terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Não há última instância (contra o reducionismo)

Não há última instância (contra o reducionismo)

104. O reducionismo é a pretensão de certos cientistas de colocar a sua ciência no lugar da filosofia clássica e de dar conta, senão do conjunto das coisas do universo (o fisicalismo de certos físicos), pelo menos do que diz respeito ao social e ao humano : a economia marxista ou neo-liberal, a tendência de Freud e Lacan a explicar tudo pelo Édipo ou o inconsciente, a sociobiologia, que sei eu ? Em todos os casos trata-se, segundo creio, de não se entender a necessidade esrutural do laboratório na respectiva ciência, na medida em que essa necessidade implica um gesto de redução que o reducionismo ignora.
105. Mas a questão também se põe das ambições epistemológicas da filosofia, do seu alcance enquanto disciplina que inventou a definição e a consequente argumentação lógica sobre essências abstractas : a fenomenologia de Husserl que deveria ‘fundar’ as ciências, os diversos materialismos, idealismos e espiritualismos. É desse primado – marcado na expressão filosofia das ciências – que abdica o com no título deste texto.
106. A introdução dele fez-se relacionando a redução com a definição e alargando-lhe o alcance. Pode-se agora precisar melhor que, além do gesto de arranque ao contexto e de redução (ou exclusão) deste, a definição tem o seu lugar, quer em filosofia quer nas teorias científicas, para determinar a constelação dos motivos respectivos da maneira mais precisa possível. Enquanto que a redução terá a ver, mais precisamente, com o gesto de tomada do fenómeno (arrancado ao contexto, que é reduzido) para o trazer ao laboratório : se se trata de física, exemplo maior, de o trazer às operações de medição e experimentação. Estas reduzem a ‘substância’ daquilo que é medido (espaço, tempo, temperatura, massa, intensidade da corrente eléctrica, etc.) para não reter senão as diferenças medidas, as proporções, que servirão para preencher as variáveis das equações dos problemas dessas operações. Seja o exempo de Galileu. Sem cronómetros na época, teve que inventar a seguinte ‘técnica’ para medir o tempo ‘pesando-o’ ! « Para medir o tempo, tomávamos um grande balde cheio de água que atévamos bastante alto ; por um orifício estreito praticado no fundo escapava um fio de água que recolhíamos num recipiente, durante o tempo em que a bola rolava no canal. As quantidades de água recolhidas assim eram de cada vez pesadas com a ajuda duma balança muito sensível, as dif­erenças e proporções entre os pesos davam-nos as dife­renças e proporções entre os tempos ». É espectacular : meça-se em segundos ou em gramas de água, tanto faz do ponto de vista do próprio ‘conhecimento’ físico ; com efeito, não se tem lá ‘tempo’ como também não ‘espaço’, apenas medidas, diferenças não-substanciais. E isso basta essencialmente à física. É por isso que, ao nível laboratorial que define a física enquanto ciência (aonde a matemática está compreendida), esta não sabe nada do espaço nem do tempo nem da massa, devendo propor teorias ‘filosóficas’[1] como condição de interpretação da experimentação e das equações. E foi esta redução do ‘substancialismo’ (do aristotelismo medieval e europeu) que Husserl herdou, por via de Kant que a introduziu na sua filosofia juntamente com a física de Newton, reduzindo aquela às tarefas do conhecimento não científico.
107. Assim, por exemplo, a acústica, região da física que se ocupa dos fenómenos sonoros, não pode saber nada das leis linguísticas que se jogam na corrente sonora que é uma palavra humana, como também não a fisiologia da fonação ou do cérebro. A física é incompetente em linguística, porque os sons que ela estuda são reduzidos, na sua maneira de virem ao laboratório, das suas ‘qualidades’ sonoras, linguísticas ou musicais : a redução que ela opera impede-a de distinguir texto e música numa canção[2]. Mas a linguística, Saussure afirmava-o nitidamente no seu Cours de Linguistique Générale, reduz por sua vez a acústica e a fisiologia da fonação para poder estabelecer a fonologia. Quando acima se falava de irredutibilidade metodológica entre a neurologia e a psicanálise ou qualquer outra psicologia (§ 75), o que estava em questão era a necessidade recíproca de cada uma das disciplinas reduzir o que releva da outra[3]. De forma geral, qualquer ciência é-o duma certa (sub) cena de circulação e das respectivas assemblagens e só o pode ser reduzindo as regras das outras (sub) cenas, quer as que a precedem (são pressupostas, as novas regras não as podem contradizer), quer sendo-lhe suplementar (e por isso jogando com novas regras em relação à sua). A articulação interdisciplinar que se quer aqui favorecer só se pode fazer no respeito das autonomias da cada disciplina ou cena. E no entanto nenhuma destas cenas e ciências respectivas é independente das outras, já que elas são todas suplementares umas em relação às outras, articulam-se entre si segundo doubles binds.
108. Dito isto, é fácil de mostrar as interdependêncas recíprocas. Que todas as ciências europeias dependem da filosofia, a história delas mostra-o facilmente : todas nasceram dela, reformulando, ‘de forma filosófica’ antes de mais, as categorias recebidas da tradição (e os métodos, a começar pela definição e respectiva maneira de argumentar gnosiologicamente). E continuam a depender : por exemplo, nenhuma ciência pode justificar, com a sua metodologia, nem o seu laboratório nem a sua conceptualidade, nem estas próprias noções, de ‘noção’, ‘ciência’, ‘justificação’, ‘método’, ‘conceito’, como também não as de ‘essência’, ‘matéria’, ‘realidade’, ‘fenómeno’, ‘descrição’, ‘definição’, etc., etc. Mas a filosofia também não deixa de depender, na sua história, da geometria (Platão), da zoologia e da botânica (Aristóteles), da matemática (Descartes, Leibniz, Husserl), da física de Newton (Kant), etc. Da mesma maneira que hoje não pode deixar de depender da história (exemplo de Aristóteles e Kant há pouco), nem das filologias linguísticas (do grego, do latim, do alemão, etc.), mesmo quando um Heidegger (1968) reformula, com argumentos filosóficos, as traduções aceites dum capítulo da Physica de Aristóteles. Por seu lado, estas filologias também não podem fazer uma parte do seu ofício sem conhecer a história da filosofia. De jure, além da filosofia, tanto a história e/ou a sociologia[4] como a filologia linguística são incontornáveis para a interpretação dos conhecimentos científicos produzidos numa língua e num contexto social dado, sem que se possa, dizer o mesmo, julgo eu, da física-química ou da biologia, cujas regras são no entanto decisivas para tudo o que diz respeito ao humano. É esta ausência de última instância que justifica o levantamento aqui do parêntesis kantiano : a filosofia com ciências é, por um lado, a busca do que há de filosófico nas principais ciências, de como as suas descobertas no século 20 permitem reelaborar o discurso filosófico, por outro a demonstração do ‘solo’ histórico comum que é o das seis disciplinas e da sua essencial interdisciplinaridade.


[1] É por isso que Heidegger dizia que as ciências não ‘pensam’. Mas deveria ter acrescentado que os cientistas pensam como filósofos : é por isso que as suas teorias são susceptíveis de crítica filosófica ou epistemológica.
[2] Portanto nem as leis físicas da Acústica nem as biológicas da Genética e da Neurologia determinam as das línguas, maravilha de Babel ameaçada, tão pouco as das matemáticas ou das músicas.
[3] Pode-se dizer que A. Damásio descobriu nos seus pacientes do tipo Phineas Gage, a redução dos neurotransmissores dos usos de trabalho que lhes deixaram apenas os grafos de Changeux, as pequenas repetições desses usos. Pode suceder que os sonhos sejam, ao invés, os neurotransmissores jogando sozinhos nos grafos cerebrais sem a intervenção das zonas Broca e Wernicke da linguagem (de que relevariam o que Freud chamou « elaboração secundária »).
[4] Ou a antropologia que estuda um laboratório (B. Latour).

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