terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Cena e laboratório

Cena e laboratório

36. Os exemplos do carro, do mamífero e da palavra ilustraram diversas cenas de circulação estruturalmente aleatória. As ‘coisas’ que circulam nelas, máquinas, animais, discursos, são estruturadas – por fabrico no primeiro caso, nascimento e crescimento no segundo, aprendizagem no terceiro – de maneira a poderem ser autónomas. E parece óbvio que foi sempre essa autonomia que levantou problemas aos que se interrogaram e perguntaram ‘porquê ?’ A dificuldade dos nosso antepassados em curiosidade era a complexidade das interacções nas cenas, havia muitos factores, o mais astucioso, Aristóteles, distinguiu os factores acidentais dos que eram específicos ou essenciais, tornou possível e operatório o nosso motivo de ‘espécie’, foi tão longe quanto era possível só com a ‘observação’. O que nós, modernos, chamamos ciência, surgiu no século XVII com a invenção do laboratório a partir dos arsenais, estaleiros e outros ofícios mecânicos[1]. O laboratório é, após a definição, uma outra espécie de redução, de retiro suspensivo, como operação de conhecimento : já que a cena e as suas entidades são muito complicadas, é preciso retirar-lhe uma parte e criar à parte, de forma muito precisamente delimitada, uma experimentação, um ‘movimento’ digamos, medindo-o no início e no fim. Depressa se compreendeu que, nessas condições bem determinadas, se encontravam sempre repetições, permitindo pouco a pouco formular « leis da natureza ». Sem que eu saiba dizer aonde e como tal se passou, aconteceu que uma das palavras latinas para ‘definição’ ou ‘delimitação’, a de ‘determinação’[2], veio a coincidir com a que se tinha herdado de Aristóteles, a saber a de ‘causa’ como o que na natureza, é a ‘razão’ do movimento analisado no laboratório. É claro que os sábios só se interessavam pelo laboratório por causa dessa ‘natureza’ móbil que queriam compreender. E assim como a linguagem que permitia pensar foi relegada pela ideia, pela representação mental, à função subalterna dum instrumento, também o laboratório foi esquecido : o sujeito sábio tinha a ver de imediato com o objecto natural, o que se passava no laboratório era como o que se passava na ‘natureza’ ; as determinações que o laboratório operava, excluindo outros factores, passava-se assim, sem mais, na cena[3], o determinismo da ‘natureza’ impôs-se aos sábios[4], pois essa era toda a razão de ser deles : descobrir regularidades, leis científicas aceitáveis por toda a gente.
37. Será um tanto grosseiro, tenho receio que muitos cientistas se sentirão injustamente apreciados. É claro que não se trata de querelas entre especialistas, entre cientistas e filósofos, apenas me espanto de não encontrar este tipo de questões levantado mesmo nos últimos dicionários de filosofia das ciências, nem nas obras de divulgação devidas a cientistas. Aquilo que pretendo poderá ser ilustrado pelos engenheiros de automóveis : trabalhando sempre sobre experimentações fragmentárias, não as podem ligar entre elas para terem uma máquina (trabalho teórico) senão tendo sempre os olhos voltados para a cena do tráfego e para as suas injunções (em ‘bifurcação’). As relações de causa e efeito são o essencial do trabalho dobre cada fragmento no laboratório, mas a concepção teórica do conjunto tem a ver com as tais ‘leis da natureza’ : a composição das regras encontradas só se pode fazer em função do aleatório da cena.


[1] Foi assim que Newton concebeu a sua ‘ciência’ como filosofia usando geometria e mecânica.
[2] Fines (definição), termo (determinação), limes (delimitação), são palavras latinas mais ou menos sinónimas, para designar fronteira, fim, termo, limite.
[3] Tendo posto a um amigo físico o exemplo do automóvel, vi-o com surpresa objectar-me as pequenas causalidades das diversas espécies umas sobre as outras. Raciocinava no laboratório.
[4] Também houve nesta história ‘determinações’ filosóficas, e mesmo teológicas. O determinismo de Sto. Agostinho foi retomado no debate entre protestantes (Lutero e Calvino eram agostinianos) e católicos, os sábios pertencendo sobretudo aos países dominados pelos primeiros.

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