terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O quadrado das inscrições

O quadrado sinóptico das ‘inscrições numa matéria de empréstimo’

61. Façamos um parêntesis para olhar, na cena da linguagem, outras estruturas diferentes dela. Distingamos entre os usos sociais os que são do género técnico doutros que não o são : os rituais, as leis, outros usos parecidos. Aonde situar a linguagem ? Como a caracterizar entre as estruturas da habitação humana ? Não se trata dum uso como os outros ; se também se aprende, quão lentamente !, e se se reproduz portanto de geração em geração tal como os outros, ela tem a especificidade de ser necessária também, sob forma de receitas, para a reprodução dos outros usos. Esta característica parece ligada a uma outra que a distingue dos usos de tipo técnico, os quais têm, por assim dizer, uma função ‘substancial’ (construção, máquinas, instrumentos, alimentos, etc) que tem uma relação essencial com a matéria inerte de que são construídos : a linguagem, pelo contrário, é constituída por um jogo diferencial de elementos, de palavras duplamente articuladas (s 27) que se inscrevem numa ‘matéria’ outra, sonora ou superfície (os sons das gargantas humanas ou do morse dos telégrafos, os papeis ou equivalentes das escritas, os buraquinhos salientes do braille)[1] e mudam dela facilmente, já que destinados a trocas entre vozes e ouvidos. Ora, esta forma de inscrição da linguagem é comum a outros jogos de diferenças, como a música, os caracteres matemáticos e as imagens. A primeira partilha a matéria de inscrição com a linguagem propriamente dita, a oral, mas também é susceptível de notação escrita, a qual por seu lado é essencial às operações com números e às imagens. Temos hoje uma maneira cómoda de distinguir estes quatro tipos de inscrição dos outros usos técnicos : só eles são susceptíveis de transmissão ao longe por fios eléctricos ou ondas electromagnéticas, de serem reproduzidos em computador.
62. Já que parece que não há nome comum a estes quatro tipos de inscrição, diferenciais e não ‘substanciais’, pode-se alargar ao conjunto a expressão de Alain, citada por P. Somville, para caracterizar a pintura : « inscrição numa matéria de empréstimo » (p. 46). Tratar-se-á aqui dum ensaio de caracterização recíproca destas quatro formas de inscrição, segundo um quadrado (quase) sinóptico. Para o fazer, tomaremos uma característica que lhes é comum à excepção das imagens : os seus elementos articulam-se segundo uma linearidade ao mesmo tempo espacial e temporal, de maneira tal que se distinguem reciprocamente sem se sobreporem (salvo as harmónicas musicais), são compostas (implicitamente) por operações de comutação (dos linguistas). Eis o quadrado. A linguagem oral e a sua escrita alfabética são duplamente articuladas, já que formam as suas frases por articulação (sintaxe) das unidades de referência às coisas, as palavras, que por seu turno são compostas por unidades imotivadas (os fonemas e as letras, que não são referência nem imagem de nada, não têm significação). A escrita matemática articula apenas unidades de referência, números, letras e signos sintácticos de operação, cuja significação é convencionada previamente : ela ignora portanto o nível das unidades imotivadas. A música também só tem uma articulação, mas é de unidades imotivadas (as chamadas notas musicais), já que sem referência, com as quais são compostas as melodias musicais. As imagens, por fim, unidades de referência por definição, não se articulam linearmente, são compostas em superfícies ou planos sem que se possa sequer falar de elementos discretos, de segmentação.
63. Este quadrado sinóptico permite deduzir as propriedades principais destes quatro tipos de inscrição numa matéria de empréstimo. As línguas duplamente articuladas utilizam a polissemia das palavras mais frequentes como maneira económica essencial que permite uma grande variabilidade de discursos, de estilos e de performances, desde as diferentes poesias e literaturas até aos textos gnosíológicos das ciências e filosofias (que se defendem como podem da polissemia através da definição). Tratando-se de línguas necessárias a qualquer sociedade para a reprodução dos seus outros usos, a imotivação das suas unidades elementares teve como consequência histórica a multiplicação das línguas, separando as populações em indígenas e estrangeiros, quaisquer que sejam as incidências genealógicas dumas sobre as outras[2]. Não há universalização sem tradução, o que é um grave problema para a universalidade da razão europeia. A articulação matemática apenas das unidades de referência exclui a polissemia e torna possível a exactidão desta escrita e a sua ‘verdade’, o erro sendo de ordem puramente sintáctica ; mas os limites dos caracteres ‘letras’ (para as constantes e as variáveis) mostram como as matemáticas sãs estruturalmente fragmentárias[3], segundo equações respondendo a problemas específicos (definidos pela constelação das suas variáveis) e não formando textos (que supõem sucessões de frases diferentes quanto ao sentido) ; sendo essencialmente escrita, ela não depende nem das línguas orais nem dos alfabetos[4], é portanto universal de jure. Imanente, uma vez que sem unidades de referência, a música é a única destas inscrições que possa ser dita abstracta, insusceptível de verdade e com liberdade máxima de composição. O próprio da imagem, sem articulação de elementos discretos, é ser singular, nem resumível, sem polissemia (em sentido estrito) nem ‘sentido’. Só existem em composição, em geral rectangular ; a arte da fotografia, do cinema e da pintura é justamente a da composição dos planos, do que há que incluir neles e excluir, da escala (do grande plano à panorâmica) e da perspectiva. Susceptíveis de ficção desde sempre, o quadro e o desenho, e por isso dubitativos quanto à verdade, a fotografia introduziu uma época de ‘verdade’ das imagens que está a acabar com a sua digitalização recente.
64. A questão da liberdade e da verdade no que respeita às línguas duplamente articuladas é mais complexa e merece reflexão à parte. Se nas línguas não houvesse senão a liberdade musical sem nenhuma verdade possível, seria a anarquia das liberdades, ninguém se entenderia. Se, pelo contrário, só houvesse a verdade exacta das matemáticas, falaríamos como máquinas, sem nenhuma liberdade. Se enfim as palavras fossem singulares como as coisas a dizer, permitindo milhares de ‘fotos’ diferentes de cada uma, elas seriam pura e simplesmente inúteis. Ora, enquanto que as outras inscrições são em geral negócio, senão de especialistas, pelo menos de gente dotada, a linguagem oral tem que ser – como os outros usos comuns da tribo – o bem de toda a gente, permitindo a cada um, não só marcar o seu lugar singular como antes de mais de pensar e ser estruturado como ser humano. A dificuldade é que tornar-se singular no seu estilo e nas suas performances quando se tem que aprender dos outros e a repetir as regras deles para se fazer entender e aceitar. Um texto curto e muito forte de F. Flahault (1979) resolveu a questão, sublinhando como numa conversa há sempre um só lugar que se tem que tomar : quem fala tem que fazer valer o seu direito a se fazer ouvir pelos outros, a sua pertinência[5]. Ora esta não nasce espontaneamente, tem que ser cultivada e para tal é preciso ser corrigido pelos outrros, aprender a não dizer logo o que vem espontaneamente à cabeça, a criticar-se a si mesmo primeiro, silenciosamente, para evitar a crítica social, ou seja a aprender a dissimular, a guardar segredos, a cultivar o seu foro interior, a sua ‘vida interior’, o seu pensamento, em suma. Esta capacidade de dissimulação é também a condição da mentira que pode fazer mal a outrem, sem dúvida, mas é a arte do actor, da ficção literária e artística. A singularidade de cada um implica a sua distância, o seu retiro em relação ao dizer dos outros, não lhes sofrer os constrangimentos impostos sem os avaliar. A linguagem duplamente articulada, elíptica e polissémica, presta-se muito bem a esse efeito.


[1] Com algumas diferenças devidas à diferença das matérias de inscrição (a linguagem oral não faz um intervalo entre todas as palavras como a nossa escrita alfabética, por exemplo, em que o branco faz parte do sistema de diferenças), trata-se no essencial do mesmo sistema.
[2] Assim as línguas latinas, de que se conhece bem a língua-mãe, não deixam de tornar os seus indígenas estrangeiroos aos das outras.
[3] E exaustivas, enquanto que qualquer discurso em lºíngua é estruturalmente elíptico.
[4] Apesar das convenções de definição das unidades precisarem das línguas, elas operam automaticamente, as calculadoras são testemunhas.
[5] Como é óbvio quando se trata de publicar, em artigo de jornal ou em livro, o problema é o mesmo.

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