terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O jogo : regras e aleatório

O jogo : regras e aleatório

19. « O jogo das ciências », título do ensaio que é aqui manifestado, junta ‘jogo’ e ‘ciências’ duma maneira que pode surpreender. A questão que um tal título põe é a do estatuto das regras que os cientistas descobrem nos fenómenos que estudam. Regras, leis, teses, teorias, todo este pesado calão científico se opõe à frivolidade infantil que a palavra ‘jogo’ evoca imediatamente. O que é um jogo ? De futebol, por exemplo, que o velho Heidegger apreciava. Por um lado, cada desafio é um acontecimento, já que o aleatório lhe é essencial, mas tem regras pré-estabelecidas, estabelecidas de maneira a tornar possíveis desafios apaixonantes entre duas equipas do mesmo nível, permitindo campeonatos, jogadores profissionais, treinadores (com um outro tipo de regras, as das estratégias), jornais e por aí fora. Toda esta gente anda em volta dos desafios, dass suas regras concebidas em vista do aleatório das competições. Por exemplo, que um dos jogadores tenha direito a jogar com as mãos na área da baliza impede que haja golos a mais (como há no basquet), assim como a regra do fora de jogo, enquanto que os penalties, pelo contrário, impedem que haja poucos de mais, etc. Estas regras não se encontram tais quais nos outros desportos de bola, são imanentes ao próprio jogo. É claro que o futebol supõe leis físico-químicas, biológicas, sociológicas, psicológicas, mas tal como os outros desportos, o que significa que nenhum deles é determinado por essas leis : o jogo é imotivado em relação a elas. Nem o físico nem o biólogo nem o antropólogo podem deduzir as regras do jogo a partir das leis das suas ciências[1], ele não tem outra razão a não ser a que lhe é imanente. Que o conjunto seja imotivado, basta comparar com outros jogos, com bola (basquet, ténis) ou não (atletismo, corridas de automóveis, de cartas (bridge) ou xadrez, que têm todos as mesmas características : espaços-tempos concebidos segundo regras tornando possíveis desafios essencialmente aleatórios, podendo portanto apaixonar quer os jogadores quer os espectadores eventuais. Todos diferentes entre eles, os desportos são organizados estavelmente na sua duração. A unidade indissociável das regras e do aleatório, do acaso e da necessidade, eis a essência do jogo, segundo Derrida. Ora, o que a palavra ‘futebol’ designa não é uma coisa, não é nada, não são os desafios nem os jogadores que ele ‘dá’ dissimulando essa doação : o futebol é um Ereignis, este releva do jogo.
20. O exemplo não é digno das ciências ? Então tomemos um outro que releva delas muito claramente, o dum automóvel. Questão simplista : um automóvel é determinista, como acabamos de ver que os jogos não são ? Por um lado, dir-se-ia que sim, já que ele é regrado em grande minúcia, teórica e experimental, segundo as leis de várias regiões da física (mecânica, aerodinâmica, electricidade, termodinâmica, etc.) e da química (carburante, óleos, cauchu, etc.). Mas por outro lado, a finalidade dessas regras diz respeito à produção dum trabalho que é essencialmente aleatório. Com efeito, um carro só serve na condição de ser comandado pelas exigências do tráfego, da circulação nas estradas : andar mais depressa ou mais devagar, travar ou recuar, virar à direita ou à esquerda, etc., em cada instante podendo apresentar-se uma situação pedindo a alteração da condução seguida até esse momento. Reencontramos, como no jogo, as regras e o aleatório, este sendo tanto o do destino do condutor como o dos outros carros que circulam perto.
21. Ora, esta lei do tráfego, essencialmente aleatória e dizendo respeito a uma grande quantidade de carros, comanda a construção do carro em todos os seus detalhes mecânicos, até aos que só dizem respeito ao conforto. Excepto num ponto : a explosão da gasolina que dá o movimento, obedece por seu turno a uma lei da termodinâmica dos gases que é totalmente incompatível com a lei do tráfego : não seria possível andar-se a passear nas ruas provocando explosões de gasolina. Após a máquina a vapor de J. Watt, o automóvel é a invenção fabulosa da maneira de tornar indissociáveis duas leis inconciliáveis, a da termodinâmica com a do tráfego : é preciso que o motor seja retirado (motivo heideggeriano em oblíquo), fechado hermeticamente, blindado, fortemente repetitivo, já que ele não faz senão rodar um eixo, enquanto que o resto do carro, digamos o seu aparelho, é pensado em vista das manobras de circulação e adequação ao tráfego de que se falou. Este exemplo ilustra o motivo derridiano da différance entre duas forças antagonistas, do ‘double bind’ indissociável entre duas leis inconciliáveis. Eis um dos principais critérios de descrição fenomenológica dos domínios das diversas ciências.


[1] Se é isso o sonho do fisicalismo, mais vale dizer que é uma estupidez.

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