar a oposição sujeitos / objectos, aqueles sendo supostos autónomos, com saber, poder, deveres, sei lá, estes não sendo senão os instrumentos daqueles. No caso dos usos esta oposição não existe : o sujeito que aprende um uso torna-se outro (um useiro), é mudado por ele. Tanto o que aprende a cozinhar como a que aprende a conduzir um automóvel, a falar ou a escrever, a tocar piano. O useiro faz parte intrínseca do uso, da sua definição, não lhe é exterior, assim como os usos são essenciais para a reprodução do useiro. L’usager fait partie intrinsèque de l’usage, de sa définition, ne lui est point extérieur, de même que les usages sont essentiels à la reproduction de l’usager Estes usos poderão ser de tipo técnico, mas também os há que dizem respeito a castigos e recompensas, os rituais e as festas, a caça colectiva e a guerra, os jogos de amor e os partos. Não é isso que os antropólogos buscam conhecer, descrever, relacionar uns com os outros ? Os historiadores do passado ? Uma vez que esses usos se repetem em todas as unidades sociais, são ditos e pensados em receitas, a grande função da linguagem em qualquer sociedade sendo antes de mais poder dizer e pensar os gestos que se fazem em cada uso e a sua sequência, ensiná-los aos outros. Não se trata duma visão ‘utilitarista’ : contar um sonho ou um poema também é um uso social regulado.
42. Os usos socializam, os indígenas parecem-se uns com os outros, diferem dos estrangeiros. Mas, precisando de tempo e habilidade diante do aleatório, eles também singularizam o seu useiro. A voz de qualquer pessoa permite identificá-la socialmente (região, camada social, sexo) mas também individualmente (reconhecem-se as vozes ao telefone). As ‘performances’ singulares são assim avaliadas pelos outros, cada um deve provar que ocupa o seu lugar social da melhor maneira possível, o que se torna motivo de ‘envie[7] para os pequenos, que querem ser como este ou aquela, motivação essencial para as aprendizagens deles e, de forma geral, para a dinâmica social que pede que se tenha ‘envie’ de ocupar os poucos lugares de grande prestígio social, seja em termos de talento, luxo, de saber, de coragem, de generosidade, e assim. Mas em razão das pulsões hormonais que os humanos herdaram da evolução biológica, de fome, sexo, agressão, que são ‘cegas’ na sua raiz biológica, estas ‘envies’ podem tornar-se invejosas e precisam por isso de serem disciplinadas socialmente, mas de maneira a não quebrar o dinamismo. As maneiras de regular as ‘envies’ variam com as sociedades, sem dúvida, que têm prémios e castigos, contam histórias de heróis e de maus. Haverá todavia regras morais que qualquer sociedade tem que ter : não matar, não roubar, não violar, não difamar, para citar o velho decálogo bíblico. Mas poder-se-á precisar a lei moral de qualquer sociedade com a seguinte fórmula : as ‘envies’ não se devem satisfazer senão segundo os usos.


[1] Incluindo as plantas, de que me não ocupo.
[2] Isto tem afinidades com as análises de K. Lorenz, mas nele trata-se sobretudo de pulsões de fome que devem ser inibidas para que os membros duma sociedade animal não se comam uns aos outros.
[3] Ou melhor, as linhagens masculinas, nas sociedades patrilineares. A relação entre as estruturas de parentesco e as unidades locais de residência conhece muitas variações.
[4] Que, segundo P. Clastres, é bastante frequente nas sociedades ditas primitivas : segundo ele, as fronteiras das trocas (no interior) são também as da guerra (com o exterior).
[5] Foi um dos meus grandes espantos : não há uma definição geral de sociedade.
[6] É justamente pela aprendizagem que nos tornamos ser-no-mundo, que se adquire a precompreensão que dá possibilidades nesse mesmo mundo. A aprendizagem implica a ‘redução’ do empírico, substancial, do mestre com quem se aprende e o ‘preenchimento’ do aprendiz pelo saber-fazer respectivo (§ 18). Derrida deslocou a redução fenomenológica para a aprendizagem da linguagem mas ela vale para qualquer aprendizagem, em que se tem que chegar a ser-se capaz de repetir sozinho o que se está a aprender com outro.
[7] Trata-se dum motivo da antropologia francesa que não sei traduzir adequadamente em português : diz uma ‘ânsia’ não ansiosa, desejo, vontade de, apetite, fome, sêde e outras precisões, mas sendo prévio à ética, também pode dizer inveja.

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