terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Alargar a redução fenomenológica

Alargar a redução fenomenológica

12. Uma das possibilidades da linguagem dos humanos é a de permitir ‘suspender’ o contexto situacional do falante e do ouvinte (do escritor e do leitor) em vista de ‘criar’ um acontecimento de palavra trazendo consigo o seu contexto : dois bons exemplos são, quer o contar uma narrativa do passado ou uma ficção, quer o que se chama pensar, incluindo sonhar, desejar, imaginar outras possibilidades do que as do contexto situacional, do ‘aqui e agora’. O ‘discursivo’ (que Benveniste distinguiu do ‘narrativo’) permite dois modos dos verbos : o indicativo presente que, com outros índices de locução (‘eu’, ‘tu’, ‘aqui’, ‘agora’, e outros), reenvia ao seu contexto, ‘indica’ o que está ‘presente’, e o conjuntivo, que reenvia a esta capacidade de pensar a outra coisa, guardando todavia o suporte do ‘eu’ da enunciação (e a relação ao ‘tu’). Da mesma maneira, a narrativa evocada pode guardar este suporte (auto-narrativa, a respeito do locutor), que no entanto estruturalmente ele exclui. Que nome dar a esta possibilidade das nossas palavras de ‘suspenderem’ o nosso contexto situacional e de nos arrebatar para algures, absorvidos por exemplo na leitura dum romance apaixonante ? Bifurcação ? Jogando com dois dos sentidos da palavra ‘sentido’, poder-se-ia com efeito falar de bifurcação do sentido : o que nos orienta no espaço, direita, esquerda, à frente, atrás, em cima, em baixo, o que, sentido do discurso, nos dá uma outra possibilidade ao nosso ser-o-aí, a de se ser algures, num outro aí. Bifurcação : ao mesmo tempo aqui-presente e algures.
13. Esta bifurcação far-se-ia entre o nosso contexto situacional, o nosso ‘aqui e agora’, e o contexto contado pela palavra ou pelo escrito. Este tem a potência de nos raptar daquele, de nos absorver, de nos bifurcar[1]. Pode-se presumir que seja necessário normalmente um ponto de partida no contexto situacional para que haja esse ‘ir-se’ da bifurcação, algo, acontecimento mínimo, que faça interrupção, que faça ‘associação’ entre um elemento do contexto e o que está em jogo na palavra, dita ou silenciosa : um encontro com alguém, tal coisa que acene à memória, ou muito simplesmente uma associação de ideias. Esta é tão frequente que temos que admitir que o nosso estado normal seja o de estar sempre já em bifurcação de sentido, digamos assim, entre a situação do contexto e a do discurso[2], a chamada consciência. Prevenção dum ‘acidente’, a expressão ‘dá atenção !’ lembra com insistência que há que estar atento ao contexto quando se está algures, nas nuvens.
14. O que chamamos filosofia no Ocidente arrancou mais fortemente a partir da literatura chamada pré-socrática por uma bifurcação excepcional, ligada à invenção da definição pela escola socrática. No Ménon (71c), por exemplo, a questão da definição – « o que é que tu dizes que é a virtude ? » - é colocada assim : « por muito diversas e numerosas que sejam, [as virtudes] têm todas uma certa forma (que é) a mesma (hen ge ti eidos tauton), que faz com que elas sejam virtudes. É nela que convém fixar os olhos para responder à questão e mostrar em que é que consiste a virtude ». Admitindo que haja uma ‘visão’ do comportamento virtuoso, a sua definição consiste em encontrar esse eidos tauton, esta forma que é a mesma em todos esses comportamentos virtuosos ; para isso, haverá que as despojar do que Aristóteles chamará os seus acidentes, do que há de particular em cada um desses comportamentos virtuosos e retirar deles a « forma (que é) a mesma ». O que implica que a definição seja, dela própria, (assente sobre) bifurcação : por um lado, está-se aqui, numa discussão filosófica a dois, pelo menos, portanto no registo da palavra, por outro lado « convém fixar os olhos » sobre esses comportamentos, aonde eles estão, nas suas situações ou contextos. A definição retira – desses contextos « sob os olhos » - um eidos, que é o mesmo em todos os contextos considerados, mas que só o pode ser porque desligado das suas particularidades : quer dizer que o eidos não é o mesmo senão na palavra filosófica[3]. Cada um desses comportamentos pode ser contado numa narrativa ou dito num discurso, ambos respeitando ao contexto particular dele, comportamento. Pelo contrário, o texto gnosiológico, esse novo texto das definições – dos eidê (formas ideais) em Platão, das ousiai em Aristóteles -, rompe com esses discursos do particular, que ele qualifica de doxa (opinião, seja verdadeira ou não). Este corte, relevando da violência da definição (a violência pedagógica a que chamamos abstracção, arranque) foi instituída : a Academia, o Liceu, a escola em retracção das opiniões da cidade. Quer dizer que ela implica a alteração daquele que define : ele ‘fixa os olhos’ sobre as coisas da cidade e da natureza de maneira muito diferente dos outros que lá vivem (ver a descrição do pensamento do filósofo enquanto arrancado ao contexto em Teeteto 174-175). Foi este arranque – esta abs-tracção violenta[4] sobre a bifurcação – que foi retomado por Platão como separação entre as Formas ideais celestes, saídas das definições, e as coisas definidas no seu contexto terrestre. Umas, foram contempladas pela alma quando ela estava separada do corpo, antes do nascimento, as outras, conhecidas através do corpo e dos seus órgãos, são geradas e corrompem-se como ele ; esta alteração do filósofo foi teorizada na imortalidade da sua alma virtuosa (Fédon). Enquanto que Aristóteles, pelo contrário, atenuou o mais que pôde a separação ( a sua ousia é tanto eidos quanto coisa, essência como substância). Mas, grande utilizador de definições, ele reforçou o corte institucional entre o Liceu e a cidade, entre o seu texto gnosiológico[5] e as narrativas e discursos da doxa ; abandonando a imortalidade da alma, não deixou de guardar a alteração do seu olhar de filósofo, arrancado cada vez mais à doxa quotidiana, colocado fora de jogo.
15. Pode-se pensar que a redução de Husserl consistiu, no essencial na retomada do gesto da definição da escola socrática[6], numa espécie de refundação de filosofia em relação à tradição escolar da sua época enquanto doxa[7] académica, digamos. Com efeito, esse ensaio teve lugar após a muito longa história da instituição que é a escola, a história das universidades medievais e europeias, sobretudo após os séculos 17 a 19 e a proliferação inaudita de toda a espécie de ciências. A sua insistência sobre a intencionalidade tentava reencontrar a bifurcação inicial, se dizer se pode, indo da percepção à intuição de essência : ‘esquecendo’ o discurso, privilegiando na percepção o que chamava ante-predicativo, tentou regressar à ‘coisa’ para suspender ou reduzir o seu empirismo contextual, o que a liga ao mundo das outras coisas usuais, para tirar dela, abstrair, o eidos ou essência. Reduzir a coisa aparecendo para reter apenas o seu aparecer fenomenal, estrutural. Saudando esse retorno às coisas, foi aquele ‘esquecimento’ que Heidegger criticava em Ser e Tempo, colocando o humano como Dasein, ser-o-aí, exterioridade no mundo[8], foi esse esquecimento que ele visava no seu gesto de reclamar o ser-no-mundo antes do discurso filosófico (o da definição) : o que sublinharia como a redução repetia a definição e falhava as próprias coisas, vistas imediatamente como ‘objectos’, fora do contexto. O começo de Husserl situava-se já depois do corte (gnosiológico, em prol do conhecimento) com o mundo quotidiano em que todos nos movemos. É certo que era esse mundo que era reduzido, mas Heidegger dava a ver o que Husserl parece não ter compreendido : que essa redução, procurando encontrar o eidos, a essência das coisas a que ele convidava a regressar, tinha incidências também sobre ele, que a consciência que reduzia era já a dum ‘filósofo’, de alguém já arrancado ao quotidiano, que já estava na escola. Retornando ao mundo de antes dos objectos, Heidegger não regressou no entanto aos discursos particulares da literatura, de que se aproximou bastante, no entanto ; ele guardou cientemente a maneira filosófica da escola, mas deslocando o empírico do mundo a reduzir para a história ocidental do ser, tentando reduzir nela o substancialismo do aristotelismo medieval e europeu : há que o destruir, dizia.
16. Nele o ser tornar-se-á a diferença ontológica com as coisas, regressa ao mesmo que Parménides tinha formulado como o dizer-(que)-pensa-o-ser. O ser é o ser das coisas, do mundo, do universo, mas não é dado nem aos olhos nem às mãos : ele é dito e pensado pelo pensador, é o mesmo que o seu dito, o seu pensado[9]. A história do ser é assim a história dos motivos que, dos Gregos aos Europeus, o pensaram[10]. Longamente ele busca pensar este ser que dá as coisas, os entes, até vir, em 1962, a formular o motivo do Ereignis (acontecimento, em alemão) que lhes dá - às coisas que ‘acontecem’ - quer o ser quer o tempo, mas apagando-se, retirando a sua doação. Aqui é de Heraclito que dependia : « A natureza (o ser) gosta de se esconder ». Esta doação faz ser a coisa, o seu retirar-se deixa-a ser ela mesma, no seu ser e tempo próprios.
17. Derrida continuará na sua peugada. Encontra-se diante da tarefa de pensar o ser-no-mundo heideggeriano e a pré-compreensão (os preconceitos) que Ser e Tempo lhe tinha outorgado : donde é que ela vem (vêem eles) ao Dasein ? Para o saber, retomará a redução de Husserl, mas deslocando-a também. Já não na direcção do ser, mas na da palavra, que ele contestará que seja posterior à chamada percepção[11]. A redução, tal como ele a reelabora, atravessando uma célebre diferença saussuriana entre os sons da voz e os significantes (só estes pertencem à língua), permitir-lhe-á dar conta da aprendizagem da fala[12], do aparecer duma voz inédita de criança : esta só é possível por uma ‘suspensão’ dos sons empíricos das vozes dos outros que retém apenas as suas diferenças significantes[13]. Chamemos a esta nova redução gramatológica[14]. Mas há que a complexificar, de maneira a ter em conta a dupla articulação da linguagem (§ 27), o que ele fará, implicitamente, num outro texto da mesma época. Os significantes escutados, as palavras e as regras das frases, são aprendidos e ditos pela nova voz como língua cultural da comunidade nas suas relações aos outros, por uma lado, mas também em relação aos usos de habitação que a criança aprende juntamente com a linguagem. Ora, é esta língua – que fala na sua voz e pela qual a criança é auto-afectada, con-sciente de si – que, pré-compreensão heideggeriana, a eleva ao nível, digamos, do paradigma desses usos de habitação (receitas, regras, leis, jogos, sonhares, etc.) : pode-se dizer que ele reencontra assim a redução fenomenológica de Husserl[15], mas à maneira duma nova volta ou dobra da redução gramatológica. Esta dupla redução - em double-bind, para usar a sua terminologia posterior – será repetida a cada nova aprendizagem quer da voz quer do fenómeno. Se comecei por propor uma ‘bifurcação do sentido, vê-se, agora que voltamos a ele, que ela se dá como sempre já duplamente articulada, sem que se possa separar um dos ‘sentidos’ do outro, aquilo que se vê ou mexe do que se pensa ou compreende dele (com as mesmas palavras que os outros).
18. Mas esta palavra ‘redução’, permitindo compreender tanto quanto é possível esta aprendizagem tão enigmática a partir dos outros, pode tornar-se fonte de confusão, pode ignorar o aspecto ‘construtivo’ do saber-fazer do novo humano habitante da sua tribo. A redução da empiricidade dos outros, da voz deles e do saber-fazer dos mestres que se apagam, é com efeito correlativa da construção ou crescimento do saber, do preenchimento ‘substancial’, ‘empírico’, da voz e saber-fazer do que aprende os usos da sua gente. O que cada um de nós sabe é o rasto (trace) daqueles com quem, de quem aprendemos.


[1] É aonde residiria, parece-me, a ‘verdade’ de ce o que se chama idealismo, cujo erro consise em dividir ou separar a bifurcação entre ‘corpo’ e ‘alma’, extensio et cogito, finalmente objecto et sujeito. Em Husserl : região natureza e região consciência.
[2] Limito-me aqui ao discurso, mas este ‘lá’ pode ser também música, jogo de imagens, cálculo matemático.
[3] Pode-se dizer que o nome das coisas é o seu início, já que o facto de numeorosos cães de raças tão diferentes serem nomeados, nos discursos, pelo mesmo nome ‘cão’ implica a suspensão dasparticularidades de cada um, para não reter senão um eidos.
[4] Ela não será completa enquanto se guardarem na escola as palavras da cidade. Sê-o-á com a tradução latina em palavras estranhas ao quotidiano.
[5] Sem os tempos e os modos dos verbos, apenas cópulas. A base de definições de essências intemporais e da argumentação coonsequente, ele já não dialoga e torna-se cada vez mais incompreensível para os não-iniciados.
[6] Para ser mais preciso, a redução seria uma classe de operações de pensamento de que a denominação, a definição, a epoché e as diversas reduções científicas de que será questão mais adiante (§ 89) seriam espécies.
[7] A sua tese da posição natural do mundo, a suspender pela épochê, corresponderia à doxa dos Gregos. O pensamento ‘naturalizou-se’ na escola, é preciso fazer uma nova ‘separação’ dentro da velha separação, um novo paradigma, uma nova maneira de ‘fazer’ a separação-definição : « com uma atitude completamente diferente », dizia ele no início das Ideen.
[8] Criticando Husserl, o velho Heidegger disse que a consciência é fechada, não se sai dela ; acrescentou paradoxalmente que o seu Dasein estava ‘próximo’ das mónadas leibnizianas, porque ele também não tinha janelas.
[9] Nos Europeus, o corte cartesiano separará o pensamento (o sujeito) e o ser (o objecto), fazendo do dizer um instrumento subordinado.
[10] Esta historicidade dos motivos filosóficos, que se encontra já em Nietzsche e será retomada pela gramatologia de Derrida, é um dos pontos decisivos da viragem heidegeriana. Há que a ter em conta para valaiar bemo pardigma kuhniano, qualquer que seja a explicitação do próprio Kuhn (por exemplo, é a condição duma sua tese que chocou muita gente, sobre o olhar e a sua dependência do que o orienta, memória ou pardigma, do que se aprendeu).
[11] Chegará a dizer que o que se chama a percepção não existe.
[12] Quer dizer que a consciência não pode ‘sozinha’ fazer e garantir a redução. Que Derrida encontre diferenças-repetições e o ses espaçamento-temproalização como ‘resultado’ da redução implica que, em vez dum Wesenverhalte (estado de essências) husserliano, este ‘resultado’ seja sem mais estrutural e temporal.
[13] Estas diferenças. Vindas dos outros inscreverem-se nas crianças, são espacializadas e temporalizadas : é o que Derrida diz différance. O verbo ‘diferir’ diz as diferenças espaciais e o adiamento temporal. O a acrescentado a ‘différence’ introduz esse sentido temporal do verbo que o substantivo ignora.
[14] De ‘gramma’, escrita em grego, inscrição. São estas diferenças significantes que se inscrevem nos ouvidos-cérebro-garganta da criança.
[15] Já que a aprendizagem quer das palavras quer dos gestos dos usos quer das respectivas relações mútuas se faz por redução fenomneológica, as palavras supondo todavia também a redução gramatológica. É esta aprendizagem que traz o filho da mulher e do homem ao ‘mundo’, faz dele um ser-no-mundo da sua tribo.

1 comentário:

José Maria Silva Rosa disse...

Excelente proposta e contributo este, do Prof. Fernandp Belo: «Alargar a redução Fenomenológica»!!!