terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

As duas modernidades

As duas modernidades e as suas violências : conquista e revolução

49. Se o gesto moderno é a invenção de novas técnicas e a proliferação da escrita, há que dizer que, no Ocidente, houve duas modernidades, a dos Antigos, que teve o seu cume no helenismo e no império romano em redor do mar Mediterrâneo, e a nossa, que, saída da chamada Idade Média, chegou à Europa industrializada e científica e à civilização mundial actual, sob égide americana.
50. A grande invenção, sem dúvida extremamente lenta, que separa as sociedades chamadas sem história das que a fazem, foi a da agricultura e da criação de herbívoros, ao mesmo tempo saída dos humanos da lei da selva e a domesticação desta, das suas energias vegetais e animais, em favor deles. Este recurso energético biológico, incluindo os próprios músculos dos humanos, será praticamente a única até à invenção das máquinas[1]. Este ofício agrícola, que será o da grande maioria das populações, criou excedentes que libertaram uma parte das gentes para três outros tipos de ofícios. Os dos artesãos com progressiva especialização do trabalho e consequentes formas de troca, em regiões autárcicas feitas de cidades envoltas de campo. Os dos guerreiros que terão o cargo de defenderem essas regiões dos ataques de guerreiros vizinhos invejosos e das também tentativas de os vencerem e conquistarem, numa lógica de guerra de conquista que tornará possível a formação de reinos mais ou menos vastos, e até de impérios mais ou menos duráveis. Esta lógica da conquista durará também até à industrialização, Napoleão sendo a última grande figura de general conquistador[2].
51. Estes três tipos de novos ofícios modificaram as unidades locais de habitação em função dos novos dados ecológicos, conduzindo a fazer coincidir as condições da actividade económica com a maneira de regular as alianças de parentesco e as trocas de mulheres : casa é o nome das novas unidades sociais em que economia e família, hereditariedade e herança, fazem um, pelo menos como núcleo (se se pensa nos escravos e nos criados das grandes casas de nobres guerreiros). Pelo contrário, o quarto tipo de ofício, o da escrita, mais lento sem dúvida a de desligar dos palácios reais e dos seus templos, deu origem na Grécia a um novo tipo de unidade social, a escola, desligado das funções de parentesco, que instituiu uma outra maneira de transmissão entre gerações do que a das casas, já não entre pai e filho, mas entre mestre e discípulo (instituição). Já não é a herança que é o critério, mas a ‘vocação’ testada na aptidão à leitura e à escrita[3].
52. Se as sociedades chamadas primitivas foram, na maioria e segundo P. Clastres, sociedades que faziam habitualmente a guerra entre elas, parece óbvio que o facto das sociedades agrícolas e de ofícios de cidade terem em todo o lado guerreiros de ofício como classe nobre mostra como elas foram essencialmente sociedades guerreiras, que se libertaram da lei da selva para se submeterem à lei da guerra[4], sob a forma de conquista para impor vassalagem e tributação, condição dos reinos (através da garantia de defesa contra os guerreiros de fora, a guerra sendo, juntamente com a fome e a peste que muitas vezes traziam com ela, o flagelo dos camponeses). A escravatura é sem dúvida uma grande evidência da dominação desta lei : o enigma da implosão do império romano e da consequente ‘ruralização’ dos séculos que se seguiram explica-se com facilidade pelo facto de que a economia imperial era suportada pelos escravos (laço das grandes casas latifundiárias) e que a unidade do império (laço social global) dependia dos exércitos vigiando as fronteiras, que portanto o double bind era de infra-estrutura guerreira : esta cedeu porque contraditada pela ‘pax romana’ que o império tinha imposto – eram os guerreiros que suspendiam a lei da guerra – e que o justificava enquanto império.
53. Venhamos à nossa modernidade. Ela também teve origem nas sociedades guerreiras de casas agrícolas e algumas cidades de ofícios especializados, mas com uma grande diferença em relação à primeira modernidade : ela herdou quer uma religião (holística, sem dúvida, mas referindo-se a um livro, o que fomentou incessantemente ‘heresias’ no seu seio), quer uma cultura literária e filosófica com que poude, muito cedo, criar escolas[5]. A Bíblia e a filosofia no seu berço, eis uma primeira grande diferença em relação à Grécia, a outra tendo sido o lento desenvolvimento de burguesias que, em certas regiões livres de potentados reais (na Itália e nas costas setentrionais), puderam desenvolver um cruzamento entre invenção técnica e capital mercantil[6] : com a invenção da imprensa e o consequente desenvolvimento de escolas além dos clérigos e dos filhos dos nobres, é aonde estaria o segredo do chamado ‘milagre europeu’[7]. Foram assim as heranças de antepassados gregos, judeus e romanos, jogando de forma crítica umas contras as outras e misturando-se, que tornou possível a modernidade europeia, cuja invenção decisiva – se houve alguma que fez a viragem – foi a pela qual este texto começou, a do double bind da máquina por Watt.
54. Esta representa uma nova forma de domesticação da energia : já não biológica mas a do calor – mais tarde eléctrica, da explosão dos gases e dos núcleos dos átomos – que a máquina transforma em energia mecânica ou térmica, luminosa, etc., ligando de maneira indissociável e inconciliável duas leis, uma física, outra social, dizendo respeito a usos, a trabalho. E isto com altíssimos rendimentos, em comparação com a energia biológica, portanto com a promessa de muito maior abundância e riqueza a jusante, mas pedindo a montante capitais disponíveis. É por isso que a máquina é indissociável do capital, quaisquer que sejam os regimes políticos, os quais ela obrigará a transformar por revolução (no sentido de ‘industrial’). Esta manifesta-se na quebra das casas de antanho e na criação dum (quase) novo tipo de unidade social a que chamo instituição : onde não se entra por nascimento ou casamento. Como nas casas de outrora, mas por contrato com aquele que tem a propriedade jurídica das máquinas e por um número limitado de horas por dia. Isto supõe portanto outras unidades locais, as famílias, invenção moderna especializada no que diz respeito à ordem do parentesco e à habitação fora das horas de trabalho, mas também dois outros grandes tipos de instituições que asseguram os laços entre instituições e famílias. Por um lado, a escola generalizada que concede os saberes necessários aos empregos e faz portanto a ponte entre as famílias (onde nascem as pessoas) e as instituições (onde elas vão trabalhar) e, por outro lado, o mercado[8] que assegura, por um lado as trocas de mercadorias entre instituições especializadas, por outro, entre instituições e famílias, os salários dando a estas o orçamento que tornará possível aos mamíferos humanos alimentarem-se e em geral, habitarem, aproveitando da nova abundância criada pela máquina.
55. Os guerreiros nobres de antanho foram substituídos pelos engenheiros e pelos capitais, a violência da conquista pela da revolução, com uma lógica totalmente diferente. Primeiro, trata-se, com a máquina, de substituir um uso ancestral (de transporte, de fabrico) por outro totalmente diferente, que vem de fora (de novos antepassados, em geral estrangeiros, por vezes ainda não mortos[9]) e pede um saber-fazer completamente diferente, que portanto há que aprender, se ainda se tem idade para isso[10]. Em seguida, ela joga com as promessas de abundância (o progresso material, dado em espectáculo, sob forma de luxo, pelos médias[11]) e com as necessidades de salários para habitar. Quer dizer que, de jure, a violência já não se exerce, como dantes, pela lei visível do Outro, a heteronomia do pai e patrão ou do rei e senhor pela força muscular ou das armas, mas sobre as autonomias que devem ser atraídas e submetidas a heteronomias mais ou menos apagadas : ‘é pelo meu interesse que eu devo trabalhar’. Isto não diz respeito apenas aos operários ou aos assalariados, mas qualquer miúdo ou miúda depressa percebe que a escola recompensará mais tarde os seus esforços para estudar, que os seus talentos serão susceptíveis de rentabilidade, esta se tornando a norma, a produtividade (medida em números pelo capital).
56. As revoluções políticas são os efeitos, com toda a espécie de diferenças temporais, desta lógica : a sua violência política, os seus partidos únicos, leninistas ou nacionalistas, nos países importadores de modernidade (de técnicas e de ideias), relevam desta violência. As revoluções de libertação colonial dos anos 50 e 60, tão simpáticas, revelaram em seguida, hélas !, não serem senão a transição da lógica colonial de conquista pela lógica neo-colonial da revolução industrial[12].


[1] O que justifica a preponderância da filosofia aristotélica da phusis nas escoals europeias até ao século 18.
[2] As duas grandes guerras mundiais do século 20, desencadeadas pelos exércitos alemães, terão sido nesse sentido anacrónicas (por falta de anticipação do neo-colonialismo ?), o último sobressalto (da mais poderosa nação) da Europa, na véspera da subida dos engenheiros e dos Estados Unidos.
[3] Houve dois momentos históricos excepcionais em que a escrita alfabética teve efeitos notáveis sobre os laços sociais de tipo global,através da proliferação de textos e das discussões que eles geraram, a suscitação nomeadamente dum cepticismo novo : a multiplicação de manuscritos na segunda metade do século 5º A.C. e os conflitos a respeito do ensino dos jovens (de que a condenação de Sócrates dá testemunho) ; a divulgação dos livros impressos no século 16, em que os testemunhas são a ruptura estrondosa da religião da civilização que encaminhou as nações protestantes para a modernidade e a sinistra inquisição nos países latinos não libertados.
[4] O canibalismo, onde existiu, foi talvez o efeito do cruzamento destas duas leis.
[5] O filósofo espanhol O. Market disse que a universidade foi a mais bela invenção da Europa. Se se pensa que a Europa só saíu da Cristandade medieval com o Renascimento, o Protestantismo e a descoberta pelos Portugueses dos caminhos dos oceanos, haveria que inverter a afirmação e dizer que foi a Europa a mais bela invenção da Universidade (e das burguesias.
[6] Que nunca se poude impor nas sociedades antigas com dominação imperial do comércio, em que o trabalho das mãos e do comércio foi sempre considerado ‘servil’ (de escravos ou metecas) e ‘indigno’ (de mecernários). Impossível também a futura experiência científica.
[7] Na ‘solução’ pelo historiador E. Jones haveria portanto, além dos critários económicos , que tere em conta tanto a escola, os livros e a filosofia como a burguesias, cujo maior elogio paaradoxalmente é o do 1º capítulo do Manifesto do Partido Comunista de 1848.
[8] O mercado é uma sub cena social que, como a política e a escola com os médias, atravessa todas as outras cenas (alimentação, saúde, transportes, construção, famílias) ; ela é succeptível também de análise em double bind, a partir da teoria da moedad e da mercadoria do 1º livro de O Capital (Goux, 1969), assim como a instância política a partir de Hegel.
[9] Da mesma maneira que aleitura do livro dum mais jovem que eu e que me modifica faz enrtar os eu autor no panteão dos meus antepassados.
[10] Os velhos perdem o estatuto privilegiado de anciãos, dos que têm o saber maior ; este, renovando-se depressa, pertence muitas vezes a mais jovens. ieux perdent leur statut privilégié d’anciens, de ceux qui ont le plus grand savoir : celui-ci, se renouvelant vite, est souvent le fait des plus jeunes.
[11] Sic : é a forma correcta em português, vinda do latim e não do inglês ‘media’ (que os ignorantes dizem, e os brasileiros escrevem ‘mídia’).
[12] O conceito de colónia vem desde os tempos dos Fenícios e dos Gregos : estrangeiros mais civilizados chegam e criam, usando a força contra os indígensas sensdo necessário, unidades socaiis análogas às dos seus países, segundo os seus usos e em exclusivo proveito deles e das suas metrópoles. Nas Américas,em África e na Ásia (excepto o Japão e a China), o colonialismo que seguiu a descoberta dos itinerários marítimos foi uma conquista semelhante. Hoje, uma exploração mineira de petróleo ou outra, com técnicas ocidentais e os indígenas empregados nos trabalhos que não exigem saber, com a cumplicidade das autoridades que beneficiam disso, é o mesmo modelo, a violência revolucionária que exclui os indígenas devido à suaignorância tendo substituído a da conquista.

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