O retiro doador dos antepassados : sagrado e cultura
46. Aqui chegados, é tempo de fazer intervir um outro tipo de retiro, já indicado no § 28. A reprodução sexual faz-se duma forma espantosa, por miniaturização e lentíssimo crescimento. Nos mamíferos, em vez de ovos postos no exterior, este processo foi internalizado na anatomia das fêmeas, o útero dela primeiro, o aleitamento depois. No invisível ovo resultante do coito é colocado, é dado o programa genético da espécie ; um dos doadores vai-se logo de seguida, enquanto que a doadora do óvulo se retirará muito lentamente, para que ele possa ganhar a autonomia dum futuro adulto. Já ao cabo de três ou quatro semanas, o embrião alimenta as suas células com o seu próprio sangue, carregado no entanto pelo sangue materno. Outro passo da retirada é o parto, em que os aparelhos digestivo e respiratório do bebé entram em funções, embora com alimentação do leite materno, cujo desmame representa um novo passo de retiro da doação. Durante longos anos, dar-se-lhe-á alimento, antes que ele o saiba fazer de forma autónoma. Igualmente, já se o sugeriu, aqueles que os ensinam a fala e os saber-fazer se retiram, num processo também de miniaturização, em que se dão as palavras, os gestos, as suas regras em conta-gotas, à medida deles, o saber de adulto retido em reserva. À medida que a criança fala e usa, há retraimento dos que a ensinaram, que podem muitas vezes serem surpreendidos pela habilidade manifestada. Aqui, o dado é o saber social que torna possível a reprodução da sociedade, os doadores que retiram a doação são legião, já que até aos últimos dias se aprende.
47. Porquê chamar retiro doador (ou da doação) a este fenómeno tão corrente e banal ? É uma linguagem heideggeriana, que Derrida retomou no seu motivo do rasto (trace). Torna possível compreender aspectos das sociedades que são menos bem conhecidos. Falar de retido doador para a herança da língua da tribo, implica que aquele que está retirado (no seu rasto ou vestígio apagado) não está totalmente ausente, que ele permanece grafado no cérebro do aprendiz, apagado mas susceptível de voltar inopinadamente à memória, ou então em sonho. Ele está lá, sem estar : retirado. Ora, é esse, de forma geral, o estado dos antepassados de qualquer sociedade : ausentes, visto que mortos, mas ‘lá’, retirados, na eficácia dos usos que eles transmitiram (e alguns raros inventaram). É esta eficácia da doação retirada que manifestam dois tipos importantes de fenómenos sociais : o sagrado e a cultura. Ambos são por essência ancestrais. Os cenários dos deuses e outros seres imortais variam muito, mas têm em comum de conseguirem trazer os antepassados de novo, ainda que ausentes, repetindo mitos e rituais o mais escrupulosamente possível (‘religio’ é ‘relegere’), tal qual eles também repetiam. Que antepassados ? Todos : o sagrado é holístico, vem de todos os antepassados e diz respeito a todos os habitantes actuais. O seu papel é estruturalmente ‘conservador’, impedir as inovações que modificariam os sistemas de usos ancestrais[1], Lévi-Strauss mostrou-o dos mitos amerindianos que analisou soberbamente. Ou então, « a sociedade contra o Estado » de P. Clastres.
48. Pelo contrário, pode-se chamar cultura a maneira como este fenómeno se apresenta nas sociedades de escrita e em que a invenção técnica de novos usos é frequente. Um novo texto importante, a invenção do comboio ou do automóvel, alteram aquilo que vem dos antepassados, acrescenta a herança, incita os habitantes a escolherem entre várias possibilidades. A partir dum certo limiar de inovação, o holismo sagrado desfaz-se, muitas obras culturais são referidas nominalmente àqueles que as criaram, não se pode aceder a todas (que muitas vezes se excluem mutuamente), há que criticar, avaliar, escolher. É esta a significação da palavra grega ‘heresia’, fenómeno estrutural aonde há multiplicidade de textos. A que se opõe a ortodoxia como tentativa de guardar o holismo do sagrado. Mas acontece com a cultura algo de comum com o sagrado : quando leio Sartre, leio o que ele escreveu, durante o tempo da minha leitura coincido no significante do seu texto, digamos, com a sua escrita, com ele a escrever, leio as palavras e frases que ele escreveu, torno-me o mesmo que ele durante esse tempo, mais ou menos capaz de compreender as suas argúcias, é claro. E naquilo que aprendo dele, ainda que eventualmente crítico, ele fica lá, meu antepassado, retirado em mim. Contra o empirismo míope, os antepassados fazem parte das sociedades : todas as sincronias actuais permanecem incompreensíveis se não se os têm em conta.
[1] Que deram as suas provas, já que estamos cá, graças aos usos deles.
46. Aqui chegados, é tempo de fazer intervir um outro tipo de retiro, já indicado no § 28. A reprodução sexual faz-se duma forma espantosa, por miniaturização e lentíssimo crescimento. Nos mamíferos, em vez de ovos postos no exterior, este processo foi internalizado na anatomia das fêmeas, o útero dela primeiro, o aleitamento depois. No invisível ovo resultante do coito é colocado, é dado o programa genético da espécie ; um dos doadores vai-se logo de seguida, enquanto que a doadora do óvulo se retirará muito lentamente, para que ele possa ganhar a autonomia dum futuro adulto. Já ao cabo de três ou quatro semanas, o embrião alimenta as suas células com o seu próprio sangue, carregado no entanto pelo sangue materno. Outro passo da retirada é o parto, em que os aparelhos digestivo e respiratório do bebé entram em funções, embora com alimentação do leite materno, cujo desmame representa um novo passo de retiro da doação. Durante longos anos, dar-se-lhe-á alimento, antes que ele o saiba fazer de forma autónoma. Igualmente, já se o sugeriu, aqueles que os ensinam a fala e os saber-fazer se retiram, num processo também de miniaturização, em que se dão as palavras, os gestos, as suas regras em conta-gotas, à medida deles, o saber de adulto retido em reserva. À medida que a criança fala e usa, há retraimento dos que a ensinaram, que podem muitas vezes serem surpreendidos pela habilidade manifestada. Aqui, o dado é o saber social que torna possível a reprodução da sociedade, os doadores que retiram a doação são legião, já que até aos últimos dias se aprende.
47. Porquê chamar retiro doador (ou da doação) a este fenómeno tão corrente e banal ? É uma linguagem heideggeriana, que Derrida retomou no seu motivo do rasto (trace). Torna possível compreender aspectos das sociedades que são menos bem conhecidos. Falar de retido doador para a herança da língua da tribo, implica que aquele que está retirado (no seu rasto ou vestígio apagado) não está totalmente ausente, que ele permanece grafado no cérebro do aprendiz, apagado mas susceptível de voltar inopinadamente à memória, ou então em sonho. Ele está lá, sem estar : retirado. Ora, é esse, de forma geral, o estado dos antepassados de qualquer sociedade : ausentes, visto que mortos, mas ‘lá’, retirados, na eficácia dos usos que eles transmitiram (e alguns raros inventaram). É esta eficácia da doação retirada que manifestam dois tipos importantes de fenómenos sociais : o sagrado e a cultura. Ambos são por essência ancestrais. Os cenários dos deuses e outros seres imortais variam muito, mas têm em comum de conseguirem trazer os antepassados de novo, ainda que ausentes, repetindo mitos e rituais o mais escrupulosamente possível (‘religio’ é ‘relegere’), tal qual eles também repetiam. Que antepassados ? Todos : o sagrado é holístico, vem de todos os antepassados e diz respeito a todos os habitantes actuais. O seu papel é estruturalmente ‘conservador’, impedir as inovações que modificariam os sistemas de usos ancestrais[1], Lévi-Strauss mostrou-o dos mitos amerindianos que analisou soberbamente. Ou então, « a sociedade contra o Estado » de P. Clastres.
48. Pelo contrário, pode-se chamar cultura a maneira como este fenómeno se apresenta nas sociedades de escrita e em que a invenção técnica de novos usos é frequente. Um novo texto importante, a invenção do comboio ou do automóvel, alteram aquilo que vem dos antepassados, acrescenta a herança, incita os habitantes a escolherem entre várias possibilidades. A partir dum certo limiar de inovação, o holismo sagrado desfaz-se, muitas obras culturais são referidas nominalmente àqueles que as criaram, não se pode aceder a todas (que muitas vezes se excluem mutuamente), há que criticar, avaliar, escolher. É esta a significação da palavra grega ‘heresia’, fenómeno estrutural aonde há multiplicidade de textos. A que se opõe a ortodoxia como tentativa de guardar o holismo do sagrado. Mas acontece com a cultura algo de comum com o sagrado : quando leio Sartre, leio o que ele escreveu, durante o tempo da minha leitura coincido no significante do seu texto, digamos, com a sua escrita, com ele a escrever, leio as palavras e frases que ele escreveu, torno-me o mesmo que ele durante esse tempo, mais ou menos capaz de compreender as suas argúcias, é claro. E naquilo que aprendo dele, ainda que eventualmente crítico, ele fica lá, meu antepassado, retirado em mim. Contra o empirismo míope, os antepassados fazem parte das sociedades : todas as sincronias actuais permanecem incompreensíveis se não se os têm em conta.
[1] Que deram as suas provas, já que estamos cá, graças aos usos deles.
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