terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Double bind e acontecimento

O double bind : a impossibilidade de pensar o acontecimento

113. O double bind é o motivo chave desta nova fenomenologia. Tomado de Bateson, foi introduzido por Derrida na sua gramatologia em Glas, Que reste-t-il du savoir absolu ? (1974), texto de viragem ao nível do estilo, e depois em La Carte postale, De Socrate à Freud et au-delà (1980). Retomou-o depois frequentemente a propósito de questões éticas e políticas, mas, tanto quanto sei, nunca com as preocupações ‘ontológicas’ voltadas para as ciências que tiveram um peso tão considerável nos seus primeiros textos. Cabe-me pois a mim assumir a responsabilidade. Levinas, que no entanto não morria de amores pela ontologia, escreveu o seguinte : « A obra de Derrida corta o desenvolvimento do pensamento ocidental por uma linha de demarcação semelhante à do kantismo, que separou a filosofia dogmática do criticismo ? Estamos de novo à beira duma ingenuidade, dum dogmatismo insuspeito que dormitava no fundo daquilo que tomávamos por espírito crítico ? Pode-se perguntá-lo. […] Novo corte na história da filosofia ? Também marcaria a sua continuidade. A história da filosofia não é provavelmente senão uma consciência crescente da dificuldade de pensar »[1]. Gostaria que o esboço que é este manifesto fosse suficiente para que o leitor tivesse encontrado um certo fundamento para a afirmação de Levinas. A linha de demarcação em relação ao kantismo é também uma dificuldade crescente de pensar : o motivo do double bind é o motivo dessa dificuldade, senão dessa impossibilidade. Pensar é estar sempre diante duma aporia, um caminho sem saída para o pensador : enquanto que nas cenas da chamada realidade essas aporias são ‘resolvidas’ pelo que se chama ‘acontecimentos’.
114. Dou três exemplos simples. Uma lei indissociável do tráfego – para que haja estradas e estações de gasolina, é preciso que haja muitos carros (não se as fazem só para meia-dúzia) – manifesta-se inconciliável com a autonomia de viagem de cada um nos engarrafamentos das entradas das grandes cidades. Nenhum condutor pode ‘pensar’ a resolução desta aporia, tem que se resignar a ela, a menos que seja o presidente da república com as sua motas a abrirem caminho. A lei da selva também não é dominável por nenhum animal, sempre susceptível de ser a presa de outros quando ele também tem que procurar alimentar-se. Mas a evolução resolveu a aporia, é certo que pagando o preço da extinção de inúmeras espécies. Os campeonatos desportivos só são apaixonantes quando nenhuma equipa está segura de antemão de vitória. Os Globle-trotters, para não ganharem todos os campeonatos americanos de baskett-ball, foram obrigados a saírem e a dedicarem-se ao circo.
115. De maneira geral, qualquer assemblagem sendo indeterminada por causa dos doubles binds que a constituem, nenhuma pode tão pouco dominar os acontecimentos possíveis na sua cena de circulação. É isso que torna a existência dos humanos ao mesmo tempo sempre ameaçada e exaltante de suspense, o ‘sentido’ de cada vida, como se diz, devendo ser decidido em cada grande acontecimento, através de estratégias que põem a sua competência à prova, mas devendo por outro lado economizar a energia estratégica em rotinas, pequenas repetições adaptadas. Há que ser ao mesmo tempo conservador e capaz de risco. Esta palavra ‘sentido’ lembra a bifurcação no começo deste texto : a linguagem torna possível ‘sair’ do lugar e momento em que se está, tomar distância, entre outras coisas, para o pensar, mas não permite anular a circulação da cena onde há muitos outros e as suas estratégias (incluindo micróbios !). Ao nível de cada animal, o double bind entre a reprodução das células e a do organismo, de sua circulação do sangue, cada uma devendo contar estrutuuralmente com a outra, mas esta inibindo o jogo do metabolismo celular para que ele cumpra a sua ‘especialidade’, é este double bind que parece ser v encido quando irrompe um cancro. Ao nível dos textos, é na poesia que parece que se manifesta mais claramente o seu double bind, jogando qao mesmo tempo com a lei do significante (musicalidade do poema) e com a do pensamento. A filosofia tentou dominar esta aporia, a irreductibilidade do jogo significante, reduzindo os ‘acidentes’, os acontecimentos que sucedem em lugares e momentos mais ou menos circunscritos, que se contam em narrativas : a definição foi o seu meio de produzir textos fora das particularidades narrativas e dos ‘eu’ e ‘tu’, textos gnosiológicos de essências definidas e argumentadas, inlocais, intemporais, incircunstanciais. Apenas linguagem, sem corporalidade assinalada : as cenas foram reduzidas no escritório do filósofo. Como nos laboratórios dos cientistas mais tarde. O que implicou apagar, não ter em conta, as circunstâncias concretas da produção desses textos, da sua lei de produção na cena cívica da discussão dos saberes. Este apagamento é estrutural, mas torna-se um pouco legível quando as circunstâncias se alteram suficientemente, a aporia torna-se assinalável por outro pensador, foi sempre ela que impulsionou a história do saber. Além da morte dos pensadores em seus lugares e tempos de vida, os textos venceram-na, à morte.

116. As três grandes linhas acima da gravitação – a da alimentação, a da habitação humana, a da inscrição – as da vitória sobre a fragilidade intrínseca que é a morte. Esta vitória é a da repetição, muito estrita, do rasto, sem origem e quase imortal : dos genes, dos usos, das palavras, do que se poderia chamar, em glosa de Derrida, quase-transcendentais.


[1] “Tout autrement”, L’Arc, nº 54, Jacques Derrida, 1973, p. 33

Sem comentários: