terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

As cenas científicas

As cenas científicas com double bind : da indeterminação ao enigma

79. Cada (sub) cena tem a sua população de assemblagens, cada uma destas sendo composta de unidades duplamente ligadas, em dependência de duas leis inconciliáveis que fazem todavia do conjunto uma unidade indissociável. Trata-se agora de seguir as (sub) cenas dos principais domínios (à semelhança parcial dum automóvel) – respectivamente dos graves / dos mamíferos / da fala / da habitação social (limitada, neste texto curto, às sociedades chamadas primitivas – descrevendo de forma simplificada, telegráfica, esta composição em duplo laço ou bind que é a garantia da constituição e da autonomia relativa de circulação de cada assemblagem, numa cena cuja lei geral de circulação é inconciliável com essa autonomia, sendo no entanto a ‘mesma’, a heteronomia dada, indissociável pois.
80. Eis o desenho. Qualquer (sub) cena supõe
a) que uma pletora caótica de elementos (explosão de gasolina) – respectivamente protões, neutrões e electrões / moléculas de carbono / gritos / gestos de anarquia incestuosa
b) sofra os efeitos de forças inibidoras respeitantes a alguns desses elementos que permanecem em retiro estrito (o cilindro do motor) – respectivamente as forças nucleares dos átomos / inibição do ADN no núcleo das células e disciplinação das pulsões hormonais / sistema fonológico / um interdito sexual implicado pelo paradigma dos usos -, em relação com a energia motora da autonomia da assemblagem ;
c) supõe em seguida que as outras unidades da assemblagem sejam dispostas de maneira a poderem responder à lei da cena (lei do tráfego) – respectivamente lei da gravidade / da selva (nutrição e mobilidade) / da verdade / da guerra -
d) por um sistema em retiro regulador (embraiagem e caixa de velocidades) – respectivamente campo gravítico / homeostasia do sangue e memória cerebral / língua e senso comum / paradigma da unidade social – susceptível de oscilações entre pequenas repetições e acontecimentos diante de outras assemblagens da cena,
e) os quais acontecimentos reproduzem a assemblagem[1], com retiro da doação, quer do conjunto duplamente ligado que constitui a assemblagem, quer de elementos que as alimentam e alteram, o qual retiro - o rasto dos doadores – torna possível a autonomia da assemblagem na cena. Segue-se (até ao § 85) uma rápida comparação das quatro (sub) cenas científicas.
81. Os átomos dos graves são ligados por um lado às forças nucleares e por outro às da gravidade. As primeiras tornam cada átomo impenetrável a qualquer outro átomo[2], elas são o fundamento da alteridade irredutível das coisas deste mundo ; é a verdade de todos os empirismos : nada é idêntico a nada. Foi o rasto vivo (Derrida) que ultrapassou esta irredutibilidade, criando patamares inéditos de mesmidade : das espécies biológicas / das línguas / dos usos e costumes. O que marca uma diferença importante entre estas cenas de vivos e a da Física-Química : pode-se falar, ao nível desta aonde não há rasto, de retiro doador e de autonomia com heteronomia apagada ? Apenas num certo sentido. A autonomia consiste na inércia dos graves, garantida pelas forças nucleares (retiro estrito) : resistência por um lado à desagregação (salvo pressão e temperatura muito altas), oferta por outro lado às forças de gravidade e às transformações químicas (forças electromagnéticas intra e extra-moleculares : retiro regulador quântico dos electrões de valência). A estabilidade muito improvável do sistema do sol e dos seus planetas, que os faz escapar à expansão do universo, dá-nos um bom exemplo (que não é qualquer, é fundador da física) : o retiro doador seria o do próprio campo das forças de gravidade de cada um dos astros, que só existe devido aos (outros) astros que o compõem e sem o qual eles derivariam para os espaços segundo a sua inércia (autónoma). O que significa que cada astro é dado[3] pelos outros astros, no sistema deles, cada um é duplamente ligado : pela sua força de gravidade que reúne todos os seus componentes (é isso ‘um’ astro) e pela do sistema (o conjunto de todos) que o liga, o retém, o prende na estabilidade da sua órbita elíptica.
82. Saltemos para a cena da Biologia dos mamíferos, por cima da dos unicelulares e das principais etapas da evolução. Trata-se, como se viu, dum duplo sistema, nutricional e neuronal, visando a reprodução do indivíduo, e dum terceiro, o sexual, suplementar, visando a reprodução da espécie. Os doubles binds multiplicam-se : 1) primeiro o de cada célula com a sua dupla membrana[4], que precisou de três biliões de anos de evolução, contra 600 milhões para a de todos os organismos ; 2) em seguida, fundamental, o laço de cada célula nela mesma e o laço ao sistema de circulação do sangue que a alimenta ; 3) o deste sistema nutricional, com as suas hormonas assegurando a homeostasia, e os grafos neuronais da mobilidade, 4) por sua vez desdobrado, nas espécies mais complexas entre dois cortex, o ‘paleo’ e o ‘neo’. Se pensarmos que qualquer mamífero é, em teoria, ameaçado duma espécie de caos interno (os laços desligando-se, todos os tecidos tornando-se cancros), percebe-se que será necessário, além da inibição celular do ADN no seu núcleo (reserva da produção de proteínas), um suplemento de inibição visando os genes especializados das células dos outros tecidos (que são cobertos) e os do desenvolvimento embrionário que asseguram a boa dimensão dos órgãos. Isto é, um suplemento de inibição que guarda as células em retiro estrito especializado para a reprodução sã do conjunto. No que respeita ao double bind do nutricional e do neuronal, a questão que se põe é a da relação entre as hormonas, por exemplo as da fome, e os grafos da aprendizagem : basta pensar na situação dum gato louco de fome diante dum predador que ele quereria comer, se pudesse, para compreender que ele tem que reter retiradas as suas hormonas da fome durante o tempo da sua fuga e de encontrar segurança e à vontade para voltar à caça ; quer dizer que os grafos do neo cortex, pulsionados pelas hormonas, aprendem a discipliná-los para a eficácia das estratégias da espécie, ficam em retiro regulador (memória) diante da situação ecológica (lei da selva), enquanto que elas estão em retiro estrito, podendo ir até à loucura se não houver saída para as suas pulsões nutricionais (ou sexuais). A sexualidade, por seu lado, está do lado do retiro doador dos progenitores, em quem ela tem um papel que pode fazer-se à custa da sua auto reprodução (é por isso que é necessário que a cópula seja gratificante) : nomeadamente a fêmea deve dar por sua vez, numa espécie de ética biológica, deve tornar-se doadora do que lhe foi dado outrora e retirar-se, segundo os ritmos da gravidez e do aleitamento, não deixando senão o seu rasto, o programa genético da espécie com as suas marcas singularizantes e a aprendizagem das crias.
83. Na cena das Linguísticas[5], basta agora sublinhar que o sistema fonológico em retiro estrito para a formação das palavras é o que torna as línguas estrangeiras umas às outras, as sintaxes-semânticas da língua (retiro regulador) mais ou menos próximas tornando possível traduzir[6], tanto quanto as fonologias e as singularidades dos usos, e portanto dos códigos textuais, o permitem. Na cena da verdade que qualquer língua instaura, é esta e o senso comum cultural que, em retiro regulador[7], asseguram o entendimento corrente entre os falantes. A contribuição de Flahault (§ 63) permite compreender o que está em questão : a verdade do que é dito, desde o processo da aprendizagem (que no sentido do ‘saber’, nunca está terminado), nunca está garantida àquele que escuta, sem que muitas vezes ele tenha maneira de ter garantia, como atesta a panóplia dos verbos a respeito da dúvida e da certeza. É por essa razão que é a verdade que está em jogo nesta (sub) cena instaurada pela linguagem : tanto diz respeito ao entendimento com os outros como à relação ao que é dito ; mas a autonomia da palavra de cada um torna possível o erro, a mentira, a ficção, o que sublinha como esta autonomia, indissociável da lei do senso comum, é inconciliável com ela. Dá-se por isso quando há proposta de novidades e choque com as ortodoxias. Ou quando a autonomia se exaspera e se torna delírio de louco. A poesia é o discurso que joga a fundo com este double bind, da maneira enigmática que fez os românticos falar de ‘inspiração’, joga sobre a dupla articulação da linguagem, sobre a lei do significante (jogo sonoro entre as palavras, ritmo) e sobre a do sentido das frases. A lógica, no extremo oposto, desconfiou tanto dela, da polissemia, das chamadas ambiguidades das línguas, que acabou por inventar uma escrita de tipo matemático com uma única articulação : exacta, pois, mas fora das línguas. Por outro lado, está-se ligado, pela língua comum, a todos os outros (salvo emigração, bem entendido). Também aqui a importância crucial da aprendizagem e portanto do papel social dos ‘mestres’ (em retiro doador) implica uma ética elementar de dar aos jovens (e em geral a quem ignora e pergunta) o que se recebeu de outrem.
84. Façamos uma pausa para sublinhar de novo a impossibilidade de estender às cenas terrestres o determinismo que os cientistas herdaram dos filósofos e dos teólogos. O que foi sugerido da inércia como uma espécie de grau zero da autonomia, mostra que os graves, enquanto abandonados à cena da gravidade e das transformações químicas, são indeterminados quanto àquilo que lhes pode suceder. Devido aos aleatórios da cena (mesmo as rochas face à erosão, para não falar das tempestades, dos terramotos). De forma geral, eles não são susceptíveis de previsão científica, que é apenas laboratorial. Os graus de autonomia dos vivos – mecanismos regrados para o aleatório das cenas – na escala das espécies aumenta esta indeterminação, a complexidade dos respectivos cérebros parecendo ser um bom índice de medida : o neo cortex das aves e dos mamíferos coloca-os no alto da escala das performances etológicas. Sem dúvida que há um salto forte quando se passa aos humanos com a invenção da fala, dos usos técnicos e dos usos religiosos dando um papel de relevo aos antepassados mortos. A indeterminação torna-se mais forte, as tradições tendo reservado o termo liberdade para a dizer. Essas tradições « opuseram » assim os humanos e os animais : é aonde reside o dualismo que já recusámos atrás. A questão não consiste em voltar atrás e em negar a liberdade humana, mas em não « opor » todos os humanos e todos os animais. Sejam exemplos simples. Um humano está muito mais próximo dum leão ou duma andorinha do que estes estão duma formiga, o que estes animais têm a mais do que a formiga é condição necessária (embora não suficiente) dos humanos. Ou então, à maneira de Deleuze : do lado dos afectos, um cavalo de guerra está mais próximo dum touro do que dum cavalo de carroça que, por sua vez, está mais próximo dum burro que puxa a nora. Não há que comparar apenas ‘essências’, além das espécies zoológicas as diferenças entre vivos são imensas. O que também vale das diferentes complexidades das sociedades humanas. O que no Ocidente chamamos ‘liberdade’, que reclamamos desde o Iluminismo, era inacessível aos indígenas das sociedades tribais, que tinham uma outra, comunitária, ou aos da (Modernidade chamada) Antiguidade. Da mesma maneira, a escola moderna cria muitas diferenças culturais que tornam bem mais livres do que outros (sem ter que ver com a riqueza em dinheiro) aqueles que acabaram os seus estudos. Na escala da evolução biológica e histórica, há inegavelmente crescimento da indeterminação e da liberdade. Todavia, a diferença que a fala e os usos e costumes introduziram como liberdade, permite que se possa falar desta em termos de enigma, na medida em que a convergência das diversas indeterminações, dos diferentes doubles binds, os dos mamíferos, da linguagem e dos outros usos e costumes, a multiplica muito, torna muito enigmático qualquer outro que esteja diante de mim, quaisquer que sejam as nossas diferenças culturais. Ele é estruturalmente inédito, o seu rosto[8] releva do enigma que ele é ontologicamente, rasto de muitas doações, a sua voz tem que ser sempre escutada, posso sempre aprender com ele, já que ele sabe sempre coisas demais que eu não sei. Por exemplo, qualquer indígena africano pode-se desenrascar em lugares sem electricidade infinitamente melhor do que eu. As catástrofes ecológicas que parecem anunciar-se serão muito mais prejudiciais aos civilizados electro-dependentes do que aos outros. Esteve outrora em jogo algo de semelhante entre Romanos e Bárbaros, os nossos antepassados europeus. Se a história se repetir desta vez (não será para amanhã), seria à custa dos descendentes dos ‘vencedores’ de então (e herdeiros dos ‘vencidos’).
85. Seja enfim a (sub) cena da Antropologia. O seu caos é a multidão, como se vê, hélas ! sempre que há turbas de refugiados, escapados de zonas de guerra, ou então nos subúrbios-cancros de algumas metrópoles do chamado Terceiro Mundo. Para evitar esse caos, as sociedades organizam-se em unidades locais privadas, em retiro estrito da multidão, quer acolhendo os que nelas nascem ou se casam, quer, nas instituições modernas, atraindo os seus agentes pelos seus paradigmas e salários : em todos os casos, são os paradigmas (em retiro regulador) que regulam os usos de forma a assegurar a alimentação de cada um pelos usos herdados. Estas unidades sociais são ligadas entre elas por laços globais, que o sistema de parentesco e a respectiva troca de mulheres garante, através de regras políticas e religiosas (também em retiro regulador, ligando-se aos paradigmas locais : ausentes habitualmente, têm efeitos quando tem que ser) herdadas dos antepassados (em retido doador). O jogo mútuo das ‘envies’ que opõem entre si as diferentes unidades locais e a solidariedade em caso de guerra ou outro relevam de duas leis inconciliáveis e indissociáveis, do double bind que é uma sociedade. Assim como ela integra os doubles binds das (sub) cenas biológica e da fala, serão criados outros duplos laços à medida da maior complexidade histórica, nomeadamente o regime monárquico, e depois republicano da instância política, personalizada na casa dum guerreiro ou em colectivos democráticos (ou não), o mercado e a moeda, a escola, a igreja, a máquina, as instituições modernas e as famílias ‘apartadas’, os médias, tratando-se em todos os casos de estruturas ou mecanismos em double bind.
86. Uma palavra para retomar as duas alusões à questão ética (§§ 80 e 81). O retiro doador é parte estrutural quer das espécies biológicas quer das sociedades humanas : que haja que se deixar desapropriar das regras permanentes da auto-reprodução para dar autonomia a outros, apagando-se, assim como se a recebeu dos seus antepassados. Esta autonomia contempla antes de mais a nutrição como imperativo social-biológico : nenhuma sociedade pode abandonar à fome nenhum dos seus, trata-se dum imperativo social prévio a qualquer ordenação jurídica. Em seguida, as sociedades heterárcicas, que excluíram qualquer possibilidade de sobrevivência autárcica, devem, pelo mesmo tipo de imperativos, agora de ordem social elementar, também prévios ao jurídico, dar a cada um capacidades de uso adequadas, através de escolaridade, e integração numa instituição (emprego), ou um salário de desemprego em caso de crise. Esta ética estrutural, ontológica, pode também reclamar-se dos profetas da bíblia hebraica e dos apóstolos da bíblia cristã : a lição de ética deles (« que não haja pobres no meio de ti », « ama o teu vizinho, o teu próximo, como a ti mesmo ») releva justamente do imperativo de dar do que, nosso, foi também dom (aqui ancestral, neles divino). E apagar-se, retirar-se, para que a autonomia seja[9]. Enfim, além de que « as ‘envies’ não se devem cumprir senão segundo os usos » (§ 42), há uma ética elementar dos ofícios em sociedade heterárcica : já que nós recebemos de outrem a quase totalidade das coisas de que temos necessidade para a nossa habitação e temos que ter uma enorme confiança (Fidalgo) nesses anónimos que ‘trocam’ essas coisas com as nossas, também temos que fazer da melhor maneira que soubermos e pudermos o que fazemos e que irá para outros anónimos.


[1] Sem analogia na máquina.
[2] Nas condições de temperatura do nosso universo terrestre, o que se poderia chamar a ‘homeostasia’ do sistema planetário.
[3] Heteronomia doadora apagada : que surpreendeu tanto Newton ! Há sempre coisas para nos espantar, se formos capazes de ultrapassar os nossos hábitos escolares. Primeiro o sistema planetário, em seguida todo o terrestre está cheio de aleatório. Assustador para a boa lógica clássica, para o velho determinismo cientista.
[4] O contributo de Marcello Barbieri permite ultrapassar o ‘dogma’ (Crick) do determinismo pelo ADN : com efeito não se pode comprrender a célula a partir do ADN e da sua determinação, mas, ao contrário, o ADN só é compreensível como uma parte da célula.
[5] A gramática gerativa não parece ser susceptível deste tipo de análise.
[6] Excepto para o chinês e para as suaas palavras monosilábicas, parece. Em todos os outros casos, é no fundo a gramática de raiz aristotélica que foi adaptada às traduções e à elaboração das gramáticas de cada língua desconhecida.
[7] A língua nunca está inteiramente numa fala, num texto. O que os linguistas chamam paradigma, joga-se ‘in absentia’ (Saussure), retiradamente. Por exemplo, se eu digo uma frase com a palavra ‘pequeno’, é preciso saber que ela faz paradigma com ‘grande’, médio’, ‘dimensão’, ‘pequena’, palavras que não estão na frase mas que são essenciais para o seu sentido.
[8] Motivo que Levinas colocou em grande relevo filosófico, de maneira diferente desta ontologia inspirada em Heidegger e em Derrida.
[9] Ao contrário da « substituição » e do « refém » de Levinas, parece-me. As citações bíblicas são respectivamente do Deuteronómio 15,4, do Levítico 19,18, do evangelho de Marcos 12,31 e paralelos.

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