terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Da autarcia à heterarcia

Da autarcia à heterarcia

57. As lógicas das duas modernidades, das sociedades de casas e das sociedades de instituições e famílias, são portanto muito contrastadas, tanto quanto as suas formas de energia. Aonde reina a energia biológica, há que aprender a guiá-la e fazê-la frutificar, sem se ter nunca o controle suficiente : nem da fecundidade agrícola nem do gado, nem de que haverá herdeiros machos. Os mitos religiosos, que contam sempre que a fecundidade é o segredo dos deuses, parecem ser correlativos desta dependência das sociedades em relação à ‘natureza’, à phusis de Aristóteles. Com uma espécie de compensação, todavia : as casas agrícolas, quando tudo corre bem, bastam-se a si mesmas, são autárcicas, assim como as cidades na sua região envolvente. O comércio (como a escola aliás) foi sempre marginal a essas populações, coisa das cidades, e sobretudo do rei e dos nobres, comércio de luxo. O saber-fazer, dos camponeses e dos pastores como dos artesãos e dos guerreiros, aprende-se em casa, de pai em filho e de mãe em filha, com eventuais segredos das casas, pedindo habilidade diante das circunstâncias aleatórias. Este saber-fazer, tão desprezado pelos modernos, tem no entanto o selo do seu valor : foi ele que permitiu à casa chegar aonde chegou, há pois que o repetir o melhor possível. Quer dizer que a herança é a trave-mestra das casas (e não os afectos) : do nome e da sua honra, das terras, rebanhos e edifícios, dos saber-fazer e até das virtudes. O preço desta autarcia é que nestas sociedades não há indivíduos, em sentido moderno : as pessoas pertencem às casas, em que a vida toda delas está integrada e submetida à lei paterna. Mesmo o pai, fora de casa, não vale senão pelo peso dela.
58. A lógica das sociedades contemporâneas é a inversa, ponto por ponto, ou quase. Rapidamente cada um se torna indivíduo na medida em que é habitante de mais duma unidade social (família e escola, emprego mais tarde), sem portanto ser ‘integrado’ inteiramente por nenhuma[1]. A especialização das unidades sociais, numa rede imensa que as fronteiras não param, já que as máquinas não as conhecem e que as moedas estão a encontrar maneiras de se aguentarem juntas, ou até de se unificarem. Foi o que Heidegger pensou no motivo do Ge-stell. Uma fábrica implica fazer antes de mais um organigrama e os respectivos cálculos, isto é re-presentar, colocar diante (darstellen) o conjunto, programá-lo. Depois há que requisitar (bestellen) as máquinas, as matérias-primas, etc., e colocá-las (stellen), incluindo os em­pregados (stellung, em­prego). Trata-se das condições - de razão – prévias ao pôr a fábrica a andar pelo capital investido (colocado), condições do seu ‘controle’ sobre cada ‘coisa’ que ele interpela para a obrigar a ‘dar razão’ (também stellen) e poder portanto comandá-la, requisitá-la, seguir de perto. Ora, isto é verdadeiro também de todas as outras fábricas já em marcha e das outras instituições. Foi a esta heterarcia programada por uma razão que calcula e prevê que Hei­degger chamou Ge-stell[2] : o que reúne (ge-) as diversas ‘colocações’ e ‘empregos’ e as directivas das ‘re-presentações’ que se fazem da marcha do conjunto e que, a partir da ciência física, « põe a natureza em intimação (stellt) de se mostrar como um complexo calculável e previ­sível de forças” (1958, p. 29). Enquanto tal, a rede não tem controle ; com efeito, ela não pode parar (sem perdas e desperdícios de toda a ordem, de lucros mas também de salários, claro), o que implica uma espécie de imperativo : ‘Isto tem que andar’. Cada um – administrador, banqueiro, ministro, tanto como o operário e o servente – tem que estar no seu posto, no seu ‘emprego’ no sistema, sem que haja lugares ‘de fora’, nem divinos nem transcendentais. Quando há crise, preço da heterarcia, toda a gente é atingida, mesmo se alguns se podem defender melhor do que outros.


[1] Outro exemplo de individuação impossível mas sociedades antigas, em que aprender era tornar-se equivalente e futuro substituto do mestre : aprende-se a utilizar máquinas que não se sabe como são feitas, assim como se lêem livros muito diferentes, sam ter a especialização dos seus autores.
[2] Sem ser fácil de traduzir, corresponde no entanto etimologicamente ao grego sín-tese ou ao latino com-posição.

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