terça-feira, 19 de fevereiro de 2008


FILOSOFIA – COM – CIÊNCIAS, ou seja

A FENOMENOLOGIA REFORMULADA, EM VERDADE

Fernando Belo, Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, L’Harmattan, 2007

1. É certo que se trata dum texto muito ambicioso. Ele coloca-se todavia à altura dos que se preocupam com as ciências e com a cultura, que não podem deixar de deplorar a dispersão caótica das disciplinas científicas especializadas, em que ninguém é capaz de encontrar alguma unidade. Para os pedagogos avisados, é um dos problemas mais graves do sistema de ensino : se não se fala dele, deve ser porque não se vê solução para ele no horizonte. É o que se propõe aqui, de forma intempestiva. Pretende-se dar um novo passo nestas questões, após o de Thomas Kuhn há 45 anos : é preciso osar entrar nos paradigmas científicos actuais.
2. Para o conseguir, coloca-se em constelação, em frente a frente, seis disciplinas : dum lado, a fenomenologia, uma das correntes filosóficas mais importantes do século XX, com, por outro lado, os cinco principais domínos científicos elaborados nos dois últimos séculos – a respeito da matéria-energia, as biologias molecular e neuronal, as ciências das sociedades e as das línguas, a ciência psicológica que atravessa estas últimas. Esta colocação em conjunto articula os seis domínios uns aos outros, cada um recebendo uma luz nova. Fornece, além disso, um critério filosófico-científico para discernir as principais descobertas científicas deste mesmo século que passou. Ei-las : a) a teoria do átomo e da molécula, b) a biologia molecular, c) a teoria do interdito do incesto e da exogamia como constitutiva das sociedades primitivas (Lévi-Strauss), 4) a dupla articula­ção da linguagem (Saussure, Martinet, Gross), 5) a teoria freu­diena do psiquismo pulsional.
3. A Fenomenologia (Husserl, Heidegger e Derrida), evocada, a partir de exemplos, no capítulo 2, fornece aos capítulos 3 a 6 e 8 a maneira de descrever os cinco domínos científicos segundo o desenho destas descobertas principais. Por seu lado, a própria Fenomenologia, revisitada e enriquecida com esta contribuição científica múltipla, ganha um novo enfoque, assim como Heidegger e Derrida : pro­messa duma maior fecundidade.
4. Ter-se-á assim, digamos, a unificação articulada destes seis do­mínios, científicos e filosófico, numa espécie de novo patamar histórico da razão, que reata com a antiga aliança pré-kantiana entre filosofia e ciências, as quais retomam a dignidade filosófica que tinham perdido (filosofia da natureza, filosofia política e social, etc.). Esta abordagem filosófica das ciências tem em conta, essencialmente, as suas descobertas : a nova razão relevará da filosofia-com-ciências enquanto fe­nomenologia.
5. Ela torna possível as quatro teses (retiros e oscilação das assmeblagens, suplementaridade de articulação das cenas, verdade das estruturas encontradas) duma nova ontologia (capítulo 7) respeitante aos seres vivos, às unidades sociais dos humanos e aos seus textos e paradigmas como meca­nismos de auto­no­mia com hete­ro­nomia apagada, assemblagens tendo estruturas formais-entrópicas semelhantes, a que corresponde, dentro de certos limites, a inércia química e gravítica dos corpos ma­teriais (capítulo 8). Esta autonomia joga-se nas cenas do que se chama a ‘realidade’ – as cenas da gravitação, da alimentação, da habitação, da inscrição -, as respectivas assemblagens relevando do mesmo tipo de regras (heteronómicas), as que as diversas ciências trouxeram à luz. Assim será questão de articulação sem dualismo, de determinação sem determinismo, de relatividade sem relativismo, de redução sem reducionismo.
6. O capítulo 9 revisita a noção de ciência. O carácter estrutural do laboratório – enquanto lugar de teorização e experimentação que torna possíveis as condições de determinação e de redução de cada ciência – deve ser claramente distinguido da cena e do seu aleatório, do que acontece (na dita realidade), quer em termos de pequenas repetições homeostáticas (de cada assemblagem na sua cena, quer em termos de acontecimentos dizendo respeito a diversas assemblagens singulares. Não se oporá portanto história e estrutura : esta oposição, à maneira de muitas outras oposições filosóficas cortantes, releva duma falta de teorização desta diferença laboratório / cena.
7. O segundo volume retoma com mais detalhe algumas das questões levantadas no primeiro. Começa pelo enigma estrutural de cada humano – a liberdade, a ética e a questão dainvenção e/ou descoberta (capítulo 10) – e termina com a da economia face à globalização, à injustiça e à fome (capítulo 15), enquanto que o capítulo 12 compara inscrições (linguagem, matemática, música, imagens), artes e médias, retomando o debate entre o cérebro e o computador (e o livro) pelo viez das maneiras de se relacionarem às diversas inscrições.
8. O longo capítulo 11 trata de questões a respeito da articulaão de diversos domínios científicos : a evolução dos seres vivos, tendo em conta a notável teoria biológica de Marcello Barbieri ; a relação do cérebro à linguagem e aos outros usos sociais ; biologia e sociedade ; escrita, escola e sujeito, filosofia e história ; engenheiro e economista ; feminino e masculino ; o que está em jogo entre as sociedades de tradição agrícola e tendência à autarcia e as sociedades modernas mecanizadas com interdependência generalizada. É que a filosofia greco-europeia foi construída num epistema autárcico, submetido desde Galileu e Newton a uma desconstrição que põe em causa as noções substancialistas herdadas e as respectivas oposições conceptuais. O capítulo 14 retoma o conjunto da questão da articulação dos diversos domínios científicos, propondo, entre outras coisas, a hipótese dum fio da sexualidade, esclarecendo tanto a evolução biológica como a da história ocidental.
9. O capítulo 13 propõe na sua primeira parte uma leitura dando conta do percurso da filosofia, desde a Physica de Aristételes à Fenomenologia de Husserl, Heidegger et Derrida, tendo em conta o papel de ruptura dos laboratórios científicos : assiste-se, retomando a quarta tese de ontologia do capítulo 7, a uma espécie de acabamento da história greco-europeia da filosofia-com-ciências (a Physica de Aristóteles substituída pela Fenomenolgia reformulada), isto é, à afirmação da sua verdade histórica : portanto relativa, contra o relativismo reinante. Esta verdade é, em certo sentido, formalizada – na sequência da elaboração do motivo fenomenológico de re(pro)dução e à sua verificação em vários estratos dos di­versos domínios científicos - pela construção dum quadro fenomeno­lógico que coloca estes estratos em paralelo e demonstra como se pode pensar que as descobertas principais das ciências do século XX permanecerão verdadeiras (e não provisórias) no futuro da civilização que elas estão a revolver.
10. A Biologia substituindo a Física, matriz da Filosofia das Ciências durante o século passado, foi possível desconstruir a causalidade clássica europeia (e o seu modelo, a força local, substituída aqui pela força atractiva, como a da gravidade), assim como a representação enquanto exteriori­dade do sujeito e do objecto. E de contrariar em consequência (desde o exemplo do automóvel, no fim do capítulo 2) o determinismo que as ciências europeias herdaram da metafísica augustiniana.
11. O motivo derridiano do suplemento como articulação entre as diversas cenas (capítulo 14) permite compreeender, por um lado, como cada laboratório científico deve necessariamente reduzir tudo o que, da cena da dita realidade, não lhe diz respeito e, por outro lado, como ela não pode ter pretenções re­ducionistas sobre os laboratórios das outras ciências.
12. As cenas das diversas ciências e as suas descobertas são compreendidas a partir dos motivos fenomenológicos que as suas descrições permitiram (cena e assemblagem, sin-taxis dos três retiros, homeostasia, pequenas repetições e acontencimentos, duas leis inconciliáveis e indissociáveis em ‘double bind’). Assim : a) descrição do domínio da biologia molecular e neuronal (Vincent e Changeux) e da respectiva lei da selva ; b) uma definição de sociedade válida para as sociedades primitivas (antropologia), as sociedades de casas agrícolas (história) e sociedades de instituições e famílias (sociologia) dá a possibilidade de distinguir, de jure, estas três ciências das sociedades, de todas as outras ciências sociais (economia, linguística, sociologia do direito...), correspondendo a estruturas sociais (modernas) delimitadas ; o que é nomeadamente importante para a questão da relação entre sociologia e economia (J. Sapir e K. Polanyi) ; a hipótese duma lei da guerra, prolongando a da selva, e dos seus dois grandes tipos de violência, conquista e revolução ; c) descrição do domínio da linguagem, entre linguística saussuriana e semiótica ainda por vir (Lévi-Strauss e Barthes) ; d) descrição do domínio da psicanálise, mostrando o seu tipo específico de cientificidade e dos seus limites em relação às outras ciências, mormente a neurologia (irreducti­bili­dade metodolégiqca entre elas) ; e) proposição duma redescrição da Física-Química, muito discutível, sem dúvida, mas susceptível de articular a sua teoria do átomo e da molécula às outras cenas científicas e de lhes fornecer algumas indicações (precisão da diferença entre matéria mineral e matéria viva, alargamento do motivo prigoginiano de entropia enquanto produção de ordem instável, força atractiva).
13. A única astúcia deste texto reside na compreensão de que se podia compor entre eles os pensamentos de alguns dos maiores pensadores científicos e filosóficos do século XX. É deles que vem a força deste texto.
14. É por isso que ele pode ser tão anbicioso. Mas também muito arriscado. Ele não poderia ocorrer senão onde se puddesse estar mais à vontade de assumir profissionalmente o risco duma escrita - forçosamente lacunar e com insuficiências aos olhos dos cientistas das numerosas especialidades em cada um dos seis domínios – que nenhum especialista, por definição, não poderia escrever. Há hoje apesar de tudo numerosos livros sérios de divulgação que põem esta tentativa ao alcance de alguém suficientemente curioso. A lista bibliográfica não poderia ser todavia grande demais, já que era preciso ler lentamente : aopenentrar nos domínios científicos, o filósofo tem que criticar a ‘filosofia escondida’ nos seus paradigmas, sobretudo o conceito de ‘representação’ em torno da oposição, do dualismo sujeito / objecto, herdeiro da alma / corpo de outrora, o que não pode deixar de provocar resistências dos especialistas.
15. O texto é preciso e claro, tudo nele é novo. Reenvia constantemente os motivos desenvolvidos a outros que lhes estão ligados. A abordagem filosófica tem muitos exemplos, úteis aos que não são iniciaidos aos autores de referência.
Todos os motivos são definidos no momento certo, definições que um índice dos motivos dos motivos assinala, assim como as principais incidências dos argumentos, as correlações esclarecedoras com outros motivos, os reenvios entre questões diversas. Poder-se-á assim prestar serviço aos leitores, nomeadamente quando se tratar de questões menos conhecidas, e também ajudá-los a entrar na novidade da argumentação. Pode ser que a leitura seja mais fácil para os jovens em curso de formação, aainda não estruturados nas suas competências por muitos anos de prática segundo os paradigmas clássicos aqui reformulados.
16. Para concluir : trata-se duma revolução filosófica. Dito com toda a (i)modéstia : a nova fenomenologia deveria vir a ocupar na modernidade um papel análogo ao que foi o da Physica de Aristóteles até Kant (demonstração na primeira parte do capítulo 13).






Ler aqui o Manifesto duma Fenomenologia verdadeira

ou em francês em http://www.philosophieavecsciences.blogspot.com/

Sem comentários: