terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Escândalos

Escândalos

1. Quais foram as principais descobertas científicas do século 20 ? Pode-se responder a esta pergunta sem ser por uma enumeração empírica dependente das escolhas de cada um, pode-se responder-lhe com um critério rigoroso, simultaneamente filosófico e científico ? Quantas ciências há ? Algumas centenas, recortadas por milhares de especialidades, com limites a passarem dentro das fronteiras das vizinhas ? Quem sabe responder, quem conhece suficientemente para poder dizer um número que tenha um mínimo de verosimilhança ? Tudo menos um ‘especialista’, que por definição não conhece – mas bem demais, talvez – senão o seu domíniozinho. Os filósofos ? Mas, divididos em duas grandes correntes bastantes separadas uma da outra - a filosofia analítica anglo-saxónica, dum lado, do outro a fenomenologia predominando sobre tendências pré ou pós-estruturalistas -, os filósofos também se encontram disseminados em múltiplas especialidades, segundo horizontes bastantes divergentes. Ninguém se pode gabar de ‘dominar’, por pouco que seja, o arquipélago indefinido destas especialidades. O que não é necessariamente um má coisa, já que isso anula o fantasma duma dominação do ‘mundo’ pelos ‘sábios’, já que eles não se controlam também entre si. Mas que os nossos saberes se achem assim espalhados é indecente justamente enquanto saber.
2. As duas correntes que dominaram a história filosófica do século passado têm a sua fonte em Frege e Husserl, dois filósofos, lógicos e matemáticos, não muito longe um do outro, o segundo tendo inaugurado a fenomenologia com a mira na fundação das ciências e, talvez não tanto a sua unificação, pelo menos a sua articulação : o seu último grande título ainda andava em torno da « crise das ciências europeias ». Ora, segundo escândalo, a sua fenomenologia, que cem anos mais tarde está de razoável saúde – publicam-se livros e revistas, organizam-se congressos e colóquios, como todas as semanas se pode saber através dum semanário na Teia (Web) que tem numerosos assinantes -, parece ignorar quase totalmente a questão que era a obsessão do seu fundador. Procurar-se-á em vão artigos ou capítulos de livros sobre questões relevando de ciências, muito menos sobre a questão da sua articulação. Também do lado da filosofia das ciências, nos seus dicionários, as correntes da fenomenologia actual brilham pela sua ausência. É este duplo escândalo que move este manifesto, o torna intempestivo.
3. Voltemos à insólita questão inicial. O século 20 foi indiscutivelmente palco duma renovação extraordinária das ciências ocidentais : quais foram as suas principais descobertas, tendo em conta a diversidade dos domínios ? Não se procura um ‘top ten’, mas se se tratasse de eleger nos cinco domínios principais – matéria e energia, vida, sociedades, línguas e psiquismo humano – a respectiva descoberta maior, como haveria de proceder ? Escusado seria de perguntar aos especialistas, é óbvio, cada um puxaria para a sua especialidade e com boas razões. Também, pela mesma razão, seria escusdao procurar fazer sondagens junto do público culto ou das administrações universitárias. Cada domínio deveria ter o seu próprio critério ? Já não seria simples escolher entre a física da relatividade e a mecânica quântica, embora fosse mais fácil em relação à biologia molecular, excepto que a neurologia ficaria de parte. E em seguida, quanto às chamadas ciências sociais e humanas, como ter um guia ? Teriam elas tido descobertas que se possam colocar ao lado das que habitualmente são chamadas ‘ciências’ sem se acrescentar nenhum adjectivo ?
4. E se um dos critérios fosse o da articulação entre estes domínios, as maiores descobertas sendo as que a tornassem possível ? Por exemplo, a teoria do átomo e da molécula, por um lado, a biologia molecular do outro, estas duas teorias tendo tornado possível dar conta, a nível microscópio, dos dois grandes tipos de ‘matéria’ do universo, a inerte e a viva, e de os articular.
5. Um outro critério seria uma maneira de permitir ultrapassar o determinismo (que os cientistas tanto prezam) e o relativismo (que eles detestam). A primeira questão levar-nos-ia a perguntar aos cientistas porque é que eles têm necessidade, de forma essencial, dum laboratório. Que condições se criam nele que a chamada realidade não tem ? Condições de determinação ? Que não existem fora dos seus muros ? Então o determinismo não seria uma extrapolação indevida ? A segunda questão inquieta a ‘verdade’ do trabalho deles que, enquanto historicamente situado, não escapa à relatividade : será certo que aquilo que se procura, o que valha a alguns prémios Nobel invejados, está destinado a ser um erro daqui a algumas gerações ? Que as verdades das ciências, as que Newton descobriu, por exemplo, que triunfaram durante mais de dois séculos, seriam erros futuros ? Que não temos nenhuma maneira de tornar firmes algumas descobertas maiores, susceptíveis de durar enquanto a civilização actual durar ?
6. Ainda uma questão que não é costume pôr nestes domínios : como é que se aprende ? Como é que se forma um cientista ? Como é que se pode compreender, científica e filosoficamente, que alguém seja ‘formado’ a certas regras, teóricas e práticas, que ele terá de repetir escrupulosamente, e que, por outro lado, a sua meta seja descobrir algo de ‘novo’, em parte ao menos, em relação a essas regras teóricas que o formam ? Trata-se dum paradoxo interno ao motivo do paradigma proposto por Kuhn, não apenas entre ciência normal e crise, mas também entre repetição de rotina no laboratório e paixão de descobrir. Ele pede uma teoria da aprendizagem que vê-se mal sair duma qualquer especialidade científica, que parece pedir o concurso articulado de vários domínios.
7. O que nos possibilita interrogar agora do lado fenomenológico. O tipo de questões que acabámos de colocar não parece susceptível de ser respondido à maneira husserliana dum inquérito reflexivo sobre a consciência e os seus actos, partindo da intuição sensível da percepção até à intuição eidética das essências científicas. Se o motivo da redução parece continuar a convir ao arsenal científico – ele corresponde em parte à boa velha definição inventada pela escola socrática de filosofia -, teremos que seguir os dois dissidentes mais importantes da abordagem husserliana que largaram a « região consciência » do mestre, Heidegger e Derrida, e tentar encontrar neles o que nos possa ajudar a reelaborar uma fenomenologia adequada às descobertas científicas do século que se foi. Por um lado, eles introduziram a linguagem, o logos, no discurso fenomenológico (a qual linguagem, vinda de fora, trabalha portanto a ‘voz’ da consciência), dando assim aos ‘conceitos’ um peso histórico que a ideia europeia clássica ignorava. Ora, esta foi uma das invenções maiores, cartesiana, do século 17 de Galileu e Newton, preciosa na tarefa, não apenas de criticar o aristotelismo medieval, mas também de arrancar os fenómenos ao seu chamado contexto real para os trazer à experimentação laboratorial. Cortava-se assim o ‘sujeito’ – que teve a ideia – do ‘objecto’ que ela representava : do exterior das coisas (extensio) ao interior do pensamento (cogito). A linguagem, a escrita, os instrumentos do laboratório, tudo isso permanecia de fora, secundário, como ainda muitas vezes hoje se pensa. É o que a nova fenomenologia deve avaliar, como é que essa representação mental, criticada pelos filósofos desde algumas décadas, permanece o obstáculo ignorado no discurso e no pensamento dos cientistas. Ser-se-á assim levado a pôr em questão a própria noção de ‘mental’, o ‘mind’ anglo-saxão.
8. Por outro lado, Heidegger e Derrida alargaram as problemáticas do pensamento a toda a história do Ocidente, filosófica mas também científica (e literária), o que permitiu a Derrida contestar o papel preponderante do discurso filosófico em relação às ciências : desde o início, desde Platão e Aristóteles pelo menos, que ele sofreu o impacto (não logocêntrico, gramatológico) do jogo das ciências. O discurso filosófico é histórico, escrito em línguas diferentes, cuja tradução entre elas é também uma questão filosófica que pede recurso aos filólogos linguísticos e à história, sem que ele possa controlar esse recurso em última instância, como ele quereria. Há que generalizar : é a noção husserliana da fenomenologia como ciência filosófica rigorosa que deveria fundar as outras ciências, segundo uma posição teórica herdada pelo menos de Kant, que tem que ser recusada. Não mais filosofia das ciências, mas filosofia com as ciências, sem que nenhuma esteja em posição de última instância.
9. Tratar-se-á com efeito de dar um passo além do de Kuhn, de ir dentro dos paradigmas disciplinares de cada ciência para discernir nele a intromissão do discurso filosófico clássico. Se se tomar o motivo de epistema de Les Mots et les Choses de Foucault, pode-se distingui-lo do nível mais estritamente paradigmático onde se articula teoria e experimentação ; este nível epistémico seria o nível que reúne teoricamente os fragmentos da experimentação laboratorial e pensa o retorno aos fenómenos da chamada realidade, que se tornam assim fenómenos ‘conhecidos’ cientificamente. Se for verdade que toda a experimentação é fragmentária, é justamente a reconstituição do seu conjunto que constitui o gesto fenomenológico em cada ciência. É esse gesto, em grande parte ‘filosófico’, no sentido em que Althusser, numa perspectiva filosófica bem diferente, falava da « filosofia espontânea dos sábios », é nesse gesto que age subrepticiamente a representação mental, separando sujeito e objecto segundo o velho dualismo da alma e do corpo, correlativo da oposição interior / exterior ou dentro / fora, é esse gesto que se tratará de questionar criticamente, recorrendo à literatura de divulgação científica de que se dispõe hoje em dia em língua francesa.
10. Trabalhou-se assim cada uma das seis disciplinas, as cinco científicas e a fenomenológica, para tentar fazer delas uma composição articulada, susceptível, além disso, de esclarecer a nossa história greco-latino-europeia. O que foi todavia fonte de surpresas constantes, foi como cada disciplina mudava pelo efeito de composição com as outras e, por outro lado, como essas mudanças a deixavam ser duma maneira nova que sublinhava as descobertas maiores de que se partira ; os próprios Heidegger e Derrida deixavam ver dimensões inéditas dos seus pensamentos. Sem pretender reduzir o pensamento destes dois autores ao que deles retive, chamo fenomenologia esta filosofia com ciências, que é susceptível, quer-me parecer - além de regressar às próprias coisas -, de dar conta, de pensar e de conhecer muitas das questões que nos interessam hoje, algumas até que nos fazem mal. Mas tem que se acrescentar que é mais difícil do que ficar na sua especialidade.
11. A astúcia consiste em restituir à filosofia a amplidão que ela tinha antes do corte kantiano – que deu autonomia às ciências, libertando-as da metafísica (o que foi um grande bem !) e especializou a filosofia nas tarefas gnosiológicas -, a astúcia de fechar dois séculos mais tarde o parêntesis kantiano e de fazer a nova fenomenologia aproveitar da dimensão filosófica das diversas ciências e das suas descobertas. Do que temos uma grande necessidade, antes de mais pensando nos graves problemas pedagógicos do nosso ensino, devidos em boa parte ao caos disciplinar, à dificuldade, para os jovens alunos, de ligar as coisas diversas que aprendem em vasos compartimentados. É um escândalo.

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