A difícil questão neurológica : cérebro, usos e discurso, sem o chamado ‘mental’
73. Venhamos agora à questão tão difícil da abordagem científica do cérebro, órgão tanto do corpo como do psiquismo humano ; muito difícil por se encontrar na raiz do dualismo filosófico greco-europeu entre o corpo e a alma (psychê, em grego), de que os neurólogos têm razão em desconfiar. Infelizmente sem se darem conta de que estão apanhados também por ele através da representação mental. A questão é a do estatuto do cérebro : órgão corporal sem a menor dúvida, inventado muito cedo sob formas embrionárias pela evolução biológica, mas também sem dúvida que órgão do pensamento. Ora, este segundo ‘sem dúvida’ merece ser matizado : o que nós chamamos ‘pensamento’, na medida em que não é dissociável da linguagem duplamente articulada[1], só bastante tardiamente se tornou uma função do cérebro dos antropóides que inventaram os primeiros utensílios e as primeiras palavras. Isto obriga a não nivelar as duas faces do cérebro e, por exemplo importante, a excluir imediatamente qualquer incidência dos genes dos neurónios dobre tudo o que releva do chamado psiquismo.
74. Qual é a especificidade dos neurónios entre as outras duas centenas de células especializadas dos vertebrados ? Quando se escreveu no § 31 que a eficácia dos genes e do ribotipo de Barbieri estava limitada ao metabolismo celular, deixou-se entender que as células são uma espécie de ilhotas que se agrupam em tecidos e órgãos. É verdade, mas justamente os neurónios são uma excepção : a sua especialidade é criar com as sinapses que os ligam uns aos outros uma ‘rede nervosa’ cerrada de afectação mútua, que permite ao conjunto de, através de órgãos perceptivos, ser afectado de fora e de se auto-afectar. Não de forma anárquica, é claro, mas segundo grafos (Changeux), dos quais sem dúvida muitos inatos, criados muito precocemente, enquanto que outros, pelo contrário, inscritos (grafados !) pela aprendizagem dos usos e da palavra. Estes novos usos acrescentam-se assim às funções do cérebro, articulando um velho cérebro ‘réptil’[2] ao novo cérebro das aves e mamíferos, onde justamente a melhor parte é sem dúvida reservada aos grafos da aprendizagem da maneira de habitar como humano.
75. Os especialistas do sono e do sonho mostraram como há em nós duas formas de sono, um lento de cerca de hora e meia que é interrompido, antes de retomar por outra hora e meia, por um sono agitado de uma vintena de minutos que M. Jouvet chama paradoxal. Seria nestes períodos mais breves que nós sonhamos, mas Jouvet não o pode saber pelos seus instrumentos e métodos que lhe permitiram discernir os diferentes sonos, tem que acordar os seus pacientes e perguntar-lhes : ‘você estava a sonhar ? com quê ?’. Sem parecer dar-se conta, ele assinala assim uma dicotomia entre duas abordagens do psiquismo, uma propriamente neurológica, à base de análises químicas e de instrumentos eléctricos, e outra, que há que qualificar como ‘discursiva’, que se faz pelo diálogo com o paciente (própria da psicanálise e de outras psicologias). Não é pois surpreendente que o seu livro se termine numa insatisfação quanto ao estudo neurológico dos sonhos[3]. No entanto, suponho que ele estaria de acordo para recusar a pretensão de dar conta, por meios neurológicos, das regras linguísticas das diversas línguas : todavia estas também se jogam essencialmente nos cérebros humanos. Há portanto que concluir que há um dualismo metodológico irredutível entre as duas abordagens do cérebro e do psiquismo (§ 107).
76. Mas não se trata com esta constação importante de ceder ao dualismo[4], antes pelo contrário. Peçamos auxílio aos engenheiros de dos computadores : esta irredutibilidade da abordagem instrumental do hardware e do software também se encontra entre eles. Com os seus meios de reparação do hardware, eles não podem saber que programa é que está a passar, em que linguagem, têm que perguntar ao operador, que está do lado do software. Igualmente, não se pode, com os meios eléctricos adequados (sem as membranas acústicas dos telefones), saber o que se está a dizer ao telefone pela análise da respectiva corrente eléctrica, nem assinalar os actores dum filme de televisão na corrente eléctrica que chega à antena. Nos grafos do cérebro, que são uma espécie de cabos eléctricos com corrente iónica[5], o problema é idêntico. Neles não há nem palavras, nem músicas, nem números (que os há nos ouvidos e na voz), nem imagens mentais, tal como no hardware dos computadores só há electricidade que passa (corrente de electrões, que não afecta quimicamente os fios) : as palavras e os problemas estão à entrada, nos teclados ou em cartas perfuradas, e à saída, nos écrans e nas impressoras. Não há no cérebro representações mentais, ideias, imagens que recordam alguém. É certo que é difícil de aceitar, mas é inútil procurá-los. O ‘mental’, tal como a ‘ideia’ inventada por Descartes e a ‘alma’ de Platão’, é uma ficção, o sonho de largar a materialidade, seja a do corpo como a das letras. O fenomenólogo põe assim, como tese filosófica, que estas duas palavras, ‘cérebro’ e ‘psiquismo’, nomeiam a mesma realidade ôntica e o velho conflito entre as suas duas abordagens possíveis, a da neurologia e da sua análise do ‘corpo’ e a da experiência da autoafectação e do diálogo. O ‘mental’ separa e opõe ‘sujeito’ no interior e ‘objecto’ no exterior. Mas se eu vir um objecto nunca visto antes, que portanto esteja verdadeiramente no exterior, não o percebo nem o conheço ; só conheço os que já estão inscritos em mim ; aquilo a que se chama o interior, não é senão o exterior, o ‘mundo’, grafado no meu cérebro, o que me permite ‘ser-no-mundo’, ser o Dasein de Heidegger, todo no exterior[6]. A minha interioridade – que é uma das coisas a que eu dou mais importância, os meus segredos – não é senão a minha maneira de estar retirado em relação aos outros, como sugeri (§ 63), mesmo quando penso ‘mentalmente’, como se diz, estou no ‘exterior’, ao pé daquilo em que penso (das personagens dum livro bíblico que leio, por exemplo).
77. Em suma, os neurónios foram feitos, em relação com as hormonas reguladoras da homeostasia do sangue (sistema de alimentação), para a mobilidade, o cérebro ligando os órgãos perceptivos aos músculos dos membros de locomoção. O neo-cortex das aves e dos mamíferos especializou-se nas estratégias de predação, de luta e de fuga, é isso que para eles é ‘pensar’, segundo o que aprenderam e experimentaram. A linguagem e os outros usos foram inventados socialmente para a aprendizagem : vêem-se inscrever de fora em grafos específicos do cérebro nas mesmas regiões cerebrais do pensamento mamífero. Perguntar-se-á : como compreender, nessa perspectiva, o cogito, o ‘eu penso’ ? ‘Eu’ pertence aos grafos, foi grafado com as aprendizagens, faz essencialmente parte delas, os grafos não falam nem pensam sem serem guiados por ele, digamos, e, ao mesmo tempo, este jogo auto-afecta o ‘eu’, como se diz con-sciência : ‘eu’ sei de ‘mim’, do que digo e faço quando o digo e faço, como condição de o dizer e de o fazer. O ‘eu’ é reforçado ao longo da sua vida, dos seus usos e acontecimentos. Ao contrário de tudo o que aprendemos no Ocidente, de toda a nossa filosofia e literatura, é por isso é que é tão difícil. Eu não é um outro, é um vestígio, um rasto de muitos outros. Não há maior enigma.
78. É esta concepção - filosofia com ciências – que deveria, creio, ser fecunda em neurologia. Como fazer ? Não é o fenomenólgoo que tem que o saber, mas uma das coisas seria pedir ajuda aos linguistas, por exemplo, como fazem os engenheiros de software, mas de preferência aos do laboratório de M. Gross (§ 65), infelizmente precocemente desaparecido. Disse que a área de Broca, que os neurólogos descobriram, parece ser aquela em que se fazem as associações sintácticas automáticas para falar ou pensar (§§ 27 e 65), também a de Wernicke parece ser aquela onde se ‘escolhem’ as palavras. Seja uma última vez o exemplo do software : Como é que se faz para que o computador seja capaz de ‘jogar’ ao xadrez ? Não se podem ensinar-lhe raciocínios, mas as regras do jogo, tanto aquelas que definem os deslocamentos das diversas peças como as das estratégias dos campeões. Isto é, ensina-se-lhe uma ‘linguagem’. É provavelmente o que há que procurar nos grafos : como é que as nossas línguas são grafadas[7].
[1] É hoje facilmente admitido pelos neurologistas e por numerosos filósofos, sem que muitas vezes se compreenda que em consequência se tem que mandar embora a representação mental.
[2] É a nossa glândula endócrina mais importante, segregando nomeadamente as hormonas que velam pelo equilíbro homeostático do sangue.
[3] Uma vez que, por razões de brevidade, não me ocupo aqui da psicanálise, que faz parte no entanto dos cinco domínios no texto de referência (o capítulo a ela dedicado procura esclarecer o seu especial estatuto científico), assinalo em todo o caso como é notável a diferença entre duas ou três coisinhas que ele recolhe de 2500 sonhos e a interpretação dos sonhos do livro admirável de Freud de 1900. A propósito deste, pode-se legitimamente falar em ‘ciência dos sonhos’ ou, mais rigorosamente, duma semiótica experimental do discurso neurótico na sua relação à energia sexual dos humanos. Esta semiótica exerce-se sobre o discurso do paciente quando este se entrega às suas associações livres, por vezes próximas do delírio, em volta do ‘ego’. São as resistências que esse ‘ego’ manifesta a dizer, gaguejando, auto-censurando-se, denegando, rindo ou chorando, em suma surpreendendo-se a si mesmo, que permite ao analista dar por um ‘super-ego’ relevando da lei social e que se opõe ao pulsional sexual (confissão de relações ‘imorais’ ao pai e à mãe, na interpretação dos sonhos, por exemplo) a que Freud chamou ‘id’. Ciência sui generis, que atravessa (e revela-os articulados entre si) a linguagem, o social no seu interdito do incesto e a sexualidade (biologia), isto é, os três principais domínios das ciências respeitantes aos humanos.
[4] Digamos em todo o caso que esta irreductibilidade presta honra a Platão e a Descartes, de quem este texto está bastante afastado.
[5] Portanto susceptível de mudança química nas sinapses e de as grafar.
[6] Isto foi proposto em 1927 : paarece-me que ainda não passou nos costumes, mesmo dos filósofos, mesmo de muitos especialistas de Heidegger, porque não é nada fácil de pensar. Talvez que não tenha havido nunca distância tão grande entre uma ‘verdade de pensamento’ e a nossa experiência comum, excepto talvez a do heliocentrismo, o inverso do que os nossos olhos vêem.
[7] A comparação entre cérebro e computador nos engenheiros de I. A. ganharia em ter em conta as duas diferentes maneiras dos computadores jogarem com os números (susceptíveis de linguagem binária, correspondendo à passagem ou não de corrente : pode-se calcular com ela) e com as palavras (cuja polissemia - (§§ 61-62) - não é discernível directamente, apenas pelo jogo de diferenças com as outras palavras) : não se pode senão transpor letras e sequências de letras, qualquer operação de pensamento tem que ser inscrita pelos linguistas.
73. Venhamos agora à questão tão difícil da abordagem científica do cérebro, órgão tanto do corpo como do psiquismo humano ; muito difícil por se encontrar na raiz do dualismo filosófico greco-europeu entre o corpo e a alma (psychê, em grego), de que os neurólogos têm razão em desconfiar. Infelizmente sem se darem conta de que estão apanhados também por ele através da representação mental. A questão é a do estatuto do cérebro : órgão corporal sem a menor dúvida, inventado muito cedo sob formas embrionárias pela evolução biológica, mas também sem dúvida que órgão do pensamento. Ora, este segundo ‘sem dúvida’ merece ser matizado : o que nós chamamos ‘pensamento’, na medida em que não é dissociável da linguagem duplamente articulada[1], só bastante tardiamente se tornou uma função do cérebro dos antropóides que inventaram os primeiros utensílios e as primeiras palavras. Isto obriga a não nivelar as duas faces do cérebro e, por exemplo importante, a excluir imediatamente qualquer incidência dos genes dos neurónios dobre tudo o que releva do chamado psiquismo.
74. Qual é a especificidade dos neurónios entre as outras duas centenas de células especializadas dos vertebrados ? Quando se escreveu no § 31 que a eficácia dos genes e do ribotipo de Barbieri estava limitada ao metabolismo celular, deixou-se entender que as células são uma espécie de ilhotas que se agrupam em tecidos e órgãos. É verdade, mas justamente os neurónios são uma excepção : a sua especialidade é criar com as sinapses que os ligam uns aos outros uma ‘rede nervosa’ cerrada de afectação mútua, que permite ao conjunto de, através de órgãos perceptivos, ser afectado de fora e de se auto-afectar. Não de forma anárquica, é claro, mas segundo grafos (Changeux), dos quais sem dúvida muitos inatos, criados muito precocemente, enquanto que outros, pelo contrário, inscritos (grafados !) pela aprendizagem dos usos e da palavra. Estes novos usos acrescentam-se assim às funções do cérebro, articulando um velho cérebro ‘réptil’[2] ao novo cérebro das aves e mamíferos, onde justamente a melhor parte é sem dúvida reservada aos grafos da aprendizagem da maneira de habitar como humano.
75. Os especialistas do sono e do sonho mostraram como há em nós duas formas de sono, um lento de cerca de hora e meia que é interrompido, antes de retomar por outra hora e meia, por um sono agitado de uma vintena de minutos que M. Jouvet chama paradoxal. Seria nestes períodos mais breves que nós sonhamos, mas Jouvet não o pode saber pelos seus instrumentos e métodos que lhe permitiram discernir os diferentes sonos, tem que acordar os seus pacientes e perguntar-lhes : ‘você estava a sonhar ? com quê ?’. Sem parecer dar-se conta, ele assinala assim uma dicotomia entre duas abordagens do psiquismo, uma propriamente neurológica, à base de análises químicas e de instrumentos eléctricos, e outra, que há que qualificar como ‘discursiva’, que se faz pelo diálogo com o paciente (própria da psicanálise e de outras psicologias). Não é pois surpreendente que o seu livro se termine numa insatisfação quanto ao estudo neurológico dos sonhos[3]. No entanto, suponho que ele estaria de acordo para recusar a pretensão de dar conta, por meios neurológicos, das regras linguísticas das diversas línguas : todavia estas também se jogam essencialmente nos cérebros humanos. Há portanto que concluir que há um dualismo metodológico irredutível entre as duas abordagens do cérebro e do psiquismo (§ 107).
76. Mas não se trata com esta constação importante de ceder ao dualismo[4], antes pelo contrário. Peçamos auxílio aos engenheiros de dos computadores : esta irredutibilidade da abordagem instrumental do hardware e do software também se encontra entre eles. Com os seus meios de reparação do hardware, eles não podem saber que programa é que está a passar, em que linguagem, têm que perguntar ao operador, que está do lado do software. Igualmente, não se pode, com os meios eléctricos adequados (sem as membranas acústicas dos telefones), saber o que se está a dizer ao telefone pela análise da respectiva corrente eléctrica, nem assinalar os actores dum filme de televisão na corrente eléctrica que chega à antena. Nos grafos do cérebro, que são uma espécie de cabos eléctricos com corrente iónica[5], o problema é idêntico. Neles não há nem palavras, nem músicas, nem números (que os há nos ouvidos e na voz), nem imagens mentais, tal como no hardware dos computadores só há electricidade que passa (corrente de electrões, que não afecta quimicamente os fios) : as palavras e os problemas estão à entrada, nos teclados ou em cartas perfuradas, e à saída, nos écrans e nas impressoras. Não há no cérebro representações mentais, ideias, imagens que recordam alguém. É certo que é difícil de aceitar, mas é inútil procurá-los. O ‘mental’, tal como a ‘ideia’ inventada por Descartes e a ‘alma’ de Platão’, é uma ficção, o sonho de largar a materialidade, seja a do corpo como a das letras. O fenomenólogo põe assim, como tese filosófica, que estas duas palavras, ‘cérebro’ e ‘psiquismo’, nomeiam a mesma realidade ôntica e o velho conflito entre as suas duas abordagens possíveis, a da neurologia e da sua análise do ‘corpo’ e a da experiência da autoafectação e do diálogo. O ‘mental’ separa e opõe ‘sujeito’ no interior e ‘objecto’ no exterior. Mas se eu vir um objecto nunca visto antes, que portanto esteja verdadeiramente no exterior, não o percebo nem o conheço ; só conheço os que já estão inscritos em mim ; aquilo a que se chama o interior, não é senão o exterior, o ‘mundo’, grafado no meu cérebro, o que me permite ‘ser-no-mundo’, ser o Dasein de Heidegger, todo no exterior[6]. A minha interioridade – que é uma das coisas a que eu dou mais importância, os meus segredos – não é senão a minha maneira de estar retirado em relação aos outros, como sugeri (§ 63), mesmo quando penso ‘mentalmente’, como se diz, estou no ‘exterior’, ao pé daquilo em que penso (das personagens dum livro bíblico que leio, por exemplo).
77. Em suma, os neurónios foram feitos, em relação com as hormonas reguladoras da homeostasia do sangue (sistema de alimentação), para a mobilidade, o cérebro ligando os órgãos perceptivos aos músculos dos membros de locomoção. O neo-cortex das aves e dos mamíferos especializou-se nas estratégias de predação, de luta e de fuga, é isso que para eles é ‘pensar’, segundo o que aprenderam e experimentaram. A linguagem e os outros usos foram inventados socialmente para a aprendizagem : vêem-se inscrever de fora em grafos específicos do cérebro nas mesmas regiões cerebrais do pensamento mamífero. Perguntar-se-á : como compreender, nessa perspectiva, o cogito, o ‘eu penso’ ? ‘Eu’ pertence aos grafos, foi grafado com as aprendizagens, faz essencialmente parte delas, os grafos não falam nem pensam sem serem guiados por ele, digamos, e, ao mesmo tempo, este jogo auto-afecta o ‘eu’, como se diz con-sciência : ‘eu’ sei de ‘mim’, do que digo e faço quando o digo e faço, como condição de o dizer e de o fazer. O ‘eu’ é reforçado ao longo da sua vida, dos seus usos e acontecimentos. Ao contrário de tudo o que aprendemos no Ocidente, de toda a nossa filosofia e literatura, é por isso é que é tão difícil. Eu não é um outro, é um vestígio, um rasto de muitos outros. Não há maior enigma.
78. É esta concepção - filosofia com ciências – que deveria, creio, ser fecunda em neurologia. Como fazer ? Não é o fenomenólgoo que tem que o saber, mas uma das coisas seria pedir ajuda aos linguistas, por exemplo, como fazem os engenheiros de software, mas de preferência aos do laboratório de M. Gross (§ 65), infelizmente precocemente desaparecido. Disse que a área de Broca, que os neurólogos descobriram, parece ser aquela em que se fazem as associações sintácticas automáticas para falar ou pensar (§§ 27 e 65), também a de Wernicke parece ser aquela onde se ‘escolhem’ as palavras. Seja uma última vez o exemplo do software : Como é que se faz para que o computador seja capaz de ‘jogar’ ao xadrez ? Não se podem ensinar-lhe raciocínios, mas as regras do jogo, tanto aquelas que definem os deslocamentos das diversas peças como as das estratégias dos campeões. Isto é, ensina-se-lhe uma ‘linguagem’. É provavelmente o que há que procurar nos grafos : como é que as nossas línguas são grafadas[7].
[1] É hoje facilmente admitido pelos neurologistas e por numerosos filósofos, sem que muitas vezes se compreenda que em consequência se tem que mandar embora a representação mental.
[2] É a nossa glândula endócrina mais importante, segregando nomeadamente as hormonas que velam pelo equilíbro homeostático do sangue.
[3] Uma vez que, por razões de brevidade, não me ocupo aqui da psicanálise, que faz parte no entanto dos cinco domínios no texto de referência (o capítulo a ela dedicado procura esclarecer o seu especial estatuto científico), assinalo em todo o caso como é notável a diferença entre duas ou três coisinhas que ele recolhe de 2500 sonhos e a interpretação dos sonhos do livro admirável de Freud de 1900. A propósito deste, pode-se legitimamente falar em ‘ciência dos sonhos’ ou, mais rigorosamente, duma semiótica experimental do discurso neurótico na sua relação à energia sexual dos humanos. Esta semiótica exerce-se sobre o discurso do paciente quando este se entrega às suas associações livres, por vezes próximas do delírio, em volta do ‘ego’. São as resistências que esse ‘ego’ manifesta a dizer, gaguejando, auto-censurando-se, denegando, rindo ou chorando, em suma surpreendendo-se a si mesmo, que permite ao analista dar por um ‘super-ego’ relevando da lei social e que se opõe ao pulsional sexual (confissão de relações ‘imorais’ ao pai e à mãe, na interpretação dos sonhos, por exemplo) a que Freud chamou ‘id’. Ciência sui generis, que atravessa (e revela-os articulados entre si) a linguagem, o social no seu interdito do incesto e a sexualidade (biologia), isto é, os três principais domínios das ciências respeitantes aos humanos.
[4] Digamos em todo o caso que esta irreductibilidade presta honra a Platão e a Descartes, de quem este texto está bastante afastado.
[5] Portanto susceptível de mudança química nas sinapses e de as grafar.
[6] Isto foi proposto em 1927 : paarece-me que ainda não passou nos costumes, mesmo dos filósofos, mesmo de muitos especialistas de Heidegger, porque não é nada fácil de pensar. Talvez que não tenha havido nunca distância tão grande entre uma ‘verdade de pensamento’ e a nossa experiência comum, excepto talvez a do heliocentrismo, o inverso do que os nossos olhos vêem.
[7] A comparação entre cérebro e computador nos engenheiros de I. A. ganharia em ter em conta as duas diferentes maneiras dos computadores jogarem com os números (susceptíveis de linguagem binária, correspondendo à passagem ou não de corrente : pode-se calcular com ela) e com as palavras (cuja polissemia - (§§ 61-62) - não é discernível directamente, apenas pelo jogo de diferenças com as outras palavras) : não se pode senão transpor letras e sequências de letras, qualquer operação de pensamento tem que ser inscrita pelos linguistas.
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